Rev. bras. psicoter. 2022; 24(3):141-150
Rodrigues AMP. A escuta psicanalítica do traumático social - ênfase racismo. Rev. bras. psicoter. 2022;24(3):141-150
Resenha
A escuta psicanalítica do traumático social - ênfase racismo*
Psychoanalytic listening of social trauma - emphasis on racism
La escucha psicoanalítica del trauma social - énfasis en el racismo
Ane Marlise Port Rodriguesa,b
Resumo
Abstract
Resumen
EUIDADE
A palavra equidade levou-me na direção do respeito à igualdade de direitos entre humanos. Na convocatória, a editoria da Revista Brasileira de Psicoterapia do CELG apontava ser emergencial que os fenômenos sociais que condicionam e determinam a saúde mental sejam reconhecidos e incorporados na clínica e nos processos analíticos/psicoterápicos.
Neste trabalho, a ênfase será na questão do racismo que no Brasil é, predominantemente, dirigido a pessoas negras e indígenas.
Estima-se que dos 2,5 milhões de indígenas que viviam no Brasil, quando da chegada dos portugueses, menos de 10% sobreviveram até os anos 1600. O genocídio segue na atualidade com a contínua destruição dos povos indígenas da região amazônica1.
Quanto à população negra, a expectativa de seu extermínio (com a política de Estado de branqueamento através da vinda dos emigrantes europeus) segue vigente através de escassas ou inexistentes políticas públicas para modificar a sua situação de miséria, marginalização e violência. Um negro é morto a cada 23 horas no Brasil. Segundo dados do IBGE2, 56% da população brasileira se autodeclarou negra no censo de 2019. Portanto, somos um país de maioria negra, mas que recusa a olhar-se no espelho, buscando uma imagem idealizada de branco europeu (o colonizador).
Serão destacados a importância dos posicionamentos das instituições em seu sentido político amplo e não partidário e a presença de pontos cegos da escuta psicanalítica quando não se alcança perceber em si mesmo o racismo e a violência que nos habita. Somos todos criados em uma cultura altamente racista, machista, homofóbica, xenofóbica, preconceituosa com pessoas portadoras de deficiências e com pobres (aporofobia). A cultura nos impregna a nível inconsciente de forma categórica. No entanto, é possível nos desidentificarmos de alguns de seus aspectos nefastos e violentos ao reconhecermos essas dinâmicas em nossas subjetividades. A ética de nosso ofício requer que nos debrucemos sobre problemas tão urgentes e ainda assim desmentidos até os dias de hoje.
Posicionamentos políticos institucionais
Convém esclarecer que a questão dos posicionamentos políticos institucionais não se refere a posições partidárias (partidos políticos) ou a instituição ser de direita, centro ou esquerda. Trata-se da política em seu sentido de equacionamento de conflitos e escolhas que envolvem desde quais escolas e autores serão estudados no instituto de psicanálise, ou seu formato, até a eleição de suas diretorias. Berenstein3 descreve a política como uma atividade essencialmente humana e centrada na relação com o outro, dentro de um conjunto humano vincular.
A problemática da formação e transmissão psicanalítica no palco sociopolítico e na comunidade nos coloca de imediato no paradigma da complexidade em um mundo que comporta e acolhe a confusão, a desordem e a incerteza, na medida em que procura respostas e possibilidades para as insuficiências do pensamento simplificador4.
Freud (1920)5, em Psicologia das Massas e Análise do Eu, já declarava ser impossível nos voltarmos para o sujeito excluindo o meio em que vive, sua cultura e seu ambiente social e político. Ferenczi 6 ao comentar o texto de Freud, destaca a importância do Ideal-do-Eu e do papel das identificações quando são introjetados propriedades e atributos do objeto ao próprio ego. Agrega que fatores da psicologia coletiva sempre estarão implicados nas análises individuais e o analista também será percebido como um representante de toda a sociedade humana.
Ao mesmo tempo, muitos psicanalistas resistem a sair de suas certezas e ortodoxias. O pensamento simplificador se revela em purismos (como o que seria a verdadeira psicanálise) ou em reducionismos (binarismos, por exemplo).
