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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2022; 24(3):141-150



Resenha

A escuta psicanalítica do traumático social - ênfase racismo*

Psychoanalytic listening of social trauma - emphasis on racism

La escucha psicoanalítica del trauma social - énfasis en el racismo

Ane Marlise Port Rodriguesa,b

Resumo

Neste trabalho a palavra equidade vai ressoar em direção ao funcionamento das instituições, em particular as de psicanálise, e à escuta analítica do traumático social, com ênfase no racismo. As instituições tendem a ser conservadoras em sua natureza, mas são compostas por pessoas que se renovam no decorrer do tempo e podem abrir-se para mudanças. Ao se tornarem permeáveis aos sofrimentos e mal-estar que advém do campo social e comunitário podem adotar posicionamentos que favoreçam seu envolvimento nessas problemáticas. É destacado como a escuta analítica pode encontrar pontos cegos quando os/as analistas/terapeutas se fecham em bolhas de ressonância mútua, não se sensibilizando e nem se colocando na pele do outro diferente de si mesmo ou de seu grupo social. Torna-se fundamental perceber como a cultura racista onde fomos criados impregna nosso inconsciente, através dos Ideais do Eu, com a crença de que o branco seria a medida do que é universal e belo e, ao mesmo tempo, negando nossa realidade racista.

Descritores: Instituição psicanalítica; Traumático social; Racismo; Escuta analítica; Pontos cegos

Abstract

In this paper the word equity will resonate towards the functioning of institutions, in particular those of psychoanalysis, and the listening to the social trauma, with an emphasis on racism. Institutions tend to be conservative in nature, but they are made of people who renew themselves over time and can be open to change. By becoming permeable to the sufferings that come from the social and community field they may adopt positions that favor their envolvement in these issues. It highlights that analytical listening can find blind spots when analysts/therapists close themselves in bubbles of mutual resonance, not putting themselves in the shoes (skin) of others, diferents from themselves or their social group. It becomes fundamental to understand how the racist culture where we were raised impregnates our unconscious, through the ideals of the Ego, with the belief that white people would be the measure of what is universal and beautiful and, at the same time, denying our racist reality.

Keywords: Psychoanalytic institution; Social trauma; Racism; Psychoanalytic listening; Blind spots

Resumen

En este trabajo la palabra equidad resonará hacia el funcionamiento de las instituciones, en particular las del psicoanálisis, y a la escucha analítica del trauma social, com énfasis en el racismo. Las instituciones tienden a ser de naturaleza conservadora, pero están formadas por personas que se renuevan con el tiempo y pueden abrirse a cambios. Al volverse permeable a los sufrimientos y malestares que vienen del campo social y de la comunidad pueden adoptar posiciones que favorezcan su implicación en estos problemas. Se destaca que la escucha analítica puede encontrar puntos ciegos cuando los analistas/terapeutas se cierran en burbujas de resonancia mutua, no sensibilizarse y no ponerse en la piel de otra persona que no sea uno mismo o su próprio grupo social. Se hace imprescindible comprender cómo la cultura racista en la que nos criamos impregna nuestro inconsciente, a través de los Ideales del Yo, con la creencia de que el blanco sería la medida de lo universal y bello y, al mismo tiempo, negar nuestra realidade racista.

Descriptores: Institución psicoanalítica; Social traumático; Racismo; Escucha analítica; Puntos ciegos

 

 

EUIDADE

A palavra equidade levou-me na direção do respeito à igualdade de direitos entre humanos. Na convocatória, a editoria da Revista Brasileira de Psicoterapia do CELG apontava ser emergencial que os fenômenos sociais que condicionam e determinam a saúde mental sejam reconhecidos e incorporados na clínica e nos processos analíticos/psicoterápicos.

Neste trabalho, a ênfase será na questão do racismo que no Brasil é, predominantemente, dirigido a pessoas negras e indígenas.

Estima-se que dos 2,5 milhões de indígenas que viviam no Brasil, quando da chegada dos portugueses, menos de 10% sobreviveram até os anos 1600. O genocídio segue na atualidade com a contínua destruição dos povos indígenas da região amazônica1.

