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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2023; 25(1):43-55



Artigo Original

Tecnologia social para saúde de pessoas em situação de rua na pandemia

Social technology gor the health of people in street situation in the pandemic

Tecnología social para la salud de las personas en situación de calle en la pandemia

Gabrielle Figueiredo Bruno; Ana Paula Pereira Nabero; Consuelena Lopes Leitão; Marck de Souza Torres; Breno de Oliveira Ferreira

Resumo

As pessoas em situação de rua estão entre os grupos mais vulneráveis à pandemia de Covid-19, e, sem intervenções ou estratégias adequadas, elas foram expostas a situações muito complexas. O presente estudo descreve a construção de uma tecnologia social voltada para a saúde das pessoas em situação de rua durante a pandemia de Covid-19 no Amazonas. A metodologia envolveu revisão de estudos sobre o tema, oficinas com pessoas em situação de rua e por fim, a elaboração de uma cartilha. A investigação, tematização e problematização identificaram seis itinerários e apontaram que as estratégias de prevenção em saúde para as pessoas em situação de rua, desenvolvidas durante a pandemia, envolveram barreiras para o acesso aos serviços, bem como a necessidade de flexibilizar as estratégias de acordo com a lógica das próprias pessoas em situação de rua, que precisam ser compreendidas em suas necessidades e particularidades, para o desenvolvimento de políticas que envolvam a escuta qualificada e a assistência humanizada.

Descritores: Tecnologia social; Pessoas em situação de rua; Covid-19

Abstract

Homeless people are among the most vulnerable groups to the Covid-19 pandemic, and without adequate interventions or strategies, they have been exposed to very complex situations. The present study describes the construction of a social technology aimed at the health of homeless people during the Covid-19 pandemic in Amazonas. The methodology involved a review of studies on the subject, workshops with homeless people and, finally, the elaboration of a booklet. The investigation, thematization and problematization identified six itineraries and pointed out that the health prevention strategies for homeless people, developed during the pandemic, involved barriers to accessing services, as well as the need to make strategies more flexible according to the logic of homeless people themselves, who need to be understood in their needs and particularities, for the development of policies involving qualified listening and humanized assistance.

Keywords: Social technology; People in street situation; Covid-19

Resumen

Las personas sin hogar se encuentran entre los grupos más vulnerables ante la pandemia de Covid-19, y sin intervenciones o estrategias adecuadas, se han visto expuestas a situaciones muy complejas. El presente estudio describe la construcción de una tecnología social dirigida a la salud de personas sin hogar durante la pandemia de Covid-19 en Amazonas. La metodología implicó una revisión de estudios sobre el tema, talleres con personas en situación de calle y, finalmente, la elaboración de un cuadernillo. La investigación, tematización y cuestionamiento identificó seis itinerarios y apuntó que las estrategias de prevención en salud de las personas en situación de calle, desarrolladas durante la pandemia, implicaron barreras de acceso a los servicios, así como la necesidad de flexibilizar las estrategias según la lógica de las personas en situación de calle. mismos, que necesitan ser comprendidos en sus necesidades y particularidades, para el desarrollo de políticas que involucren escucha calificada y asistencia humanizada.

Descriptores: Tecnología social; Personas en situación de calle; Covid-19

 

 


"Vi ontem um bicho Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato, Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem" 1.


O poderoso poema O Bicho, de Manoel Bandeira1, retrata cenas comuns de desigualdade social. O autor transformou um cenário cruel de exclusão e invisibilidade em poesia, mas a realidade não é tão bela quanto suas palavras. A urbanização e o crescimento das grandes cidades escancaram as problemáticas das pessoas que vivem nas ruas, e isso ocorre pela invisibilidade relacionada a estigmas, falta de integração nas políticas públicas, e pouco reconhecimento de direitos humanos.

As Pessoas em Situação de Rua (PSR) se encontram vivendo em calçadas, praças e marquises, apresentando-se como uma das faces mais extremas da pobreza urbana, além de serem alvos dos mais variados tipos de olhares, sentimentos e reações. Trata-se de um grupo heterogêneo, que faz dos espaços da rua locais de moradia. Vivem em situação de extrema pobreza, vínculos familiares fragilizados ou rompidos e comumente estão expostos à violência, uso/abuso de substância psicoativas, insegurança alimentar, indisponibilidade de água potável, privação de sono, expondo a várias doenças e/ou situações de vulnerabilidades2.

A partir de dados analisados no CadÚnico e reportadas por munícipios ao governo federal no Censo SUAS no ano de 2013, essa população somava 70.007 e no ano de 2019 eram 90.158, e as causas para esse aumento devem-se, especialmente, à crise econômica e ao aumento do desemprego3. Os dados não são precisos, especialmente por estarem desatualizados ou subnotificados.

Até o presente momento, mesmo com um panorama aquém da realidade, a Pesquisa Nacional da População em Situação de Rua, realizada entre agosto de 2007 e março de 2008 pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, mostrou que havia cerca de mil e quatro pessoas com mais de 18 anos em situação de rua em Manaus, Amazonas2. Vale pontuar que esse mesmo Ministério, em 2019, foi extinto pelo governo Bolsonaro. As fragilidades dos dados "oficiais" revelam a falta de interesse do Estado na criação de estratégias efetivas de cuidados, e reforçam ainda mais os processos de segmentação, periferização e marginalização da população em situação de rua4.

No contexto de pandemia, o Amazonas chegou a apresentar uma das maiores taxas de mortalidade da região Norte, e vivenciou fortes cenas de calamidade pública.5 Se para a população em geral, a pandemia trouxe consequências sociais, econômicas, psicológicas e estruturais, para as pessoas que vivem na rua, que enfrentam restrições impostas pelas medidas de isolamento social, a pandemia se tornou ainda mais problemática5,6. Com isso, as pessoas em situação de rua estão entre os grupos mais vulneráveis à pandemia de Covid-19, e, sem intervenções ou estratégias adequadas, elas foram expostas às múltiplas condições de privação, incluindo as dificuldades de satisfação das necessidades mais básicas, além da constante exposição aos diferentes tipos de violência6,7. Em relação às medidas para mitigar a transmissão comunitária do vírus, a maioria das recomendações de saúde sobre a Covid-19 transmitidas à sociedade não foram aplicáveis ao cotidiano daqueles que estão em situação de rua. Assim, deve-se destacar a importância de ações articuladas entre a sociedade civil, universidades, setores de saúde e assistência social para combater o contágio do coronavírus nessa população8.

Estudos apontam que algumas iniciativas isoladas voltadas para o cuidado às pessoas em situação de rua partiram principalmente do voluntariado, realizado ora por profissionais que trabalhavam em instituições de saúde, ora por ONGs e ações individuais, que auxiliavam nesse cuidado. Poucas foram as iniciativas dos governos federal, estaduais e municipais.7 Particularmente, as ONGs criaram estratégias para distribuição de água limpa e itens de higiene, auxílio na segurança alimentar, cuidados em saúde mental e criação de materiais informativos sobre como se proteger da Covid-198.

O cuidado voltado às PSR deve considerar as características desse grupo e responder às suas necessidades a partir de ações intersetoriais. Conforme indica o estudo de Wijk e Mângia9, as especificidades do trabalho com a PSR por vezes foca em cuidados imediatos (e.g. alimentação, banho, descanso), entretanto, grande parte dos profissionais de saúde não recebem formação ou treinamento informativo acerca da realidade das PSR. Assim, nota-se a escassez de estudos sobre o desenvolvimento de tecnologias sociais de capacitação para o cuidado em saúde, bem como de materiais informativos que auxiliem profissionais em suas atuações com as PSR.

Nesta perspectiva, as tecnologias sociais têm emergido no cenário nacional como um movimento que se organiza através de seu potencial criativo e inclusivo de grupos insurgentes da população, e gera alternativas para suprir as suas necessidades e/ou demandas sociais. A tecnologia social pode ser conceituada como um instrumento, produto, técnica ou metodologia que é capaz gerar soluções ou propostas mediante algum tipo de problema social e que atenda aos quesitos de simplicidade, baixo custo, fácil aplicabilidade, interação com a comunidade e geração de impacto social10. Compreendendo a necessidade de fortalecer a intersetorialidade, e qualificar os recursos humanos, este artigo, no formato de relato de experiência, buscou descrever a construção de uma tecnologia social em formato de cartilha educativa para os profissionais de saúde e da assistência social, acerca da saúde das populações em situação de rua no cenário de pandemia, com a participação direta das próprias pessoas que vivenciam as diferentes realidades da rua. Assim, a cartilha buscou sensibilizar e orientar profissionais de saúde e assistência social acerca da atenção e cuidado especializados para PSR, e apontar alguns procedimentos de acolhimento e direcionamento que podem ser utilizados, de forma a ampliar o acesso e o cuidado no contexto de pandemia de Covid-19.


MÉTODO

Trata-se de um estudo descritivo, do tipo relato de experiência, que possibilitou a construção de uma tecnologia social sobre os cuidados em saúde para com as pessoas em situação de rua no contexto de pandemia de Covid-19, em Manaus, Amazonas, entre agosto de 2020 e dezembro de 2021.

A proposta surgiu a partir da elaboração do plano de enfrentamento à pandemia de Covid-19 proposto pela Universidade Federal do Amazonas, especialmente pela Faculdade de Psicologia, incluindo docentes e discentes do curso de graduação e pós-graduação em Psicologia como executores do projeto intitulado "Ciência na Rua".

A partir do projeto, a equipe desenvolveu a cartilha em quatro etapas: (I) elaborou-se e submeteu-se o projeto ao Comitê de Ética e Pesquisa; (II) buscou-se na literatura conhecimentos existentes a respeito do tema por meio de uma revisão narrativa; (III) realizou-se oficinas - círculos de cultura - com as pessoas em situação de rua, com foco nos cuidados em saúde no cenário pandêmico; (IV) elaborou-se o conteúdo, roteiro, ilustrações e diagramação da cartilha.

Na Etapa I, o projeto foi elaborado e submetido ao Comitê de Ética e Pesquisa, com aprovação sob parecer de nº 4.620.169. O projeto previu atividades de campo com inspiração etnográfica, incluindo entrevistas e grupos focais com as pessoas em situação de rua e profissionais de saúde vinculados à centros e espaços institucionais de assistência.

Na Etapa II, foi realizada uma revisão narrativa da literatura, a partir de buscas nas seguintes bases de dados: Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS), Publons, Web of Sciences e no portal PubMed. Foram utilizadas, na equação de busca, as seguintes palavras-chave: "pessoas em situação de rua" and "Covid-19", "homeless" and "Covid-19" e "sin hogar" and "Covid-19".

Na Etapa III, as oficinas foram realizadas seguindo o método de Paulo Freire, os círculos de cultura, estruturado em três atos: investigação, tematização e problematização11.


1) Ato de investigação: a equipe do projeto buscou, no universo vocabular das pessoas na rua e da sociedade onde elas vivem, as palavras e temas centrais de sua biografia e da experiência vivida nas
ondas da pandemia de Covid-19.
2) Ato de tematização: foi codificado e decodificado esses temas, buscando o seu significado social, tomando assim consciência do mundo vivido, a rua.
3) Ato de problematização: buscou-se superar uma primeira visão mágica da temática por uma visão crítica do mundo, partindo para a transformação do contexto vivido pelas pessoas em situação de rua.


