Rev. bras. psicoter. 2023; 25(2):85-101
Cardoso ÉAO, Sola PPB, Santos JHC, Garcia JT, Carvalho ACB, Lotério LS. Estágio profissional no contexto do enlutamento no serviço-escola de uma universidade pública. Rev. bras. psicoter. 2023;25(2):85-101
Artigo Original
Estágio profissional no contexto do enlutamento no serviço-escola de uma universidade pública
Professional internship in the context of bereavement in a psychological training-clinic of a public university
Prácticas profesionales en el contexto del duelo en la escuela-servicio de una universidad pública
Érika Arantes Oliveira Cardoso; Pamela Perina Braz Sola; Jorge Henrique Corrêa Santos; Juliana Tomé Garcia; Ana Clara Buson Carvalho; Lucas Santos Lotério; Manoel Antônio Santos
Resumo
Abstract
Resumen
Nas últimas décadas, o Ministério da Educação1 (2011) e o Conselho Federal de Psicologia2 (2018) têm realizado um trabalho intenso para o estabelecimento de normas que regulem o funcionamento dos cursos de graduação em Psicologia. Segundo as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN)1, que normatizam os cursos no cenário brasileiro, é obrigatória a manutenção de um Serviço-Escola de Psicologia voltado para prestação de serviços à sociedade e que possibilite aos estudantes a realização de estágio profissional supervisionado em Psicologia. O objetivo dos estágios é promover o desenvolvimento de habilidades e competências, contribuindo para a integração do aprendizado de aspectos éticos e experiências tanto pessoais quanto profissionais.
O Serviço-Escola é um espaço de articulação dos Estágios Básicos e Específicos, que compõem a formação em Psicologia. Como tal, cumpre uma dupla função: a criação de possibilidades de atuação e a oferta de condições adequadas para que os estudantes possam exercer atividades supervisionadas de estágio junto à comunidade. Desse modo, o Serviço-Escola impacta tanto a formação com vistas à futura atuação profissional, como também a extensão universitária, mediante a oferta de serviços psicológicos à comunidade³.
O estágio profissional pode ser definido, segundo a Lei nº 11.788, de 25 de setembro de 2008 4, como um ato educativo, desenvolvido no ambiente de trabalho, com o objetivo de preparar os alunos para a prática profissional5. No contexto especifico da Psicologia, a Resolução CNE/CES nº 5,1 de 5 de março de 2011, instituiu as DCNs para os cursos de graduação e definiu a obrigatoriedade da oferta de atividades de formação programadas, diretamente supervisionadas e que assegurem o contato dos alunos com situações nas quais podem ser adquiridos conhecimentos, habilidades e atitudes, que serão essenciais para o bom desempenho da prática profissional6-8.
O oferecimento de prática supervisionada inserida em contextos de sofrimento emocional, intra ou extramuros da Universidade, é um dos objetivos centrais do "ocultado". O laboratório oferece estágios para alunos da graduação em diferentes cenários da saúde, incluindo a atenção voltada a indivíduos e familiares enlutados, por meio das ações "ocultado"9, lembrando que, ao longo de seu itinerário formativo, o estudante realiza práticas de Estágio Básico e outras de Estágio Específico10.
O processo de luto, compreendido como um conjunto de reações naturais e esperadas diante do rompimento de um vínculo significativo, abrange emoções, cognições, sensações físicas e mudanças comportamentais11-13. É importante ressaltar que, ainda que seja um fenômeno universal, cada indivíduo vive e compreende o luto de acordo com seu estágio de desenvolvimento emocional e cognitivo, não existindo, portanto, um padrão único de enlutamento14,15, o que exige do psicoterapeuta um olhar individualizado para cada pessoa enlutada16.
Atualmente, existe uma sistematização teórica que permite compreender fatores que podem atuar como dificultadores na vivência do processo de enlutamento, tais como: história de vida pregressa do enlutado, fatores de risco relacionados à morte do ente querido, tais como idade (óbito de criança/jovem), tipo de morte (repentina, violenta, suicídio), relação de parentesco (cônjuge, pais), não localização do corpo, impossibilidade de realizar rituais de despedida significativos, luto não reconhecido/validado pela sociedade. Em contraposição, os fatores facilitadores do processo de luto incluem uma rede de apoio social ativa, disponibilidade de suporte psicológico, qualidade do vínculo com a equipe de saúde, atribuição de significados conferidos à morte, possibilidade de realização de rituais de despedida significativos, bem como o tipo de morte17,18.
Mais do que uma experiência dolorosa, a vivência do luto envolve ampla e profunda transformação subjetiva, figurando "entre as emoções mais poderosas que o ser humano pode viver" no decorrer de sua existência19. Durante o processo do luto, alguns pontos merecem cuidados a fim de possibilitar a elaboração das perdas e mudanças: aceitação da realidade da perda, reconhecimento e legitimação do sofrimento decorrente da perda, adaptação ao contexto de vida que segue sem a pessoa perdida, reorganização emocional a fim de dar continuidade à vida20. A experiência de cuidado às pessoas enlutadas evidencia que, apesar de configurar um processo natural, é necessário atentar para as necessidades psicossociais das pessoas enlutadas, com vistas a prevenir respostas não adaptativas e desorganizações de ordem psíquica, cognitiva e social21.