Quanto à população negra, a expectativa de seu extermínio (com a política de Estado de branqueamento através da vinda dos emigrantes europeus) segue vigente através de escassas ou inexistentes políticas públicas para modificar a sua situação de miséria, marginalização e violência. Um negro é morto a cada 23 horas no Brasil. Segundo dados do IBGE2, 56% da população brasileira se autodeclarou negra no censo de 2019. Portanto, somos um país de maioria negra, mas que recusa a olhar-se no espelho, buscando uma imagem idealizada de branco europeu (o colonizador).

Serão destacados a importância dos posicionamentos das instituições em seu sentido político amplo e não partidário e a presença de pontos cegos da escuta psicanalítica quando não se alcança perceber em si mesmo o racismo e a violência que nos habita. Somos todos criados em uma cultura altamente racista, machista, homofóbica, xenofóbica, preconceituosa com pessoas portadoras de deficiências e com pobres (aporofobia). A cultura nos impregna a nível inconsciente de forma categórica. No entanto, é possível nos desidentificarmos de alguns de seus aspectos nefastos e violentos ao reconhecermos essas dinâmicas em nossas subjetividades. A ética de nosso ofício requer que nos debrucemos sobre problemas tão urgentes e ainda assim desmentidos até os dias de hoje.

Posicionamentos políticos institucionais

Convém esclarecer que a questão dos posicionamentos políticos institucionais não se refere a posições partidárias (partidos políticos) ou a instituição ser de direita, centro ou esquerda. Trata-se da política em seu sentido de equacionamento de conflitos e escolhas que envolvem desde quais escolas e autores serão estudados no instituto de psicanálise, ou seu formato, até a eleição de suas diretorias. Berenstein3 descreve a política como uma atividade essencialmente humana e centrada na relação com o outro, dentro de um conjunto humano vincular.

A problemática da formação e transmissão psicanalítica no palco sociopolítico e na comunidade nos coloca de imediato no paradigma da complexidade em um mundo que comporta e acolhe a confusão, a desordem e a incerteza, na medida em que procura respostas e possibilidades para as insuficiências do pensamento simplificador4.

Freud (1920)5, em Psicologia das Massas e Análise do Eu, já declarava ser impossível nos voltarmos para o sujeito excluindo o meio em que vive, sua cultura e seu ambiente social e político. Ferenczi 6 ao comentar o texto de Freud, destaca a importância do Ideal-do-Eu e do papel das identificações quando são introjetados propriedades e atributos do objeto ao próprio ego. Agrega que fatores da psicologia coletiva sempre estarão implicados nas análises individuais e o analista também será percebido como um representante de toda a sociedade humana.

Ao mesmo tempo, muitos psicanalistas resistem a sair de suas certezas e ortodoxias. O pensamento simplificador se revela em purismos (como o que seria a verdadeira psicanálise) ou em reducionismos (binarismos, por exemplo).

Conforme Tanis7, os binarismos não mais se sustentam: feminino/masculino; interno/externo; clínica privada/comunidade; corpo/mente (também: homem/natureza). Aponta que não é suficiente ir em direção à comunidade. Pergunta-se: como trazer para dentro de nossas instituições àqueles que sempre estiveram de fora?

Considera fundamental que as sociedades e seus institutos de psicanálise saiam do "establishment", trazendo o que até agora não se pode enxergar. Referia-se àquilo que volta desde o real: o recusado por gerar intensas angústias. Destaca a importância de estudar autores que tragam conhecimentos pós-coloniais, para além do eurocentrismo, e de adquirirmos uma crescente consciência sobre o racismo que leva à exclusão de colegas negros e indígenas nas formações vinculadas à IPA e no geral. Realça a importância dos projetos de inclusão desenvolvidos pela Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (Programa Social/Racial) e Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre (Projeto Ubuntu), aprovados em assembleias institucionais em 2021.

Garcia8 considera importante que os psicanalistas sejam ativos em dispor de políticas internas em suas instituições para diminuir tais exclusões. Além de ser justo, pondera que nossa integração institucional condiciona a psicanálise que praticamos e os psicanalistas que formamos.

Ao mesmo tempo, em toda instituição temos colegas contrários a esse posicionamento, argumentando que essa questão não diz respeito à psicanálise, aos psicanalistas e às suas instituições.