As oficinas ocorreram em sua maioria em centros comunitários e unidades de saúde na cidade de Manaus, e diferente dos grupos focais, tiveram a produção e criação de materiais acerca de temáticas previamente estabelecidas (e.g. acesso, redes sociais, autocuidado e estratégias de prevenção). Foram realizadas dez oficinas de produção e criação sobre o cuidado em saúde na pandemia, que trouxeram a exposição de narrativas, cartazes, murais, fotografias, pinturas e outros materiais construídos e deram aporte para a elaboração de uma tecnologia social - a cartilha -, concluindo a Etapa IV. Contatou-se um profissional ilustrador e um designer gráfico, para confecção das ilustrações, formatação, configuração e diagramação das páginas da cartilha*, esboçados na Figura 1. Organizou-se a escrita, linguagem e layout da cartilha de acordo com as recomendações para o desenvolvimento de materiais educativos12.


Figura 1. Capa do Manual de Cuidado & Acolhimento (2023).



O projeto Ciência na Rua foi financiado pelo Edital nº 003/2021 - Programa de Apoio à Popularização da Ciência, Tecnologia e Inovação - POP C, T&I - da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas - FAPEAM.


RESULTADOS E DISCUSSÕES

Entende-se que o conceito de Desenvolvimento Sustentável é o resultado de uma organização integrada, e que envolve eixos globais entre problemas ambientais crescentes, questões socioeconômicas relativas à pobreza, desigualdade e preocupações com um futuro saudável para a humanidade13. Elaborado pela ONU e parcerias, foi construído um plano de ação da Agenda 2030, onde estão inseridos os 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) e suas 169 metas, interconectadas, indivisíveis e equilibradas nas dimensões ambiental, econômica, social e institucional. No Objetivo 3, busca assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar para todas e todos, em todas as idades, e no Objetivo 11, tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis14.

A inserção da saúde como um dos ODS traz o reconhecimento de ser um elemento-chave ao desenvolvimento humano, com vastos e multidimensionais determinantes sociais de saúde para tornar as cidades mais saudáveis. Partindo do enfoque de compreensão das cidades como espaços de produção de saúde e adoecimento face o processo de determinação social, pode-se ressaltar que as trajetórias de vidas das pessoas em situação de rua são marcadas pela maior vulnerabilidade e menor inserção nas cidades, principalmente em relação aos direitos humanos, justamente por não pertencerem aos grupos dominantes na sociedade. Combinados a toda a conjuntura de estar em situação de rua, os componentes de vulnerabilidade e fragilidade marcados pela interseccionalidade (gênero, raça, classe, etnia, geração e outros) resultam em diferentes histórias, dificuldades e prioridades de vida15,16. A partir de uma leitura sistêmica e social, colocouse em debate pautas de como garantir os direitos universais para as PSR, levando em conta suas diferenças, sem apagá-las ou torná-las motivo para a impossibilidade de garantia de direitos, considerando que cenário de pandemia de Covid-19 alargou todas essas situações de riscos e vulnerabilidades das pessoas em situação de rua, comprometendo, principalmente, os Objetivos 3 e 11 da Agenda 2030.

Com inspiração etnográfica, a equipe do projeto (mestrandos, estudantes de iniciação científica e docentes do curso de Psicologia vinculados à Universidade Federal do Amazonas) foi até os centros comunitários, serviços assistenciais, praças, ruas, abrigos e unidade básicas de saúde, a fim de realizar entrevistas narrativas e grupos focais com as pessoas em situação de rua. Tratou-se do ato de investigação, e o material foi analisado a partir do método de análise de narrativas. Participaram dez pessoas em situação de rua, maiores de dezoito anos, sendo oito homens e duas mulheres. Possuíam entre 27 e 54 anos, e em sua maioria, cor/raça preta, ensino fundamental incompleto e naturalidade amazonense. O tempo em que viviam na rua variou entre três meses e treze anos. As entrevistas e os grupos focais contaram com o apoio de um roteiro semiestruturado, que ajudou nessa coleta preliminar de dados.