Frente a esses desafios, o estágio profissional no contexto de enlutamento deve introduzir os princípios do acolhimento e da escuta da pessoa enlutada, balizados pelas regras que organizam o atendimento clínico e que dão sustentação às questões que mobilizam e inquietam os estagiários. Segundo Worden13, o objetivo do apoio emocional ao enlutado é ajudá-lo na adaptação à nova realidade, marcada pela perda de um ser amado. O autor argumenta que, para a elaboração do luto, é necessario que algumas tarefas sejam realizadas pelo enlutado e, para a consecução de cada uma, o terapeuta pode auxiliar de forma específica.
As principais tarefas do luto incluem: (1) construção da aceitação da perda: há necessidade de reforçar o contato com essa nova realidade, marcada pela irreversibilidade da perda; (2) vivência da dor emocional da perda: explorar a possibilidade de auxiliar o paciente a expressar suas emoções e lidar com os diferentes sofrimentos decorrentes dessas experiências; (3) ajustar-se ao mundo sem a presença da pessoa falecida: facilitar o processo de superação dos inumeros dificultadores do reajustamento pós-perda; (4) conseguir se conectar de outra forma com quem se foi, seguir em frente: auxiliar o indivíduo a encontrar uma nova maneira de manter o vínculo com quem se foi, para que possa ressignificar o laço afetivo e reinvestir na vida, de modo que consiga continuar a viver sem desistir de seu futuro. Ainda que tenha proposto um modelo teórico de intervenção no luto, baseado na execução de tais tarefas estratégicas, Worden13 considera que o luto é um processo fluido, dinâmico e pessoal, que pode ser influenciado por inúmeros fatores mediadores das referidas tarefas.
Nesse cenário, a oferta de um estágio profissional vinculado a um serviço de apoio emocional para pessoas enlutadas em um serviço-escola de Psicologia atende aos anseios de que as práticas promovidas nesse cenário sejam repensadas, principalmente devido à necessidade de consideramos as novas demandas e configurações sociais22. Com a inserção no campo, o estágio possibilita, por um lado, fornecer amparo a pessoas que se encontram em situações de extrema fragilidade e sofrimento, visando tornar o luto um processo menos solitário, de modo a favorecer a adaptação à perda23-25. Por outro lado, contribui para a formação de futuros profissionais, por meio da familiarização com um modelo de atuação em um área sensível, que exige cuidados éticos, domínio técnico e desenvolvimento da capacidade empática. Nesse sentido, uma pesquisa que investigou o papel dos estágios sob a perspectiva dos estagiários confirmou a percepção do papel decisivo das práticas supervisionadas para a formação do profissional de Psicologia10.
Assim, para atender às demandas de formação no campo da assistência ao enlutado, foi estruturado no ano de 2023 o estágio supervisionado intitulado "Psicoterapia Psicanalítica Individual e em Grupo na Clínica do Luto", com o intuito de oferecer aos alunos do curso de Psicologia o contato com processo completo de intervenção, que abarca a triagem para atendimento psicológico, atenção individual e intervenção grupal. Ao mesmo tempo, a comunidade se beneficia do serviço com a possibilidade de usufruir de apoio psicológico qualificado durante o processo de elaboração de perdas significativas.
Conhecer as características dos indivíduos enlutados que buscam atendimento no serviço-escola pode fornecer pistas para organizar a oferta de cuidado e potencializar os recursos formativos e terapêuticos envolvidos nessa experiência. Considerando o exposto, este estudo teve como objetivo caracterizar a clientela que buscou atendimento psicológico com queixas relacionadas ao processo de enlutamento, junto ao estágio de Psicoterapia Psicanalítica Individual e em Grupo na Clínica do Luto oferecido pelo serviço-escola de uma universidade pública, no primeiro semestre de 2023.
Método
Trata-se de pesquisa documental, descritiva e exploratória. Nesse tipo de estudo, para a formação do corpus de pesquisa são utilizados conteúdos de documentos que ainda não foram analisados e/ou sistematizados e que estão relacionados com o interesse dos pesquisadores, objetivando a produção de conhecimento novo a partir desse material26.
Foram analisados dados extraídos dos prontuários de pacientes atendidos na clínica psicológica vinculada a um serviço-escola, mais especificamente da ficha de inscrição (dados sociodemográficas e motivo da procura) e do histórico de atendimento do usuário (formulário composto por dados tais como: data da primeira entrevista, conduta sugerida pela equipe, número de sessões realizadas, número de faltas, desfecho do atendimento). Também foram utilizados os registros realizados durante a supervisão semanal, contendo reflexões sobre as condutas e desfechos de cada caso.
