Rev. bras. psicoter. 2023; 25(1):109-135
Costa DFB, Sordi AO, Ornell F, Scherer JN, Marchi N, Limberger RP. Fatores associados a prejuízos de desempenho em usuários de Cannabis. Rev. bras. psicoter. 2023;25(1):109-135
Artigo Original
Fatores associados a prejuízos de desempenho em usuários de Cannabis
Factors associated with performance impairments in cannabis users
Fatores asociadas a prejuízos de desempenho en usuarios de cannabis
Diogo Fernando Bornancin Costa; Anne Orgler Sordi; Felipe Ornell; Juliana Nichterwitz Scherer; Nino Marchi; Renata Pereira Limberger; Felix Henrique Paim Kessler
Resumo
Abstract
Resumen
1 INTRODUÇÃO
Cannabis é a droga ilícita mais utilizada no mundo, e seu uso é um problema de saúde pública evidenciado sobretudo em adultos jovens, especialmente de países de renda mais alta1. Segundo dados da United Nation Office on Drugs and Crime, em 2014, a Cannabis era consumida por cerca de 182,5 milhões de adultos, o que corresponde a 3,8% da população mundial de 15 a 64 anos2. No Brasil, em 2012, a prevalência de consumo foi estimada em 2,5% nos adultos e 3,4 % nos adolescentes, representando mais de 3 milhões de adultos e 478 mil adolescentes3.
O padrão de consumo da cannabis varia do uso recreativo à adição. Há claras evidências que a utilização crônica dessa substância pode gerar dependência, diagnosticada quando há ao menos três dos sete critérios a seguir: gastar muito tempo em atividades relacionadas ao uso de cannabis, usa-la em maior quantidade ou por mais tempo do que o pretendido, desenvolver tolerância, fazer diversas tentativas frustradas de interromper o consumo, continuar consumindo-a apesar de problemas físicos e emocionais associados, reduzir ou parar de participar em outras atividades em função da cannabis e experienciar sintomas de abstinência4,5,18.
Uma revisão recente publicada por Volkow e cols identificou que, baseados em critérios do DSM-IV, cerca de 9% dos indivíduos que que experimentam cannabis desenvolverão dependência, risco que é aumentado para em torno de 17% se o início do consumo for na adolescência ou até 25 a 50% nos usuários diários dessa substância18 . Segundo dados do National Survey on Drug Use and Health, em 2016, somente nos Estados Unidos, aproximadamente 4 milhões de indivíduos maiores de 12 anos apresentaram critérios para Transtorno por uso de cannabis, quando há claros prejuízos decorrentes do uso recorrente dessa substância, que inclui problemas de saúde, persistência ou aumento no uso e déficits em desempenho nos estudos, trabalho e em tarefas domésticas67. Além disso, ressalta-se que o processo de transição do uso recreativo para a dependência é mais rápido se comparado a drogas lícitas como o álcool e o tabaco5.
Estudos prévios demonstraram que a auto regulação afetiva e o alivio de sintomas de estresse e / ou ansiedade são frequentemente a motivação primária para o consumo da cannabis. Por outro lado, a tentativa de automedicação também é um preditor de frequência do consumo6,7,8,9 e pode ser potencializada pela percepção pública errônea de que a droga é inofensiva, com poucos efeitos cerebrais prejudiciais e baixo potencial de dependência10.
Os dois principais princípios ativos do cannabis são o Δ-9-tetrahidrocanabinol (THC) e o Canabidiol (CBD).
Há evidências que estes compostos têm propriedades farmacológicas contrastantes, enquanto o THC tem sido associado a sintomas psicóticos, estudos em modelos animais sugerem que o CDB tem propriedades de redução ou bloqueio de episódios convulsivos, efeitos ansiolíticos, sedativos, antipsicóticos, antiinflamatórios e antieméticos11,12,13.
