Rev. bras. psicoter. 2023; 25(1):57-75
Oliveira NP, Oliveira SES, Mansur-Alves M, Carvalho LF. O novo modelo diagnóstico de transtornos da personalidade da CID-11 e a sua aplicação. Rev. bras. psicoter. 2023;25(1):57-75
Artigo Original
O novo modelo diagnóstico de transtornos da personalidade da CID-11 e a sua aplicação
The new ICD-11 diagnostic model for personality disorders and its application
El nuevo modelo de diagnóstico de la ICD-11 para los trastornos de la personalidad y su aplicación
Neidsonei Pereira de Oliveira; Sérgio Eduardo Silva de Oliveira; Marcela Mansur-Alves; Lucas Francisco de Carvalho
Resumo
Abstract
Resumen
A classificação dos transtornos da personalidade (TP) e de outras psicopatologias é uma tarefa de longa data. A profusão de classificações, até o início do século XX, implicava em dificuldades de comunicação entre os profissionais de saúde e instâncias governamentais. Inexistia um sistema diagnóstico uniforme e com autoridade sobre o tema1. A solução para essa "torre de babel" de classificação das psicopatologias foi a instituição de um sistema oficial de classificação que oferecesse uma linguagem comum. Até o ano de 2021 eram duas as principais "línguas da psiquiatria moderna" (classificações de referência): o "Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais", conhecido como DSM, da American Psychiatric Association (APA), em sua 5ª edição publicada em 2013 (DSM-5)2, e a "Classificação Internacional de Doenças" (CID), elaborada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), em sua 10ª edição publicada em 1989. A novidade no campo da nosologia é a recente aprovação da 11ª edição da CID (a CID-11), que entrou em vigor em janeiro de 2022 para a OMS3. Na CID-11 é adotada uma nova classificação dos TP, a qual se configura como uma das principais mudanças em relação à sua edição anterior. Ela abandona o modelo de classificação dos TP em categorias distintas (ex.: paranoica, histriônica, dependente, dissocial etc) e passa a adotar um modelo dimensional, baseado essencialmente em níveis de gravidade de sintomas do TP. A pertinência de se adotar o modelo dimensional já vinha sendo pauta das discussões acadêmicas e científicas há muito tempo, tendo sido, inclusive, objeto das comissões de revisão do DSM, que culminaram na proposição de um modelo híbrido (dimensional e categórico) para o DSM-54.
A compreensão detalhada das características e mudanças trazidas pelo novo modelo dos TP da CID-11, o qual se apresenta como o primeiro modelo primordialmente dimensional em um manual diagnóstico oficial em saúde mental, faz-se essencial para pesquisadores e profissionais que trabalham e pesquisam na área. Conforme apontam McCabe e Widiger5, a CID-11 passa a ser o sistema de classificação diagnóstico autoritativo para os 194 países membros da OMS, dentre os quais está o Brasil. Após um período de necessária transição entre sistemas e de difusão dessas mudanças trazidas pela CID-11, será requerido dos profissionais e demais envolvidos na prestação de serviços de atenção à saúde, especialmente em se tratando de saúde publica e coletiva, o conhecimento da nova nomemclatura bem como seu uso adequado e refletido. Dessa forma, pode surgir algumas questões essenciais nesse cenário, a saber: por que a mudança de um paradigma categórico para um dimensional de diagnóstico dos TP? Qual o histórico por detrás desse modelo (como chegamos até aqui)? Quais as mudanças teóricas e práticas esse novo modelo propicia? Como diagnosticar um TP a partir desse novo modelo? Quando sua aplicação se iniciará no Brasil? Partindo dessas questões, o presente artigo tem como objetivo apresentar o novo modelo diagnóstico dos TP segundo a proposta trazida na CID-11 e suas implicações e aplicações. Para tanto, discutiremos inicialmente questões pertinentes à conceituação de personalidade e de TP, de modo a compreendermos os aspectos conceituais que fundamentam o novo modelo da CID-11.
A personalidade e os transtornos de personalidade
Definir personalidade é uma tarefa complexa que dependerá do autor e da perspectiva teórica que fundamentará o seu conceito6. Em linhas gerais, personalidade é a integração dinâmica da totalidade da experiência subjetiva de uma pessoa e padrões de pensamento e comportamento, conscientes e inconscientes, incluindo experiências de si mesmo e do mundo ao redor, desejos e medos habituais, pontos de vista e estados intencionais7. Em um conceito breve, no DSM-5, personalidade é definida "como um padrão de percepção, relação e pensamento sobre o ambiente e si mesmo" (p. 7632). O funcionamento mal adaptativo da personalidade levaria ao que chamamos de TP, implicando em uma perturbação clinicamente significativa no comportamento, cognição ou regulação emocional. A definição de TP e sua classificação, no entanto, é uma área problemática na ciência da personalidade, havendo (ainda que em minoria) quem questione se de fato existe algo como um TP8. Historicamente, Livesley et al.9 apontam que a conceituação moderna de TP se inicia com Pritchard em 1837, ao usar o termo insanidade moral quando a pessoa apresentava grave perturbação no comportamento social sem prejuízo aparente no estado mental. Nas formulações iniciais dos TP, as teorias psicodinâmicas tiveram muita influência, as quais são identificadas nas primeiras edições da CID e do DSM, seja pelos conceitos adotados nas descrições de classes nosológicas, seja no uso de alguns termos. Apenas na terceira edição do DSM ocorreu o afastamento definitivo da abordagem psicanalítica. A partir dela se passou a adotar uma base "ateórica" e um modelo nosológico categórico e qualitativo10.
Nas edições mais recentes dos manuais nosológicos (CID-11 e DSM-5) são observados pontos de convergência no conceito de TP. O avanço conceitual ocorre na identificação do cerne da patologia da personalidade, sendo que um TP passa a ser definido basicamente por disfunção de aspectos do self e interpessoal2,3. Problemas no funcionamento das experiências internas (identidade e autodirecionamento), bem como perturbações nos modos de interações interpessoais (empatia e intimidade), são os fatores que melhor predizem os TP e a gravidade da patologia da personalidade. Assim, a definição de TP sai de uma perspectiva qualitativa/categórica para uma quantitativa/dimensional. Essa nova definição emerge de modelos psicométricos, cuja definição é empiricamente baseada, e essas questões conceituais dos TP estão intimamente relacionadas aos sistemas de classificá-los. É nesse meandro que as questões referentes aos modelos diagnósticos categórico e dimensional aparecem.
Modelos categórico e dimensional dos transtornos da personalidade no DSM e na CID
O debate que protagonizou as discussões referentes aos TP na elaboração dos atuais manuais nosológicos (DSM-5 e CID-11) centrou-se basicamente na questão se haveria uma mudança do sistema diagnóstico para uma abordagem dimensional ou se continuaria com o modelo categórico. Falar em uma classificação categórica significa dizer que entre duas categorias há diferenças qualitativas caracterizadas por variações em processos, estruturas e mecanismos. Por sua vez, uma classificação dimensional implica constatar diferenças em quantidade ou grau de algo11. O texto do DSM-5 exemplifica essa definição quando afirma que a classificação categórica se traduz no conceito de que TP são "síndromes clínicas qualitativamente distintas", enquanto na perspectiva dimensional os TP "representam variantes mal adaptativas de traços da personalidade que se fundem imperceptivelmente com a normalidade e entre si" (p. 6462).
Enquanto, por um lado, qualidade se refere à propriedade que determina a essência ou natureza de algo, por outro, quantidade é uma medida de algo, inclusive de mesma natureza. Assim, pela classificação categórica a pessoa que tem um diagnóstico de TP de uma categoria específica é diferente de outra pessoa com um TP de outra categoria, e diferente da que não tem nenhum TP. Pela classificação dimensional (adotada na CID11), um indivíduo com TP se diferencia quantitativamente de uma outra pessoa sem TP por apresentar níveis maiores dos traços patológicos. Ainda, as pessoas com TP variam entre si por meio de perfis quantitativos diferenciados nos cinco traços patológicos do modelo, nomeados como afetividade negativa, distanciamento, dissociabilidade, desinibição e anancastia. Maiores detalhes sobre vantagens e desvantagens dos modelos categórico e dimensional podem ser vistos em Wright11, Trull e Durrett12, e em Widiger e Trull13.
O modelo dimensional de TP da CID-11 é apenas um dentre outros possíveis modelos dimensionais para os TP (ver modelos dimensionais para os TP em Trull & Durrett12). No caso do modelo da CID-11, a dimensionalidade é operacionalizada na gravidade da patologia da personalidade, cuja avaliação é o elemento essencial para o diagnóstico, e nos traços proeminentes da personalidade, nomeados de afetividade negativa, distanciamento, dissociabilidade, desinibição e anancastia. Esses domínios constituem um componente opcional no sistema diagnóstico e servem como descritores qualificadores da patologia da personalidade. Cabe aqui também destacar que esses traços têm relações estreitas e se configuram como variações extremas dos traços gerais da personalidade de acordo com o modelo dos cinco grandes fatores12,14-17. Desse modo, partindo de evidências empíricas e de modelos psicométricos, a OMS chegou na formulação do atual sistema diagnóstico dos TP.
O modelo dimensional de transtornos da personalidade da CID-11
Em 2010 foi criado o Grupo de Trabalho da CID-11 para revisão do capítulo referente aos TP, com representantes de todas as regiões da OMS. A comunidade científica e profissional estava insatisfeita com a classificação categórica da CID-10. Havia uma relutância em diagnosticar uma pessoa com TP, em parte, por causa de conceitos anteriores das primeiras versões da CID, que considerava a condição imutável, generalizada e intratável. De pronto, o Grupo de Trabalho concluiu que havia fortes argumentos para a proposição de um modelo totalmente dimensional, rejeitando-se a proposta de modelo híbrido, então em discussão para o DSM-518. Vale destacar aqui que o modelo híbrido do DSM-5 foi o resultado da falta de consenso e críticas à proposta inicial do modelo dimensional apresentado pelo Grupo de Trabalho de Revisão dos TP para o DSM-519,20. Ademais, o próprio modelo híbrido não foi aprovado para ser o modelo oficial do DSM-5, mas sim um modelo alternativo, integrando a Seção III "Instrumentos de Avaliação e Modelos Emergentes" 2,4, numa tentativa de suavizar a transição entre os modelos categórico e dimensional21. A intenção da OMS e da APA era uma harmonização entre os manuais nosológicos, previstos para publicação em 2012 para o DSM-5 e 2014 para CID-1122,23. O atraso de cinco anos para publicação da CID-11, que só ocorreu em 2019, possibilitou que se tirasse proveito da experiência do DSM-5 e se respondesse às críticas recebidas por ele, a exemplo da complexidade, da linguagem da teoria dos traços com termos não familiares aos clínicos, da radicalização da mudança, e a questão do TP borderline19.
A complexidade deixou de ser uma crítica ao modelo dimensional em vista da simplicidade do modelo da CID-11 para os TP. A simplificação pode ser observada pela simples comparação visual entre a Figura 1 (esquema de operacionalização do modelo híbrido do DSM-5) e a Figura 2 (esquema de operacionalização do modelo dimensional da CID-11). A publicação do modelo alternativo (híbrido) do DSM-5 em 2013 amenizou o argumento de ser radical a mudança do modelo categórico para o dimensional. Não porque deixou de ser radical em si a mudança, mas o intervalo de publicação entre DSM-5 e CID-11 possibilitou o conhecimento do modelo de avaliação por dimensões de traços patológicos (ainda que híbrido) pela comunidade acadêmica e clínica em geral.
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