Os temas escolhidos nos últimos Congressos da Febrapsi vêm apontando para uma maior abertura a pensar a psicanálise brasileira em sua relação com o social: O Estranho: Inconfidências (2019); Laços: O Eu e o Mundo (2022); O Eu com o Isso: Afetos em Emergência (2023). A temática do Racismo e Preconceito torna-se central em um congresso brasileiro por trazer uma das principais fontes do mal-estar social contemporâneo no Brasil. Vários autores brasileiros trazem contribuições fundamentais nessa área. Para citar alguns: Almeida9; Bento10,11; Bicudo12; Gomes13-15; Gonzalez16,17; Kopenawa18; Krenak19; Nogueira20,21; Paim Filho22; Ribeiro23; Schucman24; Souza25. Cabe lembrar que Virginia Bicudo era da primeira geração de psicanalistas da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e suas produções teóricas começam a ganhar alguma visibilidade apenas recentemente.

Na vigência da pandemia pelo Covid-19, a partir de 2020, ativou-se a discussão em torno do racismo à brasileira. Os colegas Wania Cidade (SBPRJ) e Ignácio Paim Filho (SBPdePA) perguntavam sobre até quando seriam os negros únicos em suas instituições26. Referiam-se à quase inexistência de colegas negros e indígenas em nossos institutos de psicanálise. Conforme Pesquisa Febrapsi/2020, 98% dos analistas brasileiros são brancos e 2% são negros, sendo a população negra no Brasil de 56% em 2019.2

Vários psicanalistas latino-americanos e brasileiros vêm destacando a importância fecunda dos conceitos advindos da psicanálise vincular27 com a ênfase na produção de novas inscrições, a cada momento, pela imposição da presença (e não somente reedições do passado) e da psicanálise de crianças e adolescentes (novo passo com a Formação Integrada: seminários da área da infância e adolescência oferecidos a todos, dentro da formação psicanalítica geral). As contribuições teóricas e clínicas de ambos os campos de conhecimento ampliam para os psicanalistas em formação, e aos demais, a percepção e o reconhecimento da importância da realidade externa e do objeto externo que impõe marcas psíquicas através de sua presença e não somente por sua ausência. O contexto familiar e social ganha destaque e acrescenta novas dimensões à psicanálise clássica, não sem resistências a esses reconhecimentos.

Transcrevo a fala de Susanna Abse de 2017, mas atualíssima:


A crise atual da democracia e o incremento do racismo, da xenofobia e de todos os tipos de intolerância, desafiam o mundo psicanalítico. Nossa tendência a formar grupos fechados onde reforçamos nossas posições teóricas, surdos e outros pontos de vista ou perspectivas, tem ramificações que vão mais além do narcisismo de nossas pequenas diferenças. A esta altura, nossa profissão, mais que qualquer outra, necessita escutar a outros; escutar diferentes modos de pensar e implicar-se ativamente com a outreidade de outros. (p. 18, tradução da autora)28.


Sabemos que as instituições são conservadoras em sua natureza, pois são criadas para salvaguardar sua tradição e conhecimentos acumulados e assegurar um lugar de pertencimento aos seus membros. Ao mesmo tempo, seu engessamento a empobrece ao não permitir a fertilização com novas ideias trazidas desde dentro ou desde fora.

As mudanças dentro das sociedades de psicanálise passam por decisões políticas de seus membros, principalmente quando ocupam cargos de poder dentro da instituição. A decisão política pode ser na direção de maior abertura ou fechamento, de maior escuta ou silenciamento. Mas, sempre se trata de um posicionamento político. Por mais que cada agrupamento tenha sua cultura e modo de ser, o grupo é formado por indivíduos que ocupam, em determinado período, cargos de poder dentro da instituição e podem, ou não, levar pautas para discussão. No território da micropolítica temos o poder de gerar mudanças ou abrir espaço para o novo ou disruptivo. Dentro de um espaço democrático, os conflitos e as diferenças de pensamento sempre serão parte do trabalho do grupo institucional, e, através de debates e assembleias, vigorará o que for da decisão da maioria. Na questão do racismo institucional, importa amadurecer a discussão, promover espaços de estudo e letramento, admitir nossa ignorância, ouvir diversos autores e colegas negros e indígenas, aumentar a consciência e a responsabilidade sobre o problema.

No entanto, convém lembrar dos impossíveis freudianos: educar, analisar e governar. Ou seja, restos impossíveis de assimilar e representar sempre estarão no campo individual e grupal, tornando interminável o trabalho de tornar-se sujeito de si mesmo ou o fazer institucional.

Para Puget29, o resultado de fazer entre vários é sempre imprevisível e circunstancial e, portanto, governar, educar e curar é possível desde que se admita que seja surpreendente e não dependa do saber ou da vontade de um (o Um).