O Δ-9-tetrahidrocanabinol (THC) é um agonista de receptores canabinóides endógenos e é o principal responsável pelo efeito psicoativo da cannabis14. Diversos dados recentes apontam que nos países que promoveram políticas de descriminalização do uso de drogas, como os Estados Unidos, os níveis de THC encontrados na droga têm aumentado. Um estudo dosou a quantidade de THC em amostras confiscadas e encontrou que, nos últimos anos, tem ocorrido aumento de até quatro vezes na concentração de THC na marijuana das ruas, de 3%, em 1980, para 12%, em 201215. Esse aumento de THC pode estar associado ao aumento do potencial dependógeno da substância, especialmente quando o consumo é iniciado precocemente, como na adolescência4. Níveis mais altos de THC podem potencializar prejuízos decorrentes do uso de Cannabis, gerando mais sintomas de ansiedade, depressão, sintomas psicóticos e maior risco de envolvimento em acidentes de trânsito4 .
Além disso, a Cannabis está relacionada com o aumento da frequência de policonsumo de drogas, aumentando os efeitos deletérios no desenvolvimento cerebral de adolescentes e adultos jovens, déficits cognitivos, alterações motivacionais, desenvolvimento de esquizofrenia e sintomas crônicos de bronquite16,17,18,19. Ainda assim, há uma concepção popular de que seu uso causa pouco ou nenhum malefício à saúde, e há até certa "glamourização", nos meios de comunicação, do uso da maconha. Alguns indivíduos acreditam, ainda, que o uso de Cannabis pode causar benefícios na motivação ou maior sensação de bem-estar20,21.
As informações sobre os reflexos do Cannabis na saúde pública são controversas. Dados prévios demonstraram que o custo da Cannabis para à saúde pública é modesto, representando apenas 0,2% do custo total de doenças na Austrália, país com um dos maiores índices mundiais de uso de Cannabis4.Outras investigações demonstram que o uso crônico e pesado de Cannabis está associado a uma série de prejuízos no desempenho educacional, de trabalho e socioeconômico, especialmente relacionados a atrasos na carreira e menores rendas pessoais18,22,23. Entretanto, não estão definidos, na literatura, quais são os fatores neurobiológicos e psicossociais que explicam essa queda de desempenho. Não existem revisões específicas e mais abrangentes sobre esses fatores e sua relação com os prejuízos de desempenho, quando comparados com os de não usuários de Cannabis. Portanto, não estão claros quais são os sintomas, os possíveis danos e as alterações cerebrais que pudessem explicar para os profissionais de saúde, pacientes e familiares a associação do uso de Cannabis com a queda de desempenho e produtividade18,22,23.
2 OBJETIVO
Este trabalho tem como objetivo revisar as alterações emocionais, cognitivo-comportamentais e motivacionais decorrentes do uso agudo e crônico da Cannabis, a fim de tentar elucidar e clarear a sua relação com o desempenho educacional e profissional dos usuários.
3 MÉTODO
Esta pesquisa é uma revisão narrativa, realizada nas bases de dados Embase, Medline, PsycInfo e Web of Science. Por ser um tema amplo, foram utilizados diversos descritores, com o objetivo de aumentar o escopo das buscas. Os termos foram selecionados a partir das principais e mais prevalentes alterações relacionadas ao uso de Cannabis, citadas nas revisões sobre essa temática e discutidas com um supervisor especializado na área das adições (FHPK). Os termos utilizados para a pesquisa foram: "academic achievement", "academic performance", "adverse effects", "amotivational syndrome", "anxiety", "apathy", "cognition", "cold cognition", "decision-making", "delay discounting", "depression", "educational attainment", "educational outcomes", "emotions", "executive function", "financial stability", "hot cognition", "life outcomes", "life achievements", "impulsivity", "motivation", "school difficulties", "school dropout", "school performance", "socioeconomic assistance", "unemployment" e "work commitment". Esses termos foram cruzados com os termos "Cannabis", "marijuana", "THC" e "delta-9-tetra-hydrocannabinol".