Esse movimento de escutatória mostrou a pouca acessibilidade dessas pessoas às informações essenciais acerca da pandemia e as dificuldades de implementar as formas de prevenção e cuidado sugeridas no discurso oficial das redes de saúde. Marcadores de estigma e preconceitos estiveram presentes nos relatos, trazendo elementos que comumente reforçam o cenário de exclusão social e reiteram violências e sofrimentos da vida nas ruas16. As pessoas em situação de rua, que já são estigmatizadas socialmente (e.g. vagabundas, drogadas, irresponsáveis, ladronas e outras), são agora rotuladas como veiculadoras do vírus da Covid-19, por não cumprirem as medidas sanitárias, decretos e campanhas que estimularam o "fique em casa" durante a primeira onda da pandemia17. Observa-se que somente uma educação em saúde permeada por um cuidado ético-político, desconstrói visões estigmatizantes, mantidas pela modernidade neoliberal que invisibiliza as alteridades e deslegitima as vivências das minorias18.

Há também vulnerabilidades programáticas, e os entrevistados apontaram que os abrigos e centros implementados na pandemia, tendiam a recorrer a regras que dificultavam tanto a entrada como acesso inicial, como a permanência dessas pessoas nos espaços institucionais17. O viver na rua remonta especificidades e um lugar de fala próprio da liberdade da rua. As narrativas pontuavam a importância de que os serviços e os profissionais pudessem flexibilizar e democratizar esses espaços19,20 indica que para o cuidado com pessoas em situação de rua é necessário romper com o saber-poder colonizador facetado pela lógica biomédica, que reduz e anula as singularidades.

Outros comentários mostraram que as barreiras no acesso aos serviços incluem o medo de ser levado para a prisão, medo de ser assassinado enquanto dorme, e o despreparo dos profissionais para lidar com demandas específicas de cada pessoa. Muitos entrevistados assinalaram que a maioria das iniciativas voltadas ao contexto partiram de ONGs, igrejas e ações individuais - e foi exatamente o curso de ação e efetividade destes grupos que definiram os modos de subsistência das pessoas em situação de rua durante a pandemia.

Historicamente, o cuidado a população em situação de rua se deu por meio de filantropia vinculadas à Igreja Católica. Muitos desses serviços continuam vinculados as instituições cristãs, mas a necessidade da elaboração de legislações e equipamentos públicos levou a criação no ano de 2009 da Política Nacional da População em Situação de Rua (PNPSR) que preconiza visibilidade e direitos com mobilização do Estado. Contudo, cabe refletir que com o avanço da agenda neoliberal que aprofunda desigualdades, é fundamental que lutas sociais visem continuar as cobranças para implementação das diretrizes da PNPSR21,22,23.

As narrativas dos grupos focais mostraram que: as formas de se alimentar era, principalmente, através de doações e entrega de projetos voluntários; os recursos como água, tanto para consumo quanto para banho, eram usufruídos por meio da chuva e de torneiras públicas; máscara, álcool gel e luvas eram obtidos, raramente, via doações de drogarias; os sentimentos de desamparo institucional foram frequentes; e as interrupções dos serviços de saúde mental para aqueles que usam/abusam de substâncias psicoativas afetaram significativamente nos itinerários terapêuticos.

Em um segundo momento, ocorreu o ato de tematização, seguindo as observações já coletadas pelas entrevistas e grupos focais, e as análises sistemáticas do material recolhido pela literatura nacional e internacional sobre a saúde das pessoas em situação de rua durante a pandemia.

A sensibilização e a qualificação dos profissionais de saúde e de assistência social e das instituições foram codificadas como fundamentais no processo de cuidado em saúde. As práticas institucionais podem interferir tanto positiva quanto negativamente na assistência e acompanhamento de pessoas em situação de rua7. Assim, cabe também aos profissionais, prover assistência humanizada e desburocratizada, contemplando as necessidades específicas e individuais da população em situação de rua15.

Ainda, vale ressaltar que a assistência às pessoas em situação de rua nos serviços não requer especialistas, e sim trabalhadores informados, disponíveis para o cuidado, conhecedores de técnicas e ferramentas que os apoiem nesse processo22. O cuidado e acolhimento podem ser realizados por todo e qualquer membro da equipe, e isso inclui a recepção administrativa, a equipe da segurança/vigilância, enfermeiros e auxiliares de enfermagem, médicos, psicólogos, assistentes sociais etc. Por isso, elegeu-se nesse ato a importância e necessidade de qualificar esses profissionais por meio da construção de uma tecnologia social elaborada com a participação direta das pessoas em situação de rua.

O terceiro momento se deu pelo ato da problematização. Foram desenvolvidas oficinas de produção e criação com as pessoas em situação de rua em praças, centros, serviços comunitários, unidades de saúde e outros espaços que facilitassem a reunião desse grupo. As oficinas objetivaram, além da troca de saberes científicos sobre a Covid-19 e o cotidiano dessas pessoas, com o propósito interventivo de prevenção e informação, construir caminhos orientativos sobre como os profissionais da rede poderiam melhorar a qualidade da assistência ofertada. Para a realização das ações foram utilizadas técnicas de produção de cartazes, telas de pinturas, murais e fotografias.

As atividades consideraram os procedimentos de biossegurança e foram adotadas medidas de prevenção sanitária em todas as ações do projeto, de forma a minimizar prejuízos e potenciais riscos, além de prover cuidado e preservar a integridade de todos. Nas oficinas, também foram distribuídos Kits "Ciência na Rua" para os participantes, contendo máscaras, álcool gel, garrafinhas de água, materiais de higiene corporal, camiseta e bolsa personalizadas com a identidade visual do projeto.

Após todas as discussões apresentadas nas oficinas, a cartilha19 intitulada "Manual de cuidado & acolhimento" foi elaborada seguindo seis itinerários formativos: (1) Como as pessoas em situação de rua foram afetadas durante a pandemia; (2) Pessoas em situação de rua em Manaus, Amazonas: quem são e onde estão; (3) Caminhos para o cuidado da saúde da população em situação de rua; (4) Centros de apoio e acolhimento para pessoas em situação de rua; (5) Checklist do profissional: fazendo saúde na rua; (6) Como conhecer melhor a população em situação de rua.

No primeiro itinerário são apontadas algumas evidências da realidade das pessoas em situação de rua com enfoque na pandemia. São elencadas as formas de abrigamento instaladas, as dificuldades de alimentação, a sobrevivência e geração de renda na rua com o fechamento do mercado, as movimentações e mudanças de territórios geográficos, dentre outras particularidades desse cenário de restrições.

O segundo itinerário traz a realidade geral das pessoas em situação de rua de Manaus, Amazonas. A população em situação de rua é um grupo heterogêneo, mas pode revelar um padrão se considerarmos certos contextos sociais, econômicos e até regionais. No estado do Amazonas, por exemplo, há a questão da demanda crescente da migração, mais notoriamente de países como a Síria, Cuba e Venezuela. Além disso, destaca-se a região da África Oriental, que inclui diferentes países, e também é conhecida como Leste da África. O marcador social etnia é fortemente marcado no contexto interseccional dessa população16. Mostra também as realidades de famílias que vivem nas ruas, as particularidades de crianças e adolescentes em situação de exploração e as vivências das pessoas com orientação sexual e/ou identidade de gênero não normativa e que estão em situação de rua.

No terceiro itinerário, é apresentado como ao se deparar com uma pessoa em situação de rua, quais são os primeiros passos para que se possa prestar assistência e acolhimento de forma adequada. O material destaca que incialmente uma escuta qualificada (passo 1), e seguida a assistência humanizada (passo 2). São apontadas situações de como: aprender a flexibilizar o atendimento; combater o preconceito e o estigma na assistência; facilitar o acompanhamento e cuidado com os pets e o direcionamento para acolhimento institucional.

No quarto itinerário, caso seja necessário redirecionar o indivíduo para que receba assistência de forma integral (insumos básicos, orientação, apoio social e psicológico etc.), pode-se procurar algumas das instituições listadas e indicadas no material, que contempla endereço, telefone e principais serviços ofertados por cada local.

No quinto itinerário, há um checklist do profissional acerca da sua atuação com as pessoas em situação de rua. O material inclui observações de legislações, indica posturas em um atendimento inicial e fomenta uma reflexão acerca de tudo que foi apontado na cartilha. No sexto e último itinerário, são elencadas sugestões de leitura, filmes, músicas e cursos que abordem as vidas de pessoas em situação de rua em seus roteiros.

A construção da linguagem da cartilha se deu predominantemente de frases na voz ativa, como se estivesse dialogando com os leitores. Buscou-se, ainda, utilizar frases curtas, com uma linguagem popular e de fácil leitura, para garantir a compreensão de diferentes realidades profissionais e institucionais. A identidade visual "Ciência na Rua" esteve presente em todas as páginas do material.

A cartilha contém imagens e registros fotográficos de pessoas reais em situação de rua da cidade de Manaus. São sujeitos que participaram do projeto, consentiram o uso da imagem e escolheram suas próprias fotografias. Uma versão preliminar foi então apresentada às PSR, que sugeriram alterações, melhorias na escrita de termos populares, além da propositura de novas formatações. A validação e aprovação das PSR foi um processo importante ao longo do projeto, principalmente por reconhecer esses sujeitos como participantes ativos em todas as etapas executadas. Após as novas inserções, a cartilha foi reapresentada para as PSR. Por fim, a tecnologia social elaborada (cartilha) foi então divulgada pela Editora da Universidade Federal do Amazonas, catalogada com ISBN, e amplamente disseminada nas mídias, redes sociais, serviços de saúde e assistência social, gerências e outros espaços formativos.

A equipe de trabalho percebeu o quanto as pessoas em situação de rua já eram, mesmo antes da pandemia, apagadas ou mesmo maculadas pela sociedade, e como a Covid-19 trouxe à tona processos de denúncia da marginalização. Esses relatos foram essenciais para compreender o papel das instituições públicas, incluindo a própria Universidade, em oferecer soluções efetivas para os diferentes contextos assolados pelas vulnerabilidades das PSR. Nesse caso, a negligência e a invisibilidade alcançam tal proporção, que a pandemia sequer chega a ser considerada uma urgência, ou uma nova crise de saúde pelas PSR, e as preocupações se relacionam com a própria sobrevivência na/da rua. Tais situações ajudaram a equipe a reorganizar os processos formativos dos estudantes e docentes, bem como colaborar na organização de uma rede entre ensino, pesquisa e assistência.

Para a equipe, foi diante do distanciamento dos serviços de saúde para com as PSR, juntamente com a baixa acessibilidade de informações sobre o coronavírus, que gerou incertezas sobre o curso da doença e a execução prática dos atendimentos, é que o projeto "Ciência na Rua" trouxe a construção de uma rede de estudantes e profissionais comprometidos com uma psicologia pautada na justiça social, trazendo experiências extramuros, contribuindo na formação de psicólogos posicionados em defesa da dignidade humana, de oportunidades iguais e de relações sociais equânimes.

Considera-se que ao dialogar diretamente com as pessoas em situação de rua, que subsidiaram a elaboração do material educativo, as ações de promoção do cuidado incluídas neste material possam obter êxitos e ganhar resultados positivos na assistência em saúde às pessoas em situação de rua. Ao projetar a voz dessas pessoas, possibilita-se direito a sua própria existência, além de descolonizar a escuta dos profissionais da saúde para sensibilizar saberes e práticas com foco no cuidado-ético-político que não segregam, mas pelo contrário, possibilitam integração e visibilidade de direitos.


CONCLUSÃO

Investigar a organização social das pessoas em situação de rua e criar estratégias que auxiliem no seu atendimento se caracteriza como um movimento importante, visto que essa população apresenta especificidades históricas, urbanas, culturais e valorativas que precisam ser consideradas. Tais conhecimentos auxiliam diretamente na criação e continuidade de políticas públicas que devem valorizar os profissionais que atuam nesta área, com condições dignas de atividade laboral para oferecer atendimentos adequados as necessidades dessas pessoas.