Os institutos de psicanálise têm um papel fundamental no avanço de qualquer discussão pertinente à sociedade a qual pertencem: dar voz (aos candidatos e membros em geral) e ser porta-voz da tradição e do novo ou disruptivo, tornam-se responsabilidades éticas das diretorias dos institutos de psicanálise,30 território privilegiado de captação dos emergentes da própria instituição psicanalítica e dos emergentes da cultura externa, que também vai se refletir na clínica.

A escuta psicanalítica - pontos cegos

A manutenção de pontos cegos da escuta analítica, no contexto ao qual me refiro, passa não somente pelo que não foi possível acessar do inconsciente recalcado ou cindido de cada analista em suas análises pessoais, mas também pelo alcance de sua escuta e percepção consciente e inconsciente para o sofrimento que advém do campo social/coletivo e político. Sabemos que toda análise deixará restos inalcançáveis, sendo interminável, como já nos apontava Freud em 193731. Mas quando o analista não alcançou desenvolver sua sensibilização ao traumático que o racismo e os preconceitos provocam, como poderá escutar esses aspectos em si mesmo ou em seu analisando?

A partir de 2020, a psicanálise brasileira e muitos psicanalistas vêm inaugurando ou ampliando a escuta sobre práticas racistas até então negadas ou desmentidas. No Brasil, o racismo estrutural e institucional 9é mais dirigido a pessoas negras e indígenas. Temos esse problema em toda a América Latina e pelo mundo.

Analisandos negros contam sobre razões de interrupção da análise com seu analista branco: ao relatarem os sofrimentos advindos do preconceito e da discriminação racial e da desigualdade social, o analista tendia a interpretar no sentido de ser um exagero, algo paranoico ou vitimismo. O analista dava a entender que no Brasil não haveria racismo como em outros países (mito da democracia racial brasileira).

Nesse momento, percebem-se pontos cegos da escuta do analista ao não conseguir colocar-se na pele da pessoa negra, negando e desmentindo essa realidade traumática como se não existisse.

Ferenczi32-34 refere que no primeiro tempo do trauma temos a ocorrência traumática em si. O Eu é inundado por um excesso pulsional vindo do outro e não tem recursos suficientes de defesa ou de elaboração. No segundo tempo, quando ocorre o relato/testemunho do trauma sofrido, quem ouve pode invalidar a experiência como se não fosse verdade ou não tivesse importância. Nesse contexto, temos a re-traumatização que é sempre avassaladora ao que a sofre. Kupermann35 relembra que na construção da cena traumática o outro está no lugar de agente provocador, seja em ato, seja em fantasia. Coloca que o não reconhecimento por parte do outro da narrativa de sofrimento de um sujeito em condição de vulnerabilidade implica uma desautorização, ela mesma, primordial na constituição do trauma. Temos, então, uma fratura na operação de reconhecimento no campo das relações sociais e políticas e que vai se revelar na sala de análise. Uma defesa comum em casos de traumatizados é a identificação com o agressor, o que nos ajuda a entender quando o próprio negro trata outro negro com desprezo e humilhação.

Para uma melhor elaboração do trauma torna-se imprescindível a validação/legitimação da vivência traumática quando é revelada (violência sexual, física, moral, social, política, humilhação e inferiorização racial/étnica).

O contexto social/cultural/político onde somos criados deixa suas marcas no inconsciente, podendo não alcançar a consciência. Essas marcas inconscientes estarão postas no analista e no analisando. Os ideais do Eu colonizados pelo ideal da brancura (como representação do universal, humano e belo) terão de ser interrogados em ambos da dupla analítica. Observa-se um grande movimento dos negros brasileiros em desconstruir esses ideais de branqueamento que os colonizaram, assumindo sua negritude e valorizando seus traços físicos, sua religião e cultura.

Os brancos brasileiros, incluindo a imensa maioria dos psicanalistas, tem resistências seculares (inconscientes e conscientes) em renunciar a uma situação de privilégio onde os lugares de poder, prestígio e conhecimento só poderiam ser ocupados por brancos, formando o pacto narcísico da branquitude11 (Bento, 2002). Ao serem racializados na denominação branquitude, podem sentir como ofensa, pois não se percebem como mais uma raça entre outras (o branco seria o universal). O desejo de silenciar essa pauta ou tornar invisível o problema é frequente. Uma das formas de defesa é dizer que o racismo é problema dos negros e que os brancos nada tem a ver com isso.

