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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2023; 25(1):109-135



Artigo Original

Fatores associados a prejuízos de desempenho em usuários de Cannabis

Factors associated with performance impairments in cannabis users

Fatores asociadas a prejuízos de desempenho en usuarios de cannabis

Diogo Fernando Bornancin Costa; Anne Orgler Sordi; Felipe Ornell; Juliana Nichterwitz Scherer; Nino Marchi; Renata Pereira Limberger; Felix Henrique Paim Kessler

Resumo

A Cannabis é a droga ilícita mais utilizada no mundo, e seu uso está associado a prejuízo socioeconômico, acadêmico e profissional. Diversos são os malefícios decorrentes de seu consumo, contudo não há estudos que explorem, de forma ampla, os motivos pelos quais esses déficits em desempenho ocorrem. Este estudo é uma revisão narrativa, com artigos selecionados das bases de dados Embase, Medline, PsycInfo e Web of Science, com o objetivo de explorar quais são os déficits de desempenho associados ao uso de Cannabis, bem como quais são as possíveis alterações cognitivo-comportamentais, emocionais e motivacionais que poderiam explicá-los. O uso crônico de Cannabis resulta em mudanças no sistema nervoso central, compreendendo alterações no sistema endocanabinóide, sistema de recompensa cerebral e funcionamento cortical, resultando em déficits em diversos domínios cognitivos, comportamentais, emocionais e motivacionais. Percebe-se um prejuízo mais pronunciado na aprendizagem, atenção, memória, tomada de decisão, no controle inibitório, assim como um aumento de sintomas depressivos, ansiosos e disfóricos, que podem estar associados a um menor desempenho acadêmico, menor chance de obter graduação, mais evasão dos estudos, maior desemprego, maior absenteísmo ao trabalho, menores salários e maior necessidade de auxílio financeiro. Os resultados encontrados sugerem que os déficits em desempenho relacionados ao uso crônico da Cannabis podem ocorrer devido a fatores biopsicossociais, os quais se inter-relacionam gerando prejuízos em diversos domínios da vida dos usuários.

Descritores: Cannabis; Desempenho acadêmico; Desempenho profissional; Cognição; Motivação

Abstract

Cannabis is the most frequently used drug worldwide. Its use is often associated with socioeconomic, academic, and professional impairment. Although there are several harms resulting from its consumption, there are currently no studies that broadly explore why these performance impairments occur. This study is a narrative review, based on articles selected from the Embase, Medline, PsycInfo, and Web of Science databases. The objective of this study is to explore the performance deficits associated with cannabis use, as well as the potential cognitive-behavioral, emotional, and motivational changes that may explain them. Chronic cannabis use leads to changes in the central nervous system, involving the endocannabinoid system (the cerebral reward and cortical functioning system), resulting in deficits in several cognitive, behavioral, emotional, and motivational domains. There is significant impairment in learning, attention, memory, decision-making, and inhibitory control, as well as an increase in depressive, anxious, and dysphoric symptoms. These symptoms may be linked to poor academic performance, reducing the likelihood of obtaining a degree, higher levels of study avoidance, unemployment, and work absenteeism, lower salaries, and a greater need for financial assistance. These findings suggest that performance impairments related to chronic cannabis use may be due to biopsychosocial factors, which are interconnected and contribute to losses in various domains of the users' lives.

Keywords: Cannabis; Academic Performance; Professional Performance; Cognition; Motivation

Resumen

El Cannabis es la droga ilícita más consumida en el mundo, y su uso está asociado con daños socioeconómicos, académicos y profesionales. Son varios los perjuicios derivados de su consumo; sin embargo, no existen estudios que exploren ampliamente las razones por las que se producen estos déficits en el rendimiento. Este estudio es una revisión narrativa que utiliza artículos seleccionados de Embase, Medline, PsycInfo y Web of Science, con el objetivo de explorar los déficits de rendimiento asociados al uso de cannabis, así como las posibles alteraciones cognitivo-conductuales, emocionales y motivacionales que podrían explicarlos. El consumo crónico de cannabis provoca cambios en el sistema nervioso central, que incluyen alteraciones en el sistema endocannabinoide, el sistema de recompensa cerebral y el funcionamiento cortical, lo que resulta en déficits en varios dominios cognitivos, conductuales, emocionales y motivacionales. Se observa un deterioro más pronunciado en el aprendizaje, la atención, la memoria, la toma de decisiones y el control inhibitorio, así como un aumento en los síntomas depresivos, ansiosos y disfóricos. Estos síntomas pueden estar asociados a un menor rendimiento académico, menor posibilidad de obtener un título, mayor deserción de los estudios, mayor desempleo, mayor ausentismo laboral, salarios más bajos y una mayor necesidad de ayuda económica. Los resultados encontrados sugieren que los déficits en el rendimiento relacionados con el uso crónico de cannabis pueden ocurrir debido a factores biopsicosociales, que están interrelacionados y causan daños en varios dominios de la vida de los usuarios.

Descriptores: Cannabis; Rendimiento académico; Rendimiento profesional; Cognición; Motivación

 

 

1 INTRODUÇÃO

Cannabis é a droga ilícita mais utilizada no mundo, e seu uso é um problema de saúde pública evidenciado sobretudo em adultos jovens, especialmente de países de renda mais alta1. Segundo dados da United Nation Office on Drugs and Crime, em 2014, a Cannabis era consumida por cerca de 182,5 milhões de adultos, o que corresponde a 3,8% da população mundial de 15 a 64 anos2. No Brasil, em 2012, a prevalência de consumo foi estimada em 2,5% nos adultos e 3,4 % nos adolescentes, representando mais de 3 milhões de adultos e 478 mil adolescentes3.