Conforme Tanis7, os binarismos não mais se sustentam: feminino/masculino; interno/externo; clínica privada/comunidade; corpo/mente (também: homem/natureza). Aponta que não é suficiente ir em direção à comunidade. Pergunta-se: como trazer para dentro de nossas instituições àqueles que sempre estiveram de fora?
Considera fundamental que as sociedades e seus institutos de psicanálise saiam do "establishment", trazendo o que até agora não se pode enxergar. Referia-se àquilo que volta desde o real: o recusado por gerar intensas angústias. Destaca a importância de estudar autores que tragam conhecimentos pós-coloniais, para além do eurocentrismo, e de adquirirmos uma crescente consciência sobre o racismo que leva à exclusão de colegas negros e indígenas nas formações vinculadas à IPA e no geral. Realça a importância dos projetos de inclusão desenvolvidos pela Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (Programa Social/Racial) e Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre (Projeto Ubuntu), aprovados em assembleias institucionais em 2021.
Garcia8 considera importante que os psicanalistas sejam ativos em dispor de políticas internas em suas instituições para diminuir tais exclusões. Além de ser justo, pondera que nossa integração institucional condiciona a psicanálise que praticamos e os psicanalistas que formamos.
Ao mesmo tempo, em toda instituição temos colegas contrários a esse posicionamento, argumentando que essa questão não diz respeito à psicanálise, aos psicanalistas e às suas instituições.
Os temas escolhidos nos últimos Congressos da Febrapsi vêm apontando para uma maior abertura a pensar a psicanálise brasileira em sua relação com o social: O Estranho: Inconfidências (2019); Laços: O Eu e o Mundo (2022); O Eu com o Isso: Afetos em Emergência (2023). A temática do Racismo e Preconceito torna-se central em um congresso brasileiro por trazer uma das principais fontes do mal-estar social contemporâneo no Brasil. Vários autores brasileiros trazem contribuições fundamentais nessa área. Para citar alguns: Almeida9; Bento10,11; Bicudo12; Gomes13-15; Gonzalez16,17; Kopenawa18; Krenak19; Nogueira20,21; Paim Filho22; Ribeiro23; Schucman24; Souza25. Cabe lembrar que Virginia Bicudo era da primeira geração de psicanalistas da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e suas produções teóricas começam a ganhar alguma visibilidade apenas recentemente.
Na vigência da pandemia pelo Covid-19, a partir de 2020, ativou-se a discussão em torno do racismo à brasileira. Os colegas Wania Cidade (SBPRJ) e Ignácio Paim Filho (SBPdePA) perguntavam sobre até quando seriam os negros únicos em suas instituições26. Referiam-se à quase inexistência de colegas negros e indígenas em nossos institutos de psicanálise. Conforme Pesquisa Febrapsi/2020, 98% dos analistas brasileiros são brancos e 2% são negros, sendo a população negra no Brasil de 56% em 2019.2
Vários psicanalistas latino-americanos e brasileiros vêm destacando a importância fecunda dos conceitos advindos da psicanálise vincular27 com a ênfase na produção de novas inscrições, a cada momento, pela imposição da presença (e não somente reedições do passado) e da psicanálise de crianças e adolescentes (novo passo com a Formação Integrada: seminários da área da infância e adolescência oferecidos a todos, dentro da formação psicanalítica geral). As contribuições teóricas e clínicas de ambos os campos de conhecimento ampliam para os psicanalistas em formação, e aos demais, a percepção e o reconhecimento da importância da realidade externa e do objeto externo que impõe marcas psíquicas através de sua presença e não somente por sua ausência. O contexto familiar e social ganha destaque e acrescenta novas dimensões à psicanálise clássica, não sem resistências a esses reconhecimentos.
Transcrevo a fala de Susanna Abse de 2017, mas atualíssima:
A crise atual da democracia e o incremento do racismo, da xenofobia e de todos os tipos de intolerância, desafiam o mundo psicanalítico. Nossa tendência a formar grupos fechados onde reforçamos nossas posições teóricas, surdos e outros pontos de vista ou perspectivas, tem ramificações que vão mais além do narcisismo de nossas pequenas diferenças. A esta altura, nossa profissão, mais que qualquer outra, necessita escutar a outros; escutar diferentes modos de pensar e implicar-se ativamente com a outreidade de outros. (p. 18, tradução da autora)28.
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