O ingresso de colegas negros e indígenas em nossos institutos de psicanálise põe em xeque a lógica do Um (todos brancos; uma episteme eurocêntrica). Ter e manter a percentagem de 98% de brancos entre os psicanalistas brasileiros nas sociedades ligadas à IPA reforça a crença de que o branco é o todo, o universal.

A presença em corpo (o real) e alma desses colegas faz trabalhar de forma mais radical o espaço do entre dois da psicanálise vincular, com o assimilável e o ajeno do outro atualizado em presença, trazendo o mal-estar racial/étnico/social para dentro da instituição. Um dos desafios com a diferença é conseguir não a eliminar e dar espaço a um trabalho entre iguais (sem a hierarquia de superioridade racial). A própria discussão sobre a questão gera, muitas vezes, uma posição defensiva do tipo "estão dizendo que sou racista, mas não sou". Mas, poder falar sobre o que se sente já é um avanço por tirar a palavra do silêncio.

Estamos no trabalho psíquico que se coloca a partir do quarto eixo da formação analítica, no que diz respeito às vivências a partir da instituição a qual se pertence (além do clássico tripé: análise pessoal, teoria e supervisões clínicas). Através dessas vivências, em seus vários âmbitos, a identidade analítica também vai sendo construída.

Trachtenberg36 refere-se a um quinto eixo na formação psicanalítica: o trabalho para fora dos consultórios, na comunidade e permeável ao social. Também entende que a psicanálise, que tem em sua essência a busca constante de renovação e transformação, deva passar por essa fundamental mudança de paradigma nesse turbulento século XXI, para sua própria vitalidade37.

Temos o risco de adotar uma postura arrogante de colonizadores frente a colonizados quando do ingresso dos colegas negros e indígenas, numa atitude de "ensinar aos que não sabem" ou de desvalorização de seus saberes e cultura. É preciso correr o risco de nossos possíveis ou inevitáveis equívocos e nos interrogarmos sobre os porquês de nosso desejo de sua presença ou ausência. É profundo e doloroso o trabalho de desidentificação com o agressor escravocrata ou anti-indígena que nos habita e a ruptura com ideais da branquitude (construção de subjetividade atravessada pelo racismo; estado mental onde predomina a crença patológica de supremacia branca).

Estaremos dispostos a enfrentar os conflitos? A mobilizar defesas seculares como a projeção de nossos aspectos não-humanos e violentos, de uma sexualidade primitiva e vista como selvagem, do desamparo e vulnerabilidade, entre outras projeções? Mecanismos de defesa como negação, desmentida e recusa da realidade traumática sofrida pela população negra e indígena na América Latina, estão no campo do social, em nossas instituições e em nosso próprio psiquismo.

Tememos o outro por nos devolver o projetado, o negado, o desmentido e nos confrontar com a diferença, acionando nossa violência no desejo de sua eliminação. Tememos ainda pelo ajeno do outro, onde nos convoca ao não assimilável, sua diferença radical, o que nos exige um trabalho psíquico vincular interminável ao lidar com o real de sua presença, sua imposição. Através do interminável trabalho psíquico interno/externo e vincular vamos nos encontrando com nossa humanidade possível (permeada por conflitos de amor/ódio/indiferença) e com a esperança de criar outros mundos e novas formas de estarmos com o outro semelhante/dessemelhante.


REFERÊNCIAS

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aSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre, Instituto de psicanálise - Porto Alegre/RS - Brasil
bCentro de Estudos Luis Guedes, CEPOA - Porto Alegre/RS - Brasil

Autor correspondente

Ane Marlise Port Rodrigues
anemprodrigues@gmail.com / E-mail alternativo: anemprodrigues@gmail.com

Submetido em: 29/09/2022
Aceito em: 16/12/2022

Contribuições: Ane Marlise Port Rodrigues - Redação - Preparação do original, Redação - Revisão e Edição.

*Adaptação para a Revista Brasileira de Psicoterapia do CELG do trabalho apresentado no 34º Congresso Latino-americano de Psicanálise da FEPAL (20-24 de setembro de 2022, México) na Plenária da Comissão de Formação e Transmissão de Psicanálise com o tema O Palco Sociopolítico, a Comunidade e a Transmissão da Psicanálise (online).

 

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