O padrão de consumo da cannabis varia do uso recreativo à adição. Há claras evidências que a utilização crônica dessa substância pode gerar dependência, diagnosticada quando há ao menos três dos sete critérios a seguir: gastar muito tempo em atividades relacionadas ao uso de cannabis, usa-la em maior quantidade ou por mais tempo do que o pretendido, desenvolver tolerância, fazer diversas tentativas frustradas de interromper o consumo, continuar consumindo-a apesar de problemas físicos e emocionais associados, reduzir ou parar de participar em outras atividades em função da cannabis e experienciar sintomas de abstinência4,5,18.

Uma revisão recente publicada por Volkow e cols identificou que, baseados em critérios do DSM-IV, cerca de 9% dos indivíduos que que experimentam cannabis desenvolverão dependência, risco que é aumentado para em torno de 17% se o início do consumo for na adolescência ou até 25 a 50% nos usuários diários dessa substância18 . Segundo dados do National Survey on Drug Use and Health, em 2016, somente nos Estados Unidos, aproximadamente 4 milhões de indivíduos maiores de 12 anos apresentaram critérios para Transtorno por uso de cannabis, quando há claros prejuízos decorrentes do uso recorrente dessa substância, que inclui problemas de saúde, persistência ou aumento no uso e déficits em desempenho nos estudos, trabalho e em tarefas domésticas67. Além disso, ressalta-se que o processo de transição do uso recreativo para a dependência é mais rápido se comparado a drogas lícitas como o álcool e o tabaco5.

Estudos prévios demonstraram que a auto regulação afetiva e o alivio de sintomas de estresse e / ou ansiedade são frequentemente a motivação primária para o consumo da cannabis. Por outro lado, a tentativa de automedicação também é um preditor de frequência do consumo6,7,8,9 e pode ser potencializada pela percepção pública errônea de que a droga é inofensiva, com poucos efeitos cerebrais prejudiciais e baixo potencial de dependência10.

Os dois principais princípios ativos do cannabis são o Δ-9-tetrahidrocanabinol (THC) e o Canabidiol (CBD).

Há evidências que estes compostos têm propriedades farmacológicas contrastantes, enquanto o THC tem sido associado a sintomas psicóticos, estudos em modelos animais sugerem que o CDB tem propriedades de redução ou bloqueio de episódios convulsivos, efeitos ansiolíticos, sedativos, antipsicóticos, antiinflamatórios e antieméticos11,12,13.

O Δ-9-tetrahidrocanabinol (THC) é um agonista de receptores canabinóides endógenos e é o principal responsável pelo efeito psicoativo da cannabis14. Diversos dados recentes apontam que nos países que promoveram políticas de descriminalização do uso de drogas, como os Estados Unidos, os níveis de THC encontrados na droga têm aumentado. Um estudo dosou a quantidade de THC em amostras confiscadas e encontrou que, nos últimos anos, tem ocorrido aumento de até quatro vezes na concentração de THC na marijuana das ruas, de 3%, em 1980, para 12%, em 201215. Esse aumento de THC pode estar associado ao aumento do potencial dependógeno da substância, especialmente quando o consumo é iniciado precocemente, como na adolescência4. Níveis mais altos de THC podem potencializar prejuízos decorrentes do uso de Cannabis, gerando mais sintomas de ansiedade, depressão, sintomas psicóticos e maior risco de envolvimento em acidentes de trânsito4 .

Além disso, a Cannabis está relacionada com o aumento da frequência de policonsumo de drogas, aumentando os efeitos deletérios no desenvolvimento cerebral de adolescentes e adultos jovens, déficits cognitivos, alterações motivacionais, desenvolvimento de esquizofrenia e sintomas crônicos de bronquite16,17,18,19. Ainda assim, há uma concepção popular de que seu uso causa pouco ou nenhum malefício à saúde, e há até certa "glamourização", nos meios de comunicação, do uso da maconha. Alguns indivíduos acreditam, ainda, que o uso de Cannabis pode causar benefícios na motivação ou maior sensação de bem-estar20,21.

As informações sobre os reflexos do Cannabis na saúde pública são controversas. Dados prévios demonstraram que o custo da Cannabis para à saúde pública é modesto, representando apenas 0,2% do custo total de doenças na Austrália, país com um dos maiores índices mundiais de uso de Cannabis4.Outras investigações demonstram que o uso crônico e pesado de Cannabis está associado a uma série de prejuízos no desempenho educacional, de trabalho e socioeconômico, especialmente relacionados a atrasos na carreira e menores rendas pessoais18,22,23. Entretanto, não estão definidos, na literatura, quais são os fatores neurobiológicos e psicossociais que explicam essa queda de desempenho. Não existem revisões específicas e mais abrangentes sobre esses fatores e sua relação com os prejuízos de desempenho, quando comparados com os de não usuários de Cannabis. Portanto, não estão claros quais são os sintomas, os possíveis danos e as alterações cerebrais que pudessem explicar para os profissionais de saúde, pacientes e familiares a associação do uso de Cannabis com a queda de desempenho e produtividade18,22,23.


2 OBJETIVO

Este trabalho tem como objetivo revisar as alterações emocionais, cognitivo-comportamentais e motivacionais decorrentes do uso agudo e crônico da Cannabis, a fim de tentar elucidar e clarear a sua relação com o desempenho educacional e profissional dos usuários.