A pesquisa foi realizada em 13 de novembro de 2018 e foram encontrados 38.152 artigos. Após a leitura do título e abstract, foram selecionados 64 artigos para esta revisão, dando-se preferência para artigos de revisão, artigos publicados nos últimos cinco anos, artigos com relevância histórica no contexto das teorias estudadas e artigos publicados em periódicos com maior fator de impacto. Priorizaram-se, ainda, artigos de coorte, visto que o objetivo do estudo consiste em clarificar uma possível associação causal. Foram excluídos artigos não publicados em ingles que não foram traduzidos para a língua inglesa e artigos com amostras de usuários com uso concomitante de outras drogas ilícitas.
Dos 64 artigos selecionados, doze tratavam de alterações no desempenho, e o restante, de alterações cognitivas, emocionais e motivacionais relacionadas ao uso de Cannabis. Muitas vezes, um artigo tratava de mais de um subtema simultaneamente.
4 RESULTADOS
Inicialmente, serão discriminadas as principais evidências relacionadas a um menor desempenho educacional e profissional. Depois, serão apresentadas as alterações no sistema nervoso central, alterações cognitivo-comportamentais, emocionais e motivacionais relacionadas ao uso de Cannabis, que possam contribuir para o entendimento da origem do prejuízo na performance dos usuários dessa droga.
4.1 Alterações em desempenho acadêmico, profissional e socioeconômico
Existem evidências de que o uso crônico e pesado de Cannabis está associado à sub-realização educacional e ao prejuízo na motivação, que podem ser mediadores potenciais de pobre desempenho funcional22. Nos Estados Unidos, um relatório do National Survey on drug Use and Health, publicado em 2013, constatou que 27,3% dos indivíduos que abandonaram o colegial e que tinham idade para estar na 12ª série eram usuários de Cannabis, comparados com 15,3% de indivíduos que eram usuários e mantinham-se na escola24. Assim, estudos encontraram que o uso precoce de Cannabis está associado ao prejuízo no desempenho escolar e ao aumento do risco de evasão, enquanto o uso pesado está associado à renda mais baixa, ao aumento da necessidade de assistência socioeconômica, ao desemprego, ao comportamento criminoso e à baixa satisfação com a vida18. Altos níveis de uso de Cannabis na adolescência predizem níveis mais elevados de desemprego, redução dos ganhos na idade de 25 anos e menores salários na idade de 29 anos25,26.
Uma metanálise integrativa de três coortes, na Austrália e na Nova Zelândia, avaliou a relação entre o uso máximo de maconha antes dos 17 anos de idade e resultados de desenvolvimento analisados até os 30 anos, em uma amostra de 2.537 a 3.765 indivíduos. Comparados a indivíduos que nunca usaram Cannabis, aqueles que usavam diariamente antes dos 17 anos apresentaram redução de cerca de 37% das taxas de término do colegial (high-school) (OR de 0,37, 95% IC 0,20 a 0,66) e de 38% da aquisição de diploma universitário (OR de 0,38, IC 0,22 a 0,66) e, posteriormente, aumentaram as taxas de dependência de Cannabis substancialmente, além do uso de outras drogas ilícitas e da apresentação de mais tentativas de suicídio22.
Um estudo avaliou dados colhidos durante oito anos, de uma coorte, de 1.253 indivíduos de uma universidade pública norte-americana, com o objetivo de investigar se o uso de Cannabis interfere na média de pontos da faculdade e no tempo de graduação, utilizando falta às aulas como um mediador desses desfechos. O estudo mostrou que o uso de marijuana estava relacionado com um número maior de falta às aulas, menores notas e um maior tempo para graduação27. Houve associação entre uso de Cannabis e prejuízo no ambiente acadêmico, mesmo com a limitação de não contabilizar os indivíduos que abandonaram os estudos, os quais também poderiam ser usuários de Cannabis.
