Rev. bras. psicoter. 2022; 24(3):135-139
Avelino JPV. Os manifestos emancