Rev. bras. psicoter. 2023; 25(1):13-23
Reis MEBT, Santos BL, Souza LO. Se abusada fui, abusadora serei? Estudo exploratório com fatos clínicos psicanalíticos. Rev. bras. psicoter. 2023;25(1):13-23
Artigo Original
Se abusada fui, abusadora serei? Estudo exploratório com fatos clínicos psicanalíticos
If I was abused, will I be an abuser? Exploratory study with psychoanalytic clinical facts
Si fui abusado, ¿seré un abusador? Estudio exploratorio con hechos clínicos psicoanalíticos
Maria Elizabeth Barreto Tavares Reis; Beatriz Leal Santos; Larissa Osete Souza
Resumo
Abstract
Resumen
INTRODUÇÃO
O desenvolvimento psicossexual e a constituição do aparelho psíquico1 são pontos nodais da teoria psicanalítica. O superego, instância decorrente da identificação com as figuras parentais, que exercem o papel coercitivo na vida da criança, é a responsável pela imposição da moral internalizada e imposta ao ego diante das exigências instintuais2. Destaca-se que o superego é considerado herdeiro do complexo de Édipo. O superego se configura a partir das imagos parentais, exigindo do ego o cumprimento do ideal de perfeição através da auto-observação e do autojulgamento2. Durante a vivência do complexo de Édipo, o menino deseja a mãe e compreende a presença do pai com rivalidade, enquanto a menina deseja o pai e investe a mãe com sentimentos de hostilidade3. Tendo em vista a impossibilidade de realizar o desejo incestuoso, a criança precisa se haver com a angústia de castração, e espera-se que o conflito edipiano sucumba à repressão. Convém ressaltar que pessoas de ambos os sexos podem vivenciar o Édipo direto e invertido, contribuindo para que, finalmente, o indivíduo realize a escolha do objeto amoroso de forma hetero ou homossexual.
Do ponto de vista kleiniano, o complexo de Édipo ocorre precocemente e inicia no segundo semestre do primeiro ano de vida4. A princípio, relacionado aos objetos parciais - seio bom e seio mau, pênis bom e pênis mau - e, posteriormente, aos objetos totais, quando a criança percebe que tanto o seio quanto o pênis englobam aspectos bons e maus. Inicialmente "a libido oral ainda predomina"4 assim, movidos pela frustração por não possuir o seio, desejos orais "são transferidos do seio da mãe para o pênis do pai"4. Tais desejos estão diretamente relacionados ao ciúme da mãe, pois a criança acredita que a mãe "recebe esse objeto desejado"4. Ao analisar as vivências do Édipo precoce, a autora também aborda o surgimento da "inveja primária"4, que se alterna com "sentimentos de amor e gratidão" e é, a princípio, dirigida ao seio nutridor. Posteriormente, ao vivenciar a situação edípica, o ciúme agrega-se à inveja. Nesse sentido, a inveja pode ocorrer numa relação dual e o ciúme requer uma relação triangular.
A vivência do complexo de Édipo exige a presença de um terceiro que marque a diferença entre as funções parentais independentemente de como o núcleo familiar se configura, pois o "desenvolvimento emocional, a formação de identidade e autonomia dos sujeitos"5 ocorrem usualmente a partir dessa diferenciação. Vale ressaltar que as relações estabelecidas durante o processo de desenvolvimento, especialmente no que tange às relações triangulares vivenciadas na vigência do complexo de Édipo, funcionam como matriz para outros relacionamentos ao longo da vida.
A triangulação edípica também pode ocorrer entre os irmãos. Ao comparar seus pais e os de outras crianças, a criança pode tecer críticas em relação aos próprios pais, permeadas pelo sentimento de negligência, pela sensação de obter um amor insuficiente dos pais e a descontente obrigação de dividir esse amor com os irmãos2. Quando há outras crianças no contexto familiar, o complexo de Édipo pode se estender para o chamado complexo familiar, que se apoia no desejo da criança de eliminar as outras6. Consoante a isso, convém mencionar a relação fraterna entre irmãos e a possibilidade de vivenciar o complexo fraterno, o qual é compreendido como "uma organização intrapsíquica triangular dos desejos amorosos, narcísicos e objetais, do ódio e da agressividade"7. Sendo assim, a vida psíquica da criança é permeada por fantasias que correspondem à relação entre a criança, o irmão ou irmã e a figura cuidadora que os marca como semelhantes. A experiência do complexo fraterno se constitui por desejos ambivalentes, coexistindo amor e hostilidade8. O que há em comum entre os irmãos é a disputa pelo amor dos pais, o que motiva a tentativa de "preservar um espaço dentro do grupo, garantir uma individualidade, buscar o atendimento satisfatório de interesses e necessidades e ocasionalmente desfrutar das vantagens do poder"8.
Tendo em vista as colocações acima mencionadas, é possível refletir sobre a possibilidade de as emoções relativas à triangulação edípica serem estabelecidas em relações vivenciadas com outras crianças da família, tais como os primos e primas.
Vale ressaltar que a experiência do complexo fraterno se mostra importante para a estruturação psíquica, visto que contribui para o desenvolvimento da personalidade à medida que a demarcação da diferença existente entre os irmãos é vivenciada, apesar de existir algo em comum entre eles. Dessa forma, é sabido que existe o sentimento de inveja, ciúme, ódio e rivalidade entre os irmãos, pois há a necessidade de a própria criança repensar o seu lugar no amor dos pais. O ciúme é resultado da necessidade de dividir o amor dos pais com os irmãos8. Apesar disso, a vivência do complexo fraterno produz benefícios para a criança, pois possibilita que sejam criadas formas de lidar com as situações de perda e ganho, compartilhamento e solidariedade, bem como o reconhecimento e superação dos limites e a construção de laços, desenvolvendo a noção da relação com o outro em sociedade8.
Na adolescência, ocorre a escolha objetal e a definição do funcionamento da vida sexual9. A escolha objetal iniciada na fase fálica é revivida, porém, desta vez, é preciso renunciar aos objetos escolhidos na primeira infância, isto é, as figuras parentais, e dirigir a "corrente terna e sensual"9 para um objeto novo e a nova meta sexual: a reprodução. Contudo, o desejo incestuoso vivido na primeira infância permanece, de modo que a imagem dos cuidadores se apresenta como modelo para a escolha objetal na puberdade.
Ao longo do desenvolvimento, o indivíduo vivencia traumas estruturantes, isto é, "fatores exógenos que, apesar da interferência no aparelho psíquico, são essenciais a sua estruturação"10, como o reconhecimento da alteridade e a elaboração "dos limites que regem nossa existência no mundo"10, os quais vêm acompanhados de angústia de castração. Entretanto, há também traumatismos desestruturantes, que podem provocar uma interrupção do curso do desenvolvimento emocional da criança. Por conseguinte, entende-se que "por si só o trauma não é patológico. Ele só adquire esse caráter se o fator exógeno ultrapassar certo limite, a ponto de não poder ser metabolizado e integrado ao aparelho psíquico"11. Nesse caso, ocorre o trauma desestruturante e o abuso sexual se insere nesta categoria10.
O abuso sexual contra crianças e adolescentes implica um ato ou jogo sexual, que pode vir acompanhado ou não de contato físico, praticado por alguém em um estágio mais avançado de desenvolvimento psicossexual que intencionalmente realiza uma estimulação sexual. Apresenta um potencial para o dano físico e psíquico e, consequentemente, seus danos podem perdurar por toda a vida. Ademais, é recorrente o abuso sexual praticado dentro do grupo familiar, o que contribui para o sigilo em torno do episódio12.
A experiência de um abuso sexual, que perpassa uma violência no corpo e no psiquismo, pode gerar sentimentos de solidão e confusão decorrentes de a criança ser utilizada para satisfazer sexualmente um adulto, bem como a experimentar sensações antes desconhecidas. Cabe pontuar que tais sensações são despertadas, mas não podem ser integradas10,12. Assim, o trauma caracteriza-se, principalmente, por ultrapassar a barreira protetora do ego, afetando a possibilidade de simbolização12. Neste sentido, o abuso sexual mobiliza na criança algo imposto pelo corpo, mas que não pode ser representado psiquicamente12,13.
Com relação ao enfrentamento do trauma, cabe ressaltar o papel dos pais e/ou cuidadores, pois a intensidade do sofrimento e o processo de elaboração estão conectados com a forma pela qual os adultos acolhem a situação14. Sendo assim, quando a criança confia e recorre a um adulto em busca de amparo e sentido para a vivência do abuso sexual e há a negação do ocorrido ou uma indiferença diante do sofrimento, tornase impossível a emergência de um sentido para a experiência traumática. Pelo contrário, são despertados na criança sentimentos de abandono, desamparo e solidão. É rompida a confiança que ela tem em si mesma e no mundo12. Assim, sentindo-se desamparada e abandonada, a criança tem de se haver com a culpa transmitida pelo adulto atormentado. Além disso, ela não pode renunciar ao amor do agressor. Com efeito, a solução psíquica encontrada é a introjeção do agressor com o seu sentimento de culpa, originando uma clivagem da personalidade ou cisão, cujo objetivo é proteger-se"12.
Partindo desse pressuposto, o silêncio imposto pelo adulto diante do abuso sexual tira da vítima "toda via de simbolização e possibilidade de elaboração",14,15. Compreende-se que, quando a criança não encontra no seio familiar um adulto em quem confiar e que a valide e a proteja, particularmente a mãe, ela se "vê às voltas com adultos abusadores"15. Caso não haja a possibilidade de ressignificação do conteúdo traumático, "o material psíquico ficará à mercê da 'compulsão à repetição"13. Uma das saídas possíveis pode ser o abusado vir a se tornar um abusador no futuro, pois "a transmissão transgeracional aparece como um tópico na caracterização do abusador, pela possibilidade de ele ter sido vítima no passado"16.
Em contrapartida, a elaboração do trauma pode se dar por meio da psicoterapia, na qual as vivências traumáticas podem reatualizar-se na relação transferencial. Os fenômenos transferenciais são imprescindíveis para a manifestação dos impulsos inconscientes17. A transferência é compreendida como um instrumento que possibilita a persistente repetição sintomática, concedendo uma reconstrução do passado por meio da criação de lembranças18. Por meio da relação transferencial, observa-se a compulsão à repetição, que se destaca como manifestação do conteúdo inconsciente e apresenta também a tentativa de elaboração de situações que causam sofrimento19. Neste sentido, cabe salientar que o trauma é atemporal, de modo que pode ser revivido com a mesma intensidade do passado.
Tendo em vista o acima exposto, o presente estudo visou investigar os fatos clínicos ocorridos no atendimento psicoterápico realizado com uma paciente adulta, vítima de abuso sexual na infância.
MÉTODO
O psicanalista deve adotar a posição de um investigador tanto para ter acesso a conteúdos inconscientes dos analisandos como para reformular o arcabouço teórico que sustenta o fazer clínico17. Clínica e pesquisa, portanto, são campos que se entrecruzam. Assim, o método psicanalítico pode ser utilizado na interpretação de material clínico, tendo como condição a presença do psicanalista na condução da pesquisa. Tal método contribui para o questionamento e a revisão do manejo no atendimento clínico psicanalítico, tendo em vista sua consequente transformação no que constitui a pesquisa - objeto, meio de investigação e pesquisador20.
Este processo, de pesquisa e fazer clínico, é permeado pela transferência e a contratransferência, fenômenos produtores da singularidade. De modo que o pesquisador é também parte da pesquisa e interfere diretamente na análise do material e nas relações estabelecidas com os sujeitos pesquisados20.
No presente estudo destaca-se a construção de fatos clínicos psicanalíticos como um instrumento de análise do material coletado. Os fatos clínicos, que devem ser entendidos sob o aspecto relacional e subjetivo, não se limitando apenas ao campo da realidade e da observação21, decorrem da relação analista-analisando. Os conteúdos são interpretados e ressignificados pelo analista com base em sua experiência profissional, pessoal e emocional22. Os fatos vivenciados no setting terapêutico, via relação transferencial-contratransferencial, podem ser transformados em fatos clínicos psicanalíticos e posteriormente comunicados ao analisando, favorecendo assim a compreensão de sua realidade psíquica21.
Vale salientar que, para a construção de uma pesquisa em psicanálise, convém que o material coletado seja analisado a posteriori, isto é, após o encerramento do atendimento. Assim, os fatos clínicos vivenciados e registrados em relatórios podem ser transformados em fatos clínicos psicanalíticos a partir de uma leitura e análise fundamentada na teoria psicanalítica. O relato das sessões realizadas pelo psicanalista, neste sentido, apresenta-se como instrumento para a leitura dos fenômenos que se passam no setting analítico21,22,23. Embora Quinodoz (1994)21 e Vollmer Filho (1994)22 mencionem o psicanalista, a pesquisa com fatos clínicos psicanalíticos também pode ser realizada quando ocorre a psicoterapia sob o enfoque psicanalítico23. A importância dessa construção é tornar comunicável os elementos pertencentes ao conteúdo latente, que contempla o inconsciente21.
Participaram do estudo uma paciente com 30 anos de idade, atendida em psicoterapia psicanalítica, e seu respectivo psicoterapeuta. Os atendimentos foram realizados no serviço escola de uma universidade pública do estado do Paraná. Eles ocorreram de forma on-line em função da pandemia por COVID 19. O estudo foi desenvolvido seguindo a Declaração de Helsinki, utilizando-se do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, o qual paciente e psicoterapeuta assinaram, aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (CAAE 15415019.1.0000.5231, Parecer 3.426.462) da referida universidade.
Ao final de cada sessão, o psicoterapeuta elaborava um relatório contendo as falas do paciente e dele próprio, bem como possíveis emoções que presenciasse em si mesmo. A análise dos dados iniciou com a leitura dos relatórios produzidos pelo psicoterapeuta, realizada com atenção flutuante por uma pesquisadora, com o intuito de detectar os fatos clínicos vivenciados. O relatório foi lido e analisado por três pesquisadores, que integram a equipe de um projeto de pesquisa maior. A seguir os fatos clínicos, destacados por pelo menos duas pesquisadoras, foram selecionados. Eles foram considerados validados e, posteriormente, foram submetidos à análise a partir dos fundamentos da psicanálise. Assim, foram transformados em fatos clínicos psicanalíticos a posteriori, isto é, após a realização dos atendimentos clínicos21,22,23.
RESULTADO E DISCUSSÃO
Os fatos clínicos psicanalíticos foram organizados nas seguintes categorias temáticas: relação edípica entre paciente-mãe-prima e vivência traumática decorrente de um abuso vivenciado na infância.
Fatos clínicos relacionados ao complexo fraterno
A tríade ocorria entre Maria Alice (nome fictício), sua mãe e uma prima que morava perto de sua casa durante o período da infância e adolescência, cujo nome também era Alice.
Em algumas ocasiões, foram identificados fatos clínicos em que a paciente demonstra sentir ciúme diante da relação entre a mãe e a prima: "Maria Alice disse: 'Minha mãe fazia de tudo para ela'. A paciente relatou que, por muitas vezes, sua mãe comparava sua prima a ela e isso parecia incomodar muito".
Compreende-se que a triangulação envolve a mãe e uma outra criança inserida no núcleo familiar. Observa-se a vivência do complexo fraterno, que caracteriza a organização psíquica da paciente configurada a partir de fantasias apoiadas no desejo de eliminação da prima, pois é com ela que o amor da mãe precisa ser compartilhado6,7,8. Entre outras funções, o complexo fraterno se apresenta como uma forma de "substituir e compensar o fracasso nas funções parentais"8, tendo em vista o deslocamento dos sentimentos hostis direcionados aos pais.
O ciúme, que, na vida psíquica da mulher, pode ser caracterizado como uma forma de deslocamento da inveja do pênis24, pode colaborar para o afastamento do vínculo entre mãe e filha. Ainda, esse sentimento pode ser deslocado para outras figuras, como observado no seguinte fato clínico: "Disse que sempre se deu bem com a prima e que faz muito tempo que não têm contato, mas que sentia ciúmes dela em relação à mãe e não gostava das comparações que sua mãe fazia. [...] Relatou que antigamente falava para sua mãe sobre seu incômodo e acredita que a mãe 'queria ela, não eu".
Esse afastamento no vínculo mãe e filha também refletem os sentimentos de afeição e de hostilidade da menina em relação à mãe: "Maria Alice se emocionou e disse que ama muito sua mãe, mas percebe uma 'barreira' entre elas". Essa dualidade e confronto entre os sentimentos de amor e ódio dirigidos ao mesmo objeto caracterizam a ambivalência9.
Considerando o conceito de ambivalência, que inicia quando o bebê começa a compreender os pais como objetos totais e compreende que seus sentimentos conflituosos são dirigidos a uma única pessoa25, percebe-se a paciente vivenciando a ambivalência relativa à culpa e o medo da perda do amor. Assim presta serviços à mãe por obrigação: "se sente obrigada a levar a mãe aos lugares [...] pois é a única forma que consegue demonstrar atenção, uma vez que tem dificuldades para demonstrar carinho". Assim, nota-se a internalização da figura materna como autoridade e a exigência moral de atendê-la, indicando a submissão do ego ao superego. Fato observado no fato clínico em que autoavalia a possibilidade de se satisfazer ou falar sobre sua mãe: "Disse que quando deseja fazer alguma coisa, pensa no que sua mãe iria pensar. Também falou que se sente mal falando de sua mãe pois amanhã a encontraria e não fica bem ao pensar que fala sobre ela em terapia".
A relação ambivalente entre paciente e prima também é vivenciada, quando Maria Alice relata ter uma boa relação com a prima, contudo sentir "ciúmes dela em relação à mãe", coexistindo amor e ódio por parte da paciente. Fantasias hostis em direção aos irmãos são produzidas pela criança devido, principalmente, à necessidade de compartilhar o amor e a atenção dos pais2. Nesse caso, as fantasias hostis estão direcionadas à prima que, de acordo com a paciente, recebia todo o amor de sua mãe, caracterizando o ciúme, que é um "sentimento de detenção pela figura de posse"26 diante da ameaça de perda para um rival.
Outro ponto a ser destacado é a comparação que a paciente estabelece entre o cuidado materno que recebeu e o que ela proporciona ao seu filho de três anos: "disse que tinha o modelo de mãe, mas que gostaria de fazer exatamente o oposto. Falou que tenta fazer isso até hoje e percebe que consegue demonstrar mais afeto ao filho do que a mãe demonstrava a ela."
As dificuldades na relação com a sua mãe na vida adulta parecem denunciar os efeitos da vivência de abuso sexual, tendo em vista a intensidade das emoções daquela época e a percepção de falha nos cuidados maternos a ela destinados em tal contexto.
Fatos clínicos relacionados ao abuso sexual
A paciente, entre 10 e 13 anos de idade, se sentiu vítima de abuso sexual, o que foi verbalizado em algumas sessões clínicas, aparentemente como repetição de um conteúdo traumático não passível de elaboração10. Ela estava brincando de "motinho" com seus primos - uma criança se deita no chão e as outras se deitam por cima dela. Quando chegou a sua vez de se deitar no chão, percebeu que seu tio estava se aproximando e, em seguida, sentiu um toque em sua coxa e próximo a sua vagina. Logo depois, olhou para seu tio e percebeu que ele estava rindo da situação. Começou a chorar e correu para sua casa. Sua mãe não estava em casa, então contou para sua avó o que havia acontecido. Sua avó disse que iria conversar com o tio, mas não era para Maria Alice contar para sua mãe, pois ela iria brigar [...] [Maria Alice] pensa que esse fato pode ter influenciado a forma como ela é hoje, principalmente pelo medo que sente em relação aos julgamentos das pessoas, mas não sabe se tem relação.
No relato, fica evidente a intensidade emocional diante do abuso sexual, que não foi validado pela avó. A paciente não teve suas emoções acolhidas e foi impedida de contar esse fato para sua mãe, o que a fez se sentir desprotegida. A criança que vive a experiência do abuso sexual sem o auxílio de outra pessoa no processo de "metabolização"27 do acontecido, não consegue organizar-se psiquicamente e desenvolve o sentimento de solidão. A indisponibilidade do adulto para acreditar e proteger a criança pode impossibilitar a simbolização e elaboração da vivência de abuso sexual14,15. Maria Alice "disse que acredita que o fato dela ter mágoa da mãe também envolve esse acontecimento, pois pensa que a mãe poderia tê-la protegido".
Aqui se percebe a experiência de traumatismos desestruturantes, que provocou "efeitos devastadores na constituição psíquica da criança, deixando sequelas irreversíveis no narcisismo e na autoestima"10: "Disse que pensa que por onde passar, as pessoas vão olhar para ela e julgá-la por alguma coisa [...] Ela falou que percebe que deixa de viver algumas coisas, pois deixa de enfrentar algumas situações [...] Contou que não usa shorts quando sai de casa, pois acredita que as pessoas vão olhar e pensar algo de errado sobre ela."
O fato clínico acima aponta a tentativa de se proteger, através do encobrimento do corpo, temendo a possibilidade de ser ameaçada caso fique à mostra. O corpo é evidenciado como um meio de manifestação do que não pôde ser simbolizado, compreendendo-o, então, como aquele que sustenta as "marcas da violência desorganizadora"28.
A repetição do conteúdo traumático se reatualiza na vida adulta dela ante o medo de julgamentos e de repetir a violência sexual com o filho: "falou que tem muito medo de abusar do seu filho [...] Maria Alice respondeu que tem medo de não conseguir se segurar, assim como seu tio não conseguiu". Vale mencionar que, caso não haja a ressignificação do conteúdo traumático, uma das saídas possíveis é a compulsão à repetição13. Em outro momento, expressa o medo de não controlar os próprios impulsos: "disse que pode ser uma desculpa, mas que no frio pode usar mais roupas para esconder o corpo [...]. Disse que o corpo fala e tem medo de não conseguir controlar seu corpo". Assim, parece denunciar que não foi possível conter e elaborar as excitações desencadeadas pelo abuso sexual, algo que psiquicamente não foi representado e, na vida adulta, reaparece diante do temor de não conter seus próprios impulsos.
Assim, percebe-se a possibilidade de repetição do abuso na prole do abusado, pois ela tem fantasias e teme chegar a abusar do filho. Mesmo que não haja o ato concreto, o terror diante da iminência de repetir a cena traumática compromete a relação mãe-filho, revelando que, diante da não elaboração do trauma vivido, pode ocorrer a "transmissão geracional nos casos de abuso sexual intrafamiliar"16. Além disso, parece existir na paciente uma ambivalência diante da vontade de agir de forma diferente da sua mãe internalizada, a qual não possibilitou cuidados suficientemente bons, não a protegendo do abuso sexual, e o temor de se identificar com o seu abusador e, assim, também atacar o próprio filho.
O abuso sexual vivenciado na infância parece refletir na sua vida atual de forma intensa. Maria Alice afirma que "sente muito medo e, ao pensar que vai dormir sozinha, sente medo da exposição". Assim, quando o marido não está presente, chega a buscar a companhia do filho de três anos como forma de proteção: "disse que percebe que ele consegue dormir sozinho, mas prefere que durma com ela para que se sinta segura. Disse que se sente solitária e que, quando ele dorme com ela, tem a sensação de proteção."
No final do processo psicoterápico, a paciente percebeu alguma evolução em seu desenvolvimento emocional ao afirmar "que vê duas pessoas dentro dela, uma que tem muito medo de se expor e outra mais exposta." Embora ainda demonstrasse a presença da ambivalência, por vezes ainda se sentindo desprotegida, Maria Alice parecia vislumbrar a possibilidade de ressignificar o trauma vivido13 e continuar o seu processo de amadurecimento.
CONCLUSÃO
O abuso sexual vivido durante a infância produziu diversas consequências no funcionamento psíquico da paciente, ressoando na forma como ela se percebe, bem como no modo como ela se relaciona com sua mãe e seu filho. O medo de repetir a violência sexual, não elaborada, denuncia a possibilidade de a violência sexual se reatualizar na vida adulta e ser vivenciada como compulsão à repetição. Embora a paciente expresse a fantasia de não conter seus impulsos e o temor de abusar sexualmente do seu filho, algo que não se concretiza, é possível que tais receios sejam por ela vivenciados como se ela fosse uma "abusadora potencial" da sua própria cria.
Embora o estudo tenha sido realizado a partir de caso único, fica clara a importância do processo psicoterapêutico como espaço para elaboração da experiência traumática diante de um abuso sexual, contribuindo para evitar a sua repetição na vida adulta.
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Universidade Estadual de Londrina, Departamento de Psicologia e Psicanálise - Londrina/PR - Brasil
Autor correspondente
Maria Elizabeth Barreto Tavares Reis
E-mail: bethtavares@uel.br / E-mail alternativo, de preferência institucional: bethtavaresreis@gmail.com
Submetido em: 19/10/2022
Aceito em: 28/03/2023
Contribuições: Maria Elizabeth Barreto Tavares Reis - Coleta de Dados, Conceitualização, Gerenciamento do Projeto, Investigação, Metodologia, Redação - Preparação do original, Redação - Revisão e Edição, Supervisão, Validação; Beatriz Leal Santos - Coleta de Dados, Conceitualização, Investigação, Metodologia, Redação - Preparação do original, Redação - Revisão e Edição, Validação; Larissa Osete Souza - Coleta de Dados, Conceitualização, Investigação, Metodologia, Redação - Preparação do original, Redação - Revisão e Edição, Validação.
Apoio financeiro: Bolsa de iniciação científica/CNPq
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