3 MÉTODO

Esta pesquisa é uma revisão narrativa, realizada nas bases de dados Embase, Medline, PsycInfo e Web of Science. Por ser um tema amplo, foram utilizados diversos descritores, com o objetivo de aumentar o escopo das buscas. Os termos foram selecionados a partir das principais e mais prevalentes alterações relacionadas ao uso de Cannabis, citadas nas revisões sobre essa temática e discutidas com um supervisor especializado na área das adições (FHPK). Os termos utilizados para a pesquisa foram: "academic achievement", "academic performance", "adverse effects", "amotivational syndrome", "anxiety", "apathy", "cognition", "cold cognition", "decision-making", "delay discounting", "depression", "educational attainment", "educational outcomes", "emotions", "executive function", "financial stability", "hot cognition", "life outcomes", "life achievements", "impulsivity", "motivation", "school difficulties", "school dropout", "school performance", "socioeconomic assistance", "unemployment" e "work commitment". Esses termos foram cruzados com os termos "Cannabis", "marijuana", "THC" e "delta-9-tetra-hydrocannabinol".

A pesquisa foi realizada em 13 de novembro de 2018 e foram encontrados 38.152 artigos. Após a leitura do título e abstract, foram selecionados 64 artigos para esta revisão, dando-se preferência para artigos de revisão, artigos publicados nos últimos cinco anos, artigos com relevância histórica no contexto das teorias estudadas e artigos publicados em periódicos com maior fator de impacto. Priorizaram-se, ainda, artigos de coorte, visto que o objetivo do estudo consiste em clarificar uma possível associação causal. Foram excluídos artigos não publicados em ingles que não foram traduzidos para a língua inglesa e artigos com amostras de usuários com uso concomitante de outras drogas ilícitas.

Dos 64 artigos selecionados, doze tratavam de alterações no desempenho, e o restante, de alterações cognitivas, emocionais e motivacionais relacionadas ao uso de Cannabis. Muitas vezes, um artigo tratava de mais de um subtema simultaneamente.


4 RESULTADOS

Inicialmente, serão discriminadas as principais evidências relacionadas a um menor desempenho educacional e profissional. Depois, serão apresentadas as alterações no sistema nervoso central, alterações cognitivo-comportamentais, emocionais e motivacionais relacionadas ao uso de Cannabis, que possam contribuir para o entendimento da origem do prejuízo na performance dos usuários dessa droga.

4.1 Alterações em desempenho acadêmico, profissional e socioeconômico

Existem evidências de que o uso crônico e pesado de Cannabis está associado à sub-realização educacional e ao prejuízo na motivação, que podem ser mediadores potenciais de pobre desempenho funcional22. Nos Estados Unidos, um relatório do National Survey on drug Use and Health, publicado em 2013, constatou que 27,3% dos indivíduos que abandonaram o colegial e que tinham idade para estar na 12ª série eram usuários de Cannabis, comparados com 15,3% de indivíduos que eram usuários e mantinham-se na escola24. Assim, estudos encontraram que o uso precoce de Cannabis está associado ao prejuízo no desempenho escolar e ao aumento do risco de evasão, enquanto o uso pesado está associado à renda mais baixa, ao aumento da necessidade de assistência socioeconômica, ao desemprego, ao comportamento criminoso e à baixa satisfação com a vida18. Altos níveis de uso de Cannabis na adolescência predizem níveis mais elevados de desemprego, redução dos ganhos na idade de 25 anos e menores salários na idade de 29 anos25,26.

Uma metanálise integrativa de três coortes, na Austrália e na Nova Zelândia, avaliou a relação entre o uso máximo de maconha antes dos 17 anos de idade e resultados de desenvolvimento analisados até os 30 anos, em uma amostra de 2.537 a 3.765 indivíduos. Comparados a indivíduos que nunca usaram Cannabis, aqueles que usavam diariamente antes dos 17 anos apresentaram redução de cerca de 37% das taxas de término do colegial (high-school) (OR de 0,37, 95% IC 0,20 a 0,66) e de 38% da aquisição de diploma universitário (OR de 0,38, IC 0,22 a 0,66) e, posteriormente, aumentaram as taxas de dependência de Cannabis substancialmente, além do uso de outras drogas ilícitas e da apresentação de mais tentativas de suicídio22.

Um estudo avaliou dados colhidos durante oito anos, de uma coorte, de 1.253 indivíduos de uma universidade pública norte-americana, com o objetivo de investigar se o uso de Cannabis interfere na média de pontos da faculdade e no tempo de graduação, utilizando falta às aulas como um mediador desses desfechos. O estudo mostrou que o uso de marijuana estava relacionado com um número maior de falta às aulas, menores notas e um maior tempo para graduação27. Houve associação entre uso de Cannabis e prejuízo no ambiente acadêmico, mesmo com a limitação de não contabilizar os indivíduos que abandonaram os estudos, os quais também poderiam ser usuários de Cannabis.

Um estudo longitudinal de 25 anos foi conduzido para examinar a associação do uso de Cannabis antes dos 21 anos de idade a realizações educacionais, renda, dependência do Estado, desemprego, satisfação com relacionamentos e satisfação com a vida na idade de 25 anos. A amostra foi composta por 1.003 indivíduos, e foi identificada a quantidade média de uso de Cannabis dos 15 aos 21 anos de idade. Os jovens que fizeram uso por 400 vezes ou mais tinham a classificação mais alta de uso. A pesquisa mostrou que, quanto maior o uso de Cannabis antes dos 21 anos, menores eram os níveis de obtenção de graduação e de ganhos financeiros, havendo um aumento de dependência do Estado e de desemprego. Além disso, esses indivíduos relataram uma diminuição da satisfação com relações interpessoais e diminuição de satisfação com a vida. Quando ajustada para fatores confundidores, como doença mental comórbida e uso de outras substâncias, a associação mantinha-se19.