Pensar e construir uma construção de uma cartilha como tecnologia social sobre os cuidados em saúde para com as pessoas em situação de rua no contexto de pandemia de Covid-19 se caracterizou como um desafio, além de chamar a atenção para a desnaturalização do funcionamento de uma sociedade que exclui esta população com lógicas de higienização dos ambientes urbanos, que estigmatiza e responsabiliza as pessoas pela sua condição.

Descrever a realidade das pessoas em situação de rua durante a pandemia de Covid-19, e desenvolver uma tecnologia social, se mostraram como propostas de contribuir com os estudos e pesquisas contínuas para atualizar informações baseadas em evidências sobre o trabalho da assistência em saúde e sobre a realidade dessa população que apresenta particularidades referentes aos diferentes contextos advindos das regionalidades nas cidades e municípios deste país.

Ao apontar na cartilha a ideia de itinerários como caminhos a serem seguidos nos atendimentos destas pessoas, buscou-se destacar a importância de compreender as disposições de impermanência dessa população e a necessidade advinda de uma construção de mobilidade e movimento que deve ser respeitada.

Dentre os itinerários, foram identificados os arranjos de como essas pessoas foram afetadas no contexto da pandemia, desde a alocação dos abrigos, a dificuldade de subsistência até as mudanças constantes de território geográfico. Tais itinerários tratam também da importância da identificação de quem são estas pessoas em seus espaços. Em Manaus foram encontrados migrantes e famílias com crianças e adolescentes, além das pessoas com orientação sexual e/ou identidade de gênero não normativa e em situação de rua, o que indica marcadores sociais que necessitam de respostas que envolvem um contexto interseccional.

Por fim, para que os demais itinerários sejam seguidos, se faz necessário o devido investimento na política pública e nas pessoas que fazem parte desse processo. Estes itinerários apontam para necessidade de profissionais que exerçam a escuta qualificada, a assistência humanizada, conheçam a legislação e atualizem conhecimentos para adotar uma postura diferenciada com a renovação de estratégias para o exercício contínuo de criatividade e para aprender a flexibilizar o atendimento que envolvem o cuidado em saúde.

Conclui-se que as políticas públicas para essa população devem considerar estratégias de cidadania que envolvem escutar as necessidades de quem vive a realidade da rua, para possibilidade de inclusão e de construção de projetos de vida para essa população que precisa ser visibilizada. Tais ações refletem diretamente na melhoria do índice de desenvolvimento humano, nas ações para o desenvolvimento sustentável, o que eleva substancialmente a qualidade de vida da população em geral.


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Universidade Federal do Amazonas, Faculdade de Psicologia - Manaus/AM - Brasil

Autor correspondente

Breno de Oliveira Ferreira
E-mail: breno.oli@hotmail.com / E-mail alternativo, de preferência institucional: breno@ufam.edu.br

Submetido em: 30/11/2022
Aceito em: 29/03/2023

Contribuições: Gabrielle Figueiredo Bruno - Coleta de Dados, Conceitualização, Investigação, Metodologia, Redação - Preparação do original; Ana Paula Pereira Nabero - Conceitualização, Metodologia, Redação - Preparação do original, Redação - Revisão e Edição, Supervisão; Consuelena Lopes Leitão - Conceitualização, Gerenciamento de Recursos, Investigação, Metodologia, Redação - Preparação do original, Redação - Revisão e Edição, Validação, Visualização;Marck de Souza Torres - Conceitualização, Investigação, Metodologia, Redação -Preparação do original, Redação - Revisão e Edição, Supervisão; Breno de Oliveira Ferreira - Coleta de Dados, Conceitualização, Gerenciamento do Projeto, Investigação,
Metodologia, Redação - Preparação do original, Redação - Revisão e Edição, Supervisão.

 

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