As variáveis quantitativas foram tabuladas, inseridas em um banco de dados e analisadas em termos de frequência, média aritmética e desvio-padrão, visando à caracterização do grupo amostral. Os dados qualitativos foram organizados de acordo com os pressupostos da análise de conteúdo, com categorias apriorísticas ou pré-definidas27, e discutidos à luz do arcabouço teórico sobre o processo de enlutamento13.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição a qual os pesquisadores estão vinculados (processo número "ocultado", CAAE "ocultado"). Foram seguidas as diretrizes éticas preconizadas pela Resolução nº 466 de 2012 sobre pesquisa com seres humanos do Conselho Nacional de Saúde e Resolução nº 16 de 2000 do Conselho Federal de Psicologia. A equipe de pesquisa se cercou de todos os cuidados éticos envolvidos na pesquisa clínica e, uma vez obtida a concordância, cada participante firmou o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e recebeu uma via assinada do documento.
Resultados e discussão
No primeiro semestre de 2023 se inscreveram para atendimento psicológico 53 pacientes, com idades variando de 8 a 63 anos (X = 37,5, DP = 17,8), a maioria composta por mulheres, autodeclaradas brancas, procedentes do município no qual está localizado o serviço-escola de Psicologia (Tabela 1).
Perdi minha mãe faz dois anos e meio, de forma abrupta, e isso parou a minha vida. Não consigo trabalhar mais, mal saio de casa, tenho problemas de insônia. Não consigo aceitar a perda e lidar com ela. (Fernanda, 44 anos, casada, autônoma)
Ela [a adolescente] morava com a avó materna, que faleceu há 10 meses, e após o falecimento da avó ela chora diariamente, está com comportamento de se auto machucar, dificuldade em se adaptar à nova residência e aos avós. (Juliana, tia se referindo ao comportamento de uma sobrinha de 12 anos)
Eu e minha mãe passamos muitas coisas juntas e sempre fomos muito grudadas e próximas. Moramos juntas toda a minha vida e, com o falecimento dela, entrei numa depressão profunda. Durante muito tempo não quis me cuidar ou fazer qualquer tratamento, mas acredito que isso realmente seja necessário, visto que até hoje não superei a partida dela e me vejo num poço escuro. (Ana Clara, 56 anos, solteira, desempregada, perdeu a mãe há 12 anos)
Fiquei viúva há pouco tempo, depois de 26 anos de casada. Desde então perdi a vontade de viver. Preciso de ajuda, pois tenho um filho que depende muito de mim e eu não vou dar conta de fazer tudo sozinha (Cintia, 44 anos, viúva, cozinheira)
Meu tio se matou e eu percebi que eu precisava de ajuda porque eu não ia conseguir levar só eu com a minha cabeça... É muita coisa que se passa na nossa cabeça, muitos sentimentos misturados. (Virginia, 21 anos, solteira, desempregada)
Minha netinha de 13 anos morreu, morreu de uma doença... ela morreu, ela morreu não faz um mês, só tinha 13 anos. (Gabriel, casado, aposentado, 68 anos)
Tive quatro perdas gestacionais nos últimos sete anos... Demorei para perceber que era algo errado comigo... muito difícil lidar com tudo isso. (Vitória, 29 anos, solteira, esteticista)
Estou fazendo a inscrição da minha irmã mais nova, pois estou muito preocupada com a saúde mental dela, depois de perder os pais aos oito anos de idade em um acidente de carro e logo depois perder a avó. É uma situação muito difícil e crítica. Há muito tempo procuro atendimento psicológico, mas nós não temos condições de arcar com os custos e quando fiquei sabendo dessa oportunidade... (Taís, 18 anos, irmã se referindo a uma adolescente de 12 anos, com múltiplas perdas)
Os dois últimos anos foram difíceis. Perdi minha mãe e meu marido com COVID. Quase morri também, fiquei internada na UTI por muitos dias e hoje tenho sequelas pulmonares da doença. Sinto falta da minha mãe, ela era tudo para mim. Com meu marido eu tinha altos e baixos, mas minha mãe era tudo para mim e hoje estou assim, não vivendo, mas lutando para sobreviver. (Maria Rita, 34 anos, viúva, afastada do trabalho)
Eu estava cuidando há cinco anos da minha mãe, vivia para ela, só eu e ela. Pedi demissão do emprego, não saia de casa, meu mundo era reduzido a ela. Eu já não vinha bem com medo de quando essa hora chegasse. Embora ela não tivesse doenças graves, acabou falecendo numa situação muito dolorosa. Hoje estou sem rumo, sem trabalho, sem amigos, com muitos receios, inclusive de adoecer, e preciso cuidar de minha saúde de forma ampla, tanto física e muito também no lado emocional. (Pamela, 60 anos, desempregada, ensino superior completo, perdeu a mãe há seis meses)
Minha filha perdeu o pai em 2019 por câncer e muitas mudanças ocorreram desde então, de casa, de escola... Depois veio a pandemia e ela parece que criou um medo social e, agora em outubro do ano passado, minha mãe faleceu. Elas eram muito próximas, e ela chorou muito e questionou o porquê isso aconteceu com ela. Agora, por questões financeiras, estou trabalhando os dois períodos e ela fica sozinha à tarde. (Érika, 38 anos, mãe se referindo à filha de 14 anos)
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