Outro estudo realizou o seguimento e a avaliação de 254 adolescentes de uma comunidade de classe média alta durante quatro anos do colegial. Eles tinham entre 14 e 15 anos, no início do estudo, e, ao final do estudo, entre 17 e 18 anos. A frequência do uso de Cannabis foi checada anualmente, e os registros escolares oficiais da performance acadêmica e o autorrelato de sintomas mentais foram acessados nas séries 9 e 12. O uso persistente de Cannabis, ao longo dos quatro anos do estudo, foi associado à média menor de notas e a à maior quantidade de sintomas externalizantes na série 12. A associação entre uso de Cannabis e pior desempenho acadêmico manteve-se quando controlados os fatores confundidores de sintomas externalizantes e os resultados da série 9. Os efeitos tornaram-se não significativos se controlados para o uso de álcool e tabaco28. Outro estudo longitudinal, também encontrou associação entre o uso de Cannabis e pior desempenho acadêmico, no entanto a associação se manteve quando analisado o fator confundidor referente ao consumo de álcool e tabaco29. Uma hipótese é que o prejuízo acadêmico pode começar mais precocemente, resultando em subestimação do declínio. Por isso, supõe-se que o baixo status socioeconômico pode explicar a associação do uso de Cannabis com o desempenho acadêmico e a saúde mental mais pobre, no entanto essa associação não vem sendo confirmada.

Um trabalho recente realizado na Holanda investigou a diferença de desempenho acadêmico em 4.323 estudantes, comparando os períodos em que alguns deles, de acordo com sua nacionalidade, tinham a possibilidade de adquirir Cannabis legalmente ou não. Foram analisados 57.903 resultados de cursos dos anos de 2009 a 2012. A restrição temporária ao acesso à Cannabis legal teve um efeito positivo forte nas notas dos estudantes afetados por essa medida. Tiveram uma melhora na performance, em média 0,093 desvios-padrão, e tiveram 5,4% mais chances de passar em cursos. Além disso, os participantes ainda referiram entender mais o conteúdo dos estudos no período em que não tinham acesso legal à Cannabis e, consequentemente, diminuíram o seu consumo30.

Um estudo longitudinal avaliou a relação da trajetória do uso de marijuana ao longo da vida (desde, aproximadamente, os 14 anos de idade) de 548 indivíduos (em que mais de 90% eram brancos) com o estado de desemprego na idade média de 43 anos. O grupo de usuários crônicos (indivíduos que usaram marijuana no início da adolescência, atingiram a quantia máxima de uso, numa base semanal, no fim da adolescência, e, desde então, diminuíram o uso progressivamente), quando comparado aos não usuários, tem uma chance significativamente maior, de ao menos 3 vezes mais desemprego na idade média de 43 anos (OR de 3,51, 95% IC 1,13 a 10,91), mesmo após controle para possíveis fatores de confusão31.

Finalmente, pesquisas mostraram que usuários de uso pesado e crônico de marijuana têm maiores taxas de absenteísmo do trabalho, se comparados a indivíduos que não a utilizam32. A relação entre o uso crônico de maconha desde o início da adolescência e o desemprego posterior pode, ainda, ser devido à produtividade reduzida dos usuários, resultante da falta de motivação para o trabalho, da diminuição da função cognitiva e de problemas de saúde mental e física31. O quadro 1 resume os possíveis efeitos deletérios do uso de Cannabis no desempenho socioeconômico e nos ambientes de estudo e de trabalho.




4.2 Alterações cerebrais, cognitivo-comportamentais e emocionais

Estudos recentes demonstraram que há evidências de alterações estruturais no sistema nervoso central (SNC), nas áreas medial temporal (amígdala e hipocampo), frontal e cerebelar, associadas com a exposição à Cannabis16,18. O uso crônico de Cannabis está associado a alterações no SNC e no sistema endocanabinóide endógeno, comprometimento cognitivo e alterações motivacionais, principalmente quando o início de consumo ocorre na infância e adolescência quando há maior vulnerabilidade aos seus efeitos22,33,36,37,38.

Pesquisas sugerem que indivíduos com transtorno por uso de substâncias têm déficits de controle cognitivo que limitam sua capacidade de traduzir metas em cursos adequados de ação39. Estudos de imagem relataram déficits em funções executivas, que são refletidos por diminuições na atividade do córtex frontal, as quais interferem na tomada de decisão, na autorregulação, no planejamento, no controle inibitório e na memória de trabalho40.

O uso de Cannabis causa impacto em funções cognitivas críticas durante o estado agudo de intoxicação e por dias após o uso. Também causa prejuízo agudo em atenção, memória, memória de trabalho, tempo de reação, processamento de informação, aprendizagem, funções executivas (planejamento, raciocínio, resolução de problemas, controle de interferência e tomada de decisão), coordenação motora e performance motora16,41,42.

A flexibilidade cognitiva na tomada de decisão costuma estar alterada pelo uso agudo de Cannabis, com aumento da tomada de decisão de risco e da sensibilidade à recompensa. No entanto, não há ainda uma evidência robusta, com revisão sistemática e metanálise, comprovando alterações na tomada de decisão em usuários crônicos de Cannabis 42,43. Alguns estudos concluíram que o uso pesado de Cannabis por longo prazo resulta em prejuízos persistentes na atenção e na memória, que podem piorar com o uso regular da droga no decorrer dos anos e serem mais pronunciados com o início do uso na adolescência18.

Estudos de neuroimagem e imagem funcional, em usuários crônicos de Cannabis, demonstraram menor atividade em regiões cerebrais envolvidas nessas funções, se comparados a não usuários, mesmo com 28 dias de abstinência4. Também há evidência de efeitos prejudiciais do uso de Cannabis no controle inibitório, alteração que é encontrada, principalmente, em usuários de uso pesado que utilizam Cannabis regularmente44. Outro dado concordante é que usuários de uso pesado de Cannabis, mesmo quando não intoxicados, têm pior desempenho que os indivíduos controles em testes neuropsicológicos. Há trabalhos que sugerem que os déficits de longo prazo podem ser reversíveis ou manterem-se sutis, desde que a pessoa mantenha-se abstinente do uso16,18.

Uma revisão sistemática avaliou 105 estudos a respeito dos efeitos na cognição, resultantes do uso agudo e crônico de Cannabis. A memória e a aprendizagem verbal foram os domínios cognitivos mais afetados. Entre os domínios das funções executivas, foi encontrado prejuízo agudo claro no domínio da inibição comportamental, enquanto os outros domínios tiveram evidência de prejuízo inconsistente. Após a abstinência, observou-se melhora ou recuperação do prejuízo nessas funções em alguns estudos, mas o mesmo não se observou em outros42 .

Uma metanálise publicada em 2018 avaliou 69 estudos e encontrou que, adolescentes e adultos jovens, usuários pesados/frequentes de Cannabis quando comparados a controles (usuários não pesados ou indivíduos que não faziam uso de Cannabis) apresentaram pequeno tamanho de efeito (menor que um terço de desvio padrão), porém estatisticamente significante, em prejuízo cognitivo. Os maiores prejuízos foram identificados em aprendizagem, memória de longo prazo, funções executivas, velocidade de processamento e atenção. No entanto os autores reforçam que esses resultados não suportam a conclusão de que o uso frequente de Cannabis está associado com um prejuízo cognitivo grande ou moderado. Além disso ao analisar os estudos que avaliaram os indivíduos após um período de abstinência de 72 horas não foram encontrados déficits, com tamanho de efeito significativo, em domínios cognitivos44.

Uma síntese dos resultados encontrados pode ser observada no quadro 2. Outras informações referentes a alterações na tomada de decisão serão descritas no tópico seguinte.




Sugere-se que o uso agudo de Cannabis ocasiona mais comportamentos impulsivos e menor inibição de respostas desadaptativas, no entanto efeitos residuais parecem ser menos consistentes42. Nesse contexto, impulsividade é "uma predisposição para reações rápidas e não planejadas aos estímulos internos e externos sem considerar as consequências negativas dessas reações a si mesmas ou a outras", pode ser reflexo de um desejo de recompensas imediatas ou de incapacidade de postergar a gratificação e é um elemento chave no autocontrole cognitivo e comportamento dirigido a objetivo45,46,47.

Sabe-se que impulsividade é um fator de risco estabelecido para o uso de Cannabis ao longo da vida39,48. O comportamento impulsivo pode ser um traço de personalidade preexistente, que pode levar ao uso de drogas, no entanto consumir Cannabis pode levar a mudanças comportamentais que incluem alterações na impulsividade49. Logo, indivíduos que utilizam substâncias ilícitas podem ter esses traços pronunciados devido a características pessoais existentes previamente ao início do uso de psicoativos, o que não impede que o uso dessas substâncias até mesmo exacerbe essas características.

O uso regular de Cannabis também está associado com um aumento de risco de ansiedade e depressão, no entanto não foi estabelecida a causalidade para essa última informação50. Uma metanálise realizada em 2014, com 14 estudos longitudinais, revelou que usuários de Cannabis têm um uma chance 17% maior (OR de 1,17 com intervalo de confiança de 1,05 - 1,30, IC de 95%) para desenvolver depressão, quando comparados a controles não usuários. Usuários com padrão de uso pesado de Cannabis (usavam a droga ao menos semanalmente) tiveram 62% mais chance de desenvolver depressão (OR de 1,62 com intervalo de confiança de 1,21 - 2,16, IC de 95%), quando comparados a usuários leves e não usuários (51). Além disso, outro estudo demonstrou uma relação entre redução do uso de Cannabis e redução de sintomas depressivos entre mulheres adultas jovens que reportaram, ao menos, sintomas depressivos leves52 .

Nem todos os dados mostram associação clara entre o uso de Cannabis e a presença de sintomas depressivos ou ansiosos. Um estudo chileno realizado com 2.508 estudantes, com idade média de 14,5 anos, acompanhados por um período de 18 meses, encontrou que indivíduos com sintomas basais de transtorno de ansiedade generalizada, pânico e depressão tinham uma maior frequência de uso de Cannabis. No entanto, quando testada a contribuição de cada fator de forma isolada, somente sintomas de ansiedade generalizada mostraram uma associação independente com a frequência do uso subsequente de Cannabis [OR de 1,25 (1,09 - 1,44 IC de 95%)], porém com pequeno tamanho de efeito (53).

Já outra pesquisa que analisou dados obtidos de uma coorte realizada na Suécia, com 8.598 indivíduos, com idades entre 20 e 64 anos, em um seguimento de três anos, encontrou que o uso de Cannabis, no T0, estava associado com um RR de 1,22 [1,06 - 1,42 IC de 95%] para depressão e RR = 1,38 [1,26 - 1,50 IC de 95%] para ansiedade. Entretanto, quando o resultado foi ajustado para fatores confundidores, como uso de álcool e outras drogas ilícitas, tensão familiar, educação e local de educação, a associação não se manteve estatisticamente significante. Também houve associação entre sintomas depressivos e ansiosos em tempo zero, com um aumento de risco de usar Cannabis após três anos, no entanto a associação não se manteve quando ajustada para outras drogas ilícitas54.

4.3 Alterações motivacionais e de tomada de decisão

Usuários de Cannabis têm menor desempenho no Iowa Gambling Task (IGT) que controles não usuários de drogas (55, 56). O IGT é um teste laboratorial de tomada de decisão que avalia processos cognitivos (aprendizado e memória) e motivacionais (responsividade a ganhos e perdas)57. Os usuários crônicos, quando comparados aos controles, foram relativamente insensíveis a uma magnitude das perdas, mais sensíveis ao aumento da magnitude dos ganhos e demonstraram maior dependência de resultados recentes. Os resultados sugerem que processos psicológicos importantes para a tomada de decisão também podem estar comprometidos em usuários crônicos de Cannabis57.

Historicamente, esse uso tem sido associado à redução da motivação. A partir da década de 70, os pesquisadores passaram a dar mais ênfase para os efeitos na motivação dos usuários, decorrentes do uso crônico da droga. O termo "Síndrome amotivacional pelo uso de Cannabis" foi proposto por McGlothlin e West, que descrevem a síndrome como apatia e diminuição da habilidade de concentração, de seguir rotinas ou de dominar material novo com sucesso16,58. Eles afirmam que o uso de Cannabis pode diminuir o nível de atividade e de força de vontade e que esses indivíduos podem importar-se menos com o que ocorre em suas vidas, não desejar trabalhar regularmente, apresentar fadiga e falta de preocupação com a aparência59,60.

Há evidência laboratorial preliminar que suporta a associação entre o uso da Cannabis e a redução da motivação para comportamento relacionado à recompensa em usuários, quando comparados a controles (61). Também há evidência de que o uso pesado de Cannabis por longo tempo é associado à sub-realização educacional e ao prejuízo na motivação, propostos como medidores potenciais de pobre desempenho funcional22 .

Diversos são os fatores que poderiam estar relacionados com alterações na motivação decorrentes do uso de Cannabis, incluindo alterações cerebrais, como redução da síntese de dopamina no estriado, redução do nível de anandamida encontrado no líquor, alterações no funcionamento do sistema endocanabinoide e do sistema de recompensa cerebral. Essas alterações podem estar relacionadas a um estado emocional negativo, quando na abstinência de Cannabis, o que ocasiona um reforço negativo para abstinência e uma diminuição da importância de outros estímulos motivacionais quando comparados à Cannabis34,36,38,62. Apesar das alterações descritas anteriormente, há estudos que encontraram resultados discordantes a respeito do efeito do uso de Cannabis na motivação.

Um estudo publicado em 2006 avaliou o nível de motivação em uma amostra de 487 indivíduos, com idades entre 18 e 81 anos (média de 33,1 anos), sendo que 243 indivíduos eram usuários de uso pesado de Cannabis (utilizando-a todos os dias) e 244 indivíduos nunca a haviam utilizado. Não foi encontrada diferença no nível de motivação subjetiva entre os dois grupos, sendo que os indivíduos de ambos pareciam relativamente motivados17. Destaca-se que teria sido melhor se a motivação tivesse sido medida de forma objetiva, e não apenas subjetiva. O fato de terem sido utilizados somente autorrelatos pode limitar os resultados do estudo, visto que apatia é, frequentemente, associada a comprometimento de insight42, e usuários de uso pesado podem ter alterações cognitivas que comprometem a capacidade de insight37, o que contribuiria para a dificuldade de perceber os déficits causados pelo uso de Cannabis.

Nesse sentido, uma pesquisa realizada em uma comunidade na Jamaica, em que havia uso generalizado de maconha e cultura de seu uso, mostrou que usuários crônicos de Cannabis acreditavam que seu consumo resultava em efeitos motivacionais e tinham convicção de que ela era benéfica e melhorava a capacidade de trabalho árduo, motivo pelo qual referiram utilizá-la. O artigo comparou a produtividade de trabalhadores (cortadores de cana) - fumantes de Cannabis (77 indivíduos) e não fumantes (82 indivíduos) - em três campos de cana de açúcar, por três semanas, e concluiu que não houve diferença na produtividade dos grupos. Não houve também diferença com relação a suas propriedades ou à remuneração que ganhavam20. Contudo, o tamanho amostral foi bastante pequeno, e o tempo de seguimento, muito curto.

Uma pesquisa publicada em 2016 comparou o efeito do uso de Cannabis com e sem canabidiol em tomadas de decisão relacionadas a esforço, em um grupo de 17 indivíduos que não faziam uso pesado de Cannabis. Os resultados mostraram que o uso agudo de Cannabis com canabidiol reduz a probabilidade de escolhas que demandam mais esforço, quando comparado ao placebo. A pesquisa possuía ainda um outro estudo, que avaliou 40 indivíduos, dos quais 20 eram usuários de Cannabis, sendo que 18 destes utilizavamna diariamente. Foi avaliada a associação entre dependência de Cannabis, tomadas de decisão relacionadas a esforço e aprendizado de recompensa. Não foi encontrada diferença entre os grupos no EEfRT, no entanto o grupo que utilizava Cannabis possuía índices maiores de depressão e de uso de nicotina63. O efeito do THC pode ser modulado pelo canabidiol, um canabinoide não psicoativo presente em diversos produtos de Cannabis4. O estudo tem um N pequeno, assim, é necessário que se mantenha a investigação do efeito do canabidiol na motivação, pois surge a hipótese de que o canabidiol pode influenciar o efeito do THC. Este é um fator que deve ser considerado ao avaliarem-se os prejuízos decorrentes do uso de Cannabis.

Uma revisão sistemática de 22 estudos, publicada em 2018, avaliou os efeitos não agudos do consumo da Cannabis na motivação de usuários dessa substância. Foram incluídos estudos que utilizaram múltiplas maneiras de aferir a motivação, por auto relatos, testagens psicológicas e estudos de imagem cerebral. Os autores concluíram que há suporte parcial da ligação entre o uso crônico de Cannabis e redução na motivação, dos 22 artigos avaliados 9 encontraram correlação entre uso crônico de cannabis e diminuição na motivação. A dificuldade de chegar a um resultado mais definitivo ocorre pelas diferentes definições de motivação, as diferentes formas que esses parâmetros são testados e ao fato que muitos estudos não controlaram os fatores confundidores de forma mais intensa (podemos citar sintomas depressivos comórbidos e uso de outras drogas por exemplo). O trabalho destaca que são necessários mais estudos na área para se chegar a um dado com evidência mais robusta64.

Pela avaliação desses dados, não é possível estabelecer nexo causal entre o uso de Cannabis e alterações motivacionais. O uso crônico e pesado de Cannabis pode ser a causa de déficits em motivação, sendo possível que os indivíduos tivessem déficit prévio ao uso de Cannabis, ou que, já com déficit prévio, houvesse piora da motivação, resultante do uso da droga16 .

Existem críticas às afirmações de que o uso de Cannabis gera redução da motivação: muitos estudos apresentam falhas metodológicas, principalmente no que se refere à ausência de grupo controle e à ausência de dados representativos das amostras, além de muitos estudos reportarem usuários de múltiplas drogas, o que dificulta conclusões a respeito do efeito de uma droga em particular (65). Outra dificuldade, ao explorar-se motivação em indivíduos com TUS, é que comorbidades psiquiátricas comuns, como depressão e esquizofrenia, estão associadas independentemente a sintomas de apatia (39).

O quadro 3 sintetiza as principais alterações comportamentais, emocionais e motivacionais associadas ao uso de Cannabis, discriminando quais são as associações com o uso agudo, uso crônico e abstinência de Cannabis.




CONCLUSÃO

A revisão dos estudos permite concluir que há evidências de associação entre déficits em desempenho acadêmico, profissional e socioeconômico e uso crônico de Cannabis18,19,23. As evidências apontam que esses déficits ocorrem, provavelmente, devido a uma múltipla e complexa interação de fatores biopsicossociais. Entre os fatores responsáveis pelos déficits, estão as alterações cognitivas-comportamentais, emocionais, motivacionais e de tomada de decisão, decorrentes do uso da droga e, possivelmente, da influência do meio social e da influência de pares23 .

Outro possível fator associado aos déficits em desempenho são os danos no SNC associados do uso de Cannabis, que compreendem alterações no sistema endocanabinóide, no sistema de recompensa cerebral e no funcionamento cortical. Essas alterações mostram-se mais pronunciadas quando o consumo tem início na infância, na adolescência ou no começo da idade adulta, pois o cérebro em maturação é mais sensível aos efeitos de qualquer substância psicoativa16,18,34,35.

O uso de Cannabis pode estar associado com comprometimento no funcionamento cortical, principalmente no córtex pré-frontal, com interferência em tomada de decisão, autorregulação comportamental e emocional, controle inibitório, impulsividade e demais funções executivas, o que pode contribuir com tomadas de decisão de risco e aumento de sensibilidade a recompensas. É importante ressaltar que a disfunção cortical não se restringe ao período de abstinência de Cannabis21,39,40,42.

Apesar de haver resultados distintos quanto à possibilidade de haver comprometimento motivacional nos usuários de Cannabis, a maioria dos artigos de revisão demonstra que esse comprometimento existe16, no entanto, não há artigos de revisão sistemática ou metanálises que estudem essa associação de forma delimitada. Um dos motivos pelos quais podem haver resultados distintos nesse domínio pode estar relacionado ao nível de THC encontrado na Cannabis ao longo dos anos, visto que isso cria questões a respeito da relevância de estudos antigos sobre prejuízos causados pela Cannabis - especialmente estudos que avaliaram os efeitos a longo prazo, visto que é comprovado que uma maior concentração de THC encontrada na Cannabis está associada com uma maior quantidade de efeitos deletérios4. Por exemplo, dos três artigos que mostraram resultados de não alteração da motivação decorrente do uso de Cannabis, dois eram da década de 70. Quando se comparam a década de 80 e o ano de 2012, observa-se que a porcentagem de THC encontrada em amostras confiscados nas ruas dos Estados Unidos aumentou em 400%15.

Outro ponto a ser considerado é que usuários crônicos de Cannabis podem não identificar prejuízos em sua motivação decorrentes do uso de Cannabis, visto que alterações em motivação estão relacionadas diretamente aos seus objetivos almejados. As alterações motivacionais em usuários de uso crônico e pesado de Cannabis podem, justamente, estar relacionadas ao desejo e à motivação para alcançar objetivos menos ambiciosos ou que requerem menos esforço para serem obtidos. Desse modo, os indivíduos podem não demonstrar prejuízo na motivação em questionários autoaplicados, já que seus objetivos podem ser aquém do que seriam caso não fossem usuários de uso pesado de Cannabis. Indivíduos de uso crônico e pesado de Cannabis podem habituar-se a um novo padrão de ambições, e sua motivação pode estar relacionada a esse padrão. A própria Cannabis pode ser o maior motivador de usuários de uso crônico e pesado; logo, outras atividades podem ficar rebaixadas na escala individual de recompensa16,36,39,59,65.

O fator ambiental também pode influenciar a baixa produtividade acadêmica e laboral de um usuário de maconha, pois é comum que as pessoas com as quais ele relaciona-se também sejam coniventes com seus comportamentos. Alguns usuários de uso pesado de Cannabis podem participar de uma subcultura que não tende a enfatizar o sucesso acadêmico ou a aceitação de valores, como o planejamento, a pontualidade, a preocupação com o futuro e a racionalidade, que se inclinam a ser associados ao sucesso acadêmico59,65. Um estudo encontrou, ainda, associação do uso de Cannabis com experiências violentas, fato que pode ocorrer devido a esses indivíduos residirem em locais mais violentos ou por ser alterações comportamentais relacionadas ao uso de Cannabis. O efeito de pares também deve ser considerado, visto que, principalmente entre crianças, adolescentes e adultos jovens, usuários de Cannabis têm mais chance de ter colegas que também a utilizam23 .

Entre as limitações deste estudo, inclui-se o fato de haver métodos de pesquisa que dificultam sua reprodutibilidade, já que os critérios de inclusão e exclusão de artigos foram pouco específicos e restritivos. A seleção e busca dos artigos foi complexa, ampla e quase artesanal, sendo de acordo com as principais evidências e hipóteses sobre o tema disponíveis na literatura e com a experiência dos autores na área. Outro ponto importante é o fato de que a maioria dos artigos não define o que é um uso pesado de Cannabis, sendo que há uma variação nesse conceito de uso ao menos semanalmente até ao menos 3 vezes na semana nos artigos revisados. Em estudos epidemiológicos uso pesado ou regular de Cannabis é definido como uso diário ou quase diário, no entanto esse parâmetro não foi aplicado a maioria dos artigos, o que compromete a comparação dos resultados em uma revisão narrativa66.

Por outro lado, este estudo é um dos primeiros na literatura que explora mais amplamente os prejuízos de desempenho em usuários de Cannabis, saindo da vertente mais comumente vista, a de política do terror, a qual costuma enfatizar danos mais graves como a esquizofrenia, mas que parece não sensibilizar os jovens em geral. Nesse sentido, apresentamos uma ampla gama de hipóteses causais (alterações emocionais, comportamentais, cognitivas, motivacionais e em tomada de decisão, a influência do ambiente social e o efeito de pares), relacionada a esses evidentes prejuízos funcionais associados ao uso de Cannabis, que poderiam ocasionar redução de desempenho.

Baseando-se nos estudos dessa revisão, fica claro que os danos causados pelo uso da Cannabis são complexos e difíceis de mensurar, o que também complica inferências sobre causalidades. Ainda assim, a soma das evidências resultou no levantamento de possíveis efeitos causais do déficit de desempenho, o qual mostra que o uso da Cannabis, especialmente o uso crônico de jovens, pode provocar alterações neuroquímicas em diferentes sistemas cerebrais. Essas alterações podem gerar um aumento de sintomas de ansiedade, depressão e disforia, bem como diminuição da capacidade de uma série de funções cognitivas, resultando no fenótipo de um indivíduo com baixa motivação para tarefas mais complexas, alto ímpeto de procrastinação, pouca iniciativa e com alteração de valores relacionados ao desempenho acadêmico e laboral16,18,36.

Por fim, o estudo também conseguiu trazer à tona informações importantes para a prática clínica, visto que elas poderão ser utilizadas para psicoeducar os pacientes e profissionais de saúde quanto aos principais efeitos colaterais resultantes do uso de Cannabis e a repercussão dos prejuízos em áreas extremamente importantes da vida desses indivíduos. No material suplementar do artigo é possível visualizar uma tabela com os principais achados dos artigos avaliados nesse estudo.


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Material suplementar:












a. Psiquiatra especialista em psiquiatria - adição. Curitiba/PR - Brasil
b. Psiquiatra e professora do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre/RS - Brasil
c. Psicólogo e doutor em psiquiatria pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre/RS - Brasil
d. Biomédica e doutura em psiquiatria pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre/RS - Brasil
e. Psicólogo. Porto Alegre/RS - Brasil
g. Psiquiatra e professor do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre/RS - Brasil

Autor correspondente

Felix Henrique Paim Kessler
E-mail: fkessler@hcpa.edu.br

Submetido em: 20/04/2023
Aceito em: 07/06/2023

Contribuições: Diogo Fernando Bornancin Costa - Conceitualização, metodologia, coleta de dados, redação, revisão; Anne Orgler Sordi - Conceitualização,metodologia, coleta de dados, redação, revisão; Felipe Ornell - Redação, revisão; Juliana Nichterwitz Scherer - Redação, revisão; Nino Marchi - Metodologia, coleta de dados, redação, revisão; Renata Pereira Limberger - Redação, revisão; Felix Henrique Paim Kessler - Conceitualização,metodologia, coleta de dados, redação, revisão, supervisão.

 

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