Rev. bras. psicoter. 2023; 25(2):23-34
Rosa PM, Zanon JP, Pelissari LK, Fleith LV, Couto IS, Engroff P. Manifestações contratransferenciais no primeiro atendimento de pacientes idosos em um ambulatório de psiquiatria de um hospital terciário. Rev. bras. psicoter. 2023;25(2):23-34
Artigo Original
Manifestações contratransferenciais no primeiro atendimento de pacientes idosos em um ambulatório de psiquiatria de um hospital terciário
Countertransferential manfiestations in the first consultation of elderly patientes in a psychiatry ambulatory in a tertiary hospital
Manifestaciones contratransferenciales en la primera atención de pacientes ancianos en un ambulatorio de psiquiatría de un hospital terciario
Pedro Marques da Rosaa,b,c; João Pedro Zanona,b; Laura Krüger Pelissaria,b; Laura Vargas Fleitha,b; Isabella Serafin Coutoa,b,c; Paula Engroff a,c; Alfredo Cataldo Netoa,b,c
Resumo
Abstract
Resumen
Introdução
No Brasil, a população idosa representa o segmento da população com maior crescimento, com aumento de 4% ao ano de 2012 a 2022. A população com mais de 65 anos passou dos 7,3% da população brasileira em 2010 para 9,2% em 2018 e estima-se que passe para 11,9% em 2026 e 15% em 2034.1 Essa transição demográfica assinala a atenção que se faz crescentemente necessária para atender às necessidades dessa população.
A população idosa no Brasil apresenta a maior prevalência em transtornos como depressão, com prevalência nacional de 13,2%2. Outros estudos apontam prevalência de 21,9% de transtornos ansiosos em idosos usuários de atendimento psiquiátrico ambulatorial3. Sendo essa uma população crescente e com índices importantes de transtornos mentais, faz-se necessário o estudo não só da saúde mental, mas também do tratamento no contexto da relação médico-paciente, como será explicado a seguir.
O conceito de transferência foi mencionado primeiramente por Freud em seu trabalho Estudos sobre a histeria, então concebido como forma de obstáculo ao processo analítico4. Assim como o outro componente do binômio, a contratransferência, também sofreu modificações ao longo de seu desenvolvimento conceitual; genericamente, é a forma como as relações objetais, representações do próprio self e fantasias inconscientes do paciente são vivenciados, dentro da relação terapêutica e de maneira inconsciente, com a pessoa do terapeuta5.
A transferência abriu espaço para o posterior desenvolvimento do conceito de contratransferência, utilizado pela primeira vez em 1910 em As perspectivas futuras da terapêutica psicanalítica6. A contratransferência passou da compreensão de sentimentos inconscientes no analista advindos do paciente, devendo ser mantido sob controle e em abstinência7, para um instrumento de investigação do paciente8. Contemporâneo de Heimann, Racker enfatizou a importância do uso da contratransferência no trabalho analítico com importantes expansões conceituais: via situações contratransferenciais com a transferência de objetos introjetados do analista, seja de forma direta, isto é, ao paciente como indivíduo, ou de forma indireta, ao "paciente como fator importante dentro de outras relações de objeto do analista". Ainda, em seu trabalho, Racker fez referência à identificação complementar, que corresponderia à identificação do ego do analista com objetos internos do paciente, e a concordante, em que a identificação ocorre não com os objetos, mas com partes homólogas do paciente, por exemplo, entre ego do terapeuta e ego do paciente, ou id do terapeuta e id do paciente9. O desenvolvimento do conceito teve continuidade, passando à compreensão de que reações específicas no médico são advindas de qualidades específicas do paciente10. Ainda, segundo Bion, a contratransferência serve como forma não-verbal e primitiva de comunicação11. Dessa forma, a reação contratransferencial, quando recebe suficiente atenção, pode passar de obstáculo a ferramenta no tratamento, fornecendo não apenas informações ao médico sobre seu paciente como também influir diretamente sobre os desfechos terapêuticos, conforme assinalado por Abargil et al12.
A Escala para Avaliação da Contratransferência (EACT)13,14 se propõe como resposta para o desafio da detecção das manifestações contratransferenciais. Sendo a contratransferência um instrumento de investigação e de compreensão do paciente, ela desempenha um papel importante nos cuidados oferecidos, seja ela entendida ou não. Nesse contexto, se faz necessário o esclarecimento de como e quais fatores contribuem com as reações contratransferenciais e com a qualidade dos atendimentos fornecidos.
O estudo em questão buscou detectar essas manifestações nos médicos após o primeiro atendimento e associá-las com características sociodemográficas e diagnósticos dos pacientes, além de variações em sintomas depressivos, sintomas ansiosos e avaliação cognitiva.
Método
Trata-se de um estudo transversal, descritivo, com abordagem quantitativa15. O projeto foi desenvolvido no Ambulatório de Psiquiatria Geriátrica do Serviço de Psiquiatria do Hospital São Lucas (HSL) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). A população consistiu de pacientes idosos em consulta por livre demanda e atendidos nesse ambulatório no período de março a dezembro de 2022 e de médicos residentes e cursistas em especialização em psiquiatria do Serviço de Psiquiatria do HSL/PUCRS formandos do curso e da residência.
Os pacientes incluídos apresentavam idade igual ou superior a 60 anos que concordaram em participar da pesquisa após preenchimento do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Os médicos incluídos consistiram de todo o grupo de residentes e cursistas do terceiro ano do Curso de Especialização em Psiquiatria. Foram excluídos os participantes que não tinham capacidade de compreender os questionários aplicados e que não tinha representante legal presente ou que se recusaram a participar da pesquisa. Ao todo, não aceitaram participar do estudo seis pacientes com a justificativa de não desejar responder questionários. Apesar da EACT ser aplicada nos residentes, a análise estatística se baseia em dados dos pacientes e dos sentimentos identificados pelos examinadores. Os pacientes com evidente dificuldade cognitiva para compreender os questionários tiveram o TCLE assinado pelo responsável legal.
Todos os instrumentos foram aplicados na primeira consulta, após a assinatura do TCLE . Os participantes foram escolhidos conforme demanda espontânea no ambulatório de psiquiatria geriátrica, além dos médicos cursistas e residentes atuando nesse ambulatório. Os instrumentos utilizados foram um questionário sociodemográfico, Exame Cognitivo de Addenbrooke Revisado (ACE-R) nos pacientes com declínio cognitivo detectado na entrevista clínica, Inventário de Ansiedade Geriátrica (GAI) e Escala de Depressão Geriátrica (GDS) para pacientes com sintomas ansiosos e depressivos. Por questões logísticas e de tempo, além do estado psiquiátrico dos pacientes, algumas escalas não foram aplicadas na primeira consulta e, portanto, não foram incluídas neste estudo. A EACT e dados dos examinadores foram coletados em todos os atendimentos.
A EACT consiste de 23 itens distribuídos em três domínios: aproximação, afastamento e indiferença. A escala é preenchida pelo cursista ou residente responsável após o atendimento. As reações são avaliadas em escala Likert de quatro itens: nada, pouco, moderadamente e muito. O instrumento foi desenvolvido inicialmente por Eizirik et. al no contexto de detecção contratransferencial em pacientes em psicoterapia psicodinâmica breve13. Posteriormente teve adaptação e validação em estudo de 2012 na avaliação de pacientes vítimas de trauma14.
Os sintomas ansiosos foram avaliados com o GAI, um instrumento composto de 20 questões, autoaplicado ou aplicado por examinador, no caso do presente estudo, que apresenta afirmações descritivas de sintomas ansiosos das quais o paciente pode concordar ou discordar. Desenvolvida em 2007 e adaptada em 201116,17.
A GDS é um instrumento desenvolvido em 1983 para rastreio de depressão geriátrica. Consiste de 15 questões aplicadas pelo examinador com respostas afirmativas ou negativas por parte do paciente18. Adaptada por Almeida et al19.
O ACE-R é um exame cognitivo que avalia um escore subdividido em áreas: 1) Atenção e Orientação, subdividida em atenção e concentração, orientação, e registo; 2) Memória, subdividida em memória anterógrada, retrógrada, recordação e reconhecimento; 3) Fluência verbal; 4) Linguagem, subdividida em compreensão, escrita, repetição, nomeação e leitura; 5) Visual-espacial, subdividida em habilidades visuais espaciais e habilidades perceptivas20. Adaptada à versão brasileira em 200721.
Aspectos Éticos
O estudo foi desenvolvido seguindo a Declaração de Helsinki, todos os instrumentos foram aplicados na primeira consulta, após o preenchimento do TCLE. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da PUCRS (CAAE 89158218.5.0000.5336; Parecer 5.731.574).
Análise estatística
As variáveis quantitativas foram descritas por média e desvio padrão ou mediana e amplitude interquartílica. As variáveis categóricas foram descritas por frequências absolutas e relativas. Para comparar médias, os testes t-student ou Análise de Variância (ANOVA) complementada por Tukey foram utilizados. Os testes da correlação de Pearson ou Spearman foram aplicados para avaliar a associação entre as variáveis numéricas.
Para controle de fatores confundidores, a análise de Regressão Linear Multivariada com método de extração do modelo por Backward foi utilizada. Foram calculados o coeficiente de regressão ou angular (b), que mede o efeito no desfecho a cada aumento de uma unidade do fator, juntamente com o intervalo de 95% de confiança. Além disso, o coeficiente padronizado beta (β) também foi apresentado no intuito de comparar a força da associação entre as variáveis presentes no modelo multivariado por não possuir unidade de medida, sendo que quanto maior, mais forte é a associação. Por fim, o coeficiente de determinação (R2) foi calculado para determinar o percentual de explicação do modelo multivariado em relação a um desfecho específico. O critério para a entrada da variável no modelo foi de que apresentasse um valor p<0,10 na análise bivariada. O nível de significância adotado foi de 5% (p<0,05) e as análises foram realizadas no programa SPSS versão 27.0.
Resultados
Os dados sobre a caracterização da amostra de idosos foram agrupados na Tabela 1, com dados sociodemográficos e na Tabela 2 com dados clínicos. Os resultados do agrupamento da EACT estão incluídos na Tabela 3. A idade e sexo do examinador foram incluídos a cada escala. A idade média dos examinadores foi de 28,9 anos (DP = 2,2). Os itens da escala foram agrupados nos seus três domínios, sendo então feita média desses itens. O domínio Aproximação mostrou a maior média (14,9; DP = 4,5), enquanto Afastamento e Indiferença mostraram médias respectivamente de 2,01 (DP = 2,35) e 0,64 (DP = 1,22).
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