Um estudo longitudinal de 25 anos foi conduzido para examinar a associação do uso de Cannabis antes dos 21 anos de idade a realizações educacionais, renda, dependência do Estado, desemprego, satisfação com relacionamentos e satisfação com a vida na idade de 25 anos. A amostra foi composta por 1.003 indivíduos, e foi identificada a quantidade média de uso de Cannabis dos 15 aos 21 anos de idade. Os jovens que fizeram uso por 400 vezes ou mais tinham a classificação mais alta de uso. A pesquisa mostrou que, quanto maior o uso de Cannabis antes dos 21 anos, menores eram os níveis de obtenção de graduação e de ganhos financeiros, havendo um aumento de dependência do Estado e de desemprego. Além disso, esses indivíduos relataram uma diminuição da satisfação com relações interpessoais e diminuição de satisfação com a vida. Quando ajustada para fatores confundidores, como doença mental comórbida e uso de outras substâncias, a associação mantinha-se19.
Outro estudo realizou o seguimento e a avaliação de 254 adolescentes de uma comunidade de classe média alta durante quatro anos do colegial. Eles tinham entre 14 e 15 anos, no início do estudo, e, ao final do estudo, entre 17 e 18 anos. A frequência do uso de Cannabis foi checada anualmente, e os registros escolares oficiais da performance acadêmica e o autorrelato de sintomas mentais foram acessados nas séries 9 e 12. O uso persistente de Cannabis, ao longo dos quatro anos do estudo, foi associado à média menor de notas e a à maior quantidade de sintomas externalizantes na série 12. A associação entre uso de Cannabis e pior desempenho acadêmico manteve-se quando controlados os fatores confundidores de sintomas externalizantes e os resultados da série 9. Os efeitos tornaram-se não significativos se controlados para o uso de álcool e tabaco28. Outro estudo longitudinal, também encontrou associação entre o uso de Cannabis e pior desempenho acadêmico, no entanto a associação se manteve quando analisado o fator confundidor referente ao consumo de álcool e tabaco29. Uma hipótese é que o prejuízo acadêmico pode começar mais precocemente, resultando em subestimação do declínio. Por isso, supõe-se que o baixo status socioeconômico pode explicar a associação do uso de Cannabis com o desempenho acadêmico e a saúde mental mais pobre, no entanto essa associação não vem sendo confirmada.
Um trabalho recente realizado na Holanda investigou a diferença de desempenho acadêmico em 4.323 estudantes, comparando os períodos em que alguns deles, de acordo com sua nacionalidade, tinham a possibilidade de adquirir Cannabis legalmente ou não. Foram analisados 57.903 resultados de cursos dos anos de 2009 a 2012. A restrição temporária ao acesso à Cannabis legal teve um efeito positivo forte nas notas dos estudantes afetados por essa medida. Tiveram uma melhora na performance, em média 0,093 desvios-padrão, e tiveram 5,4% mais chances de passar em cursos. Além disso, os participantes ainda referiram entender mais o conteúdo dos estudos no período em que não tinham acesso legal à Cannabis e, consequentemente, diminuíram o seu consumo30.
Um estudo longitudinal avaliou a relação da trajetória do uso de marijuana ao longo da vida (desde, aproximadamente, os 14 anos de idade) de 548 indivíduos (em que mais de 90% eram brancos) com o estado de desemprego na idade média de 43 anos. O grupo de usuários crônicos (indivíduos que usaram marijuana no início da adolescência, atingiram a quantia máxima de uso, numa base semanal, no fim da adolescência, e, desde então, diminuíram o uso progressivamente), quando comparado aos não usuários, tem uma chance significativamente maior, de ao menos 3 vezes mais desemprego na idade média de 43 anos (OR de 3,51, 95% IC 1,13 a 10,91), mesmo após controle para possíveis fatores de confusão31.
Finalmente, pesquisas mostraram que usuários de uso pesado e crônico de marijuana têm maiores taxas de absenteísmo do trabalho, se comparados a indivíduos que não a utilizam32. A relação entre o uso crônico de maconha desde o início da adolescência e o desemprego posterior pode, ainda, ser devido à produtividade reduzida dos usuários, resultante da falta de motivação para o trabalho, da diminuição da função cognitiva e de problemas de saúde mental e física31. O quadro 1 resume os possíveis efeitos deletérios do uso de Cannabis no desempenho socioeconômico e nos ambientes de estudo e de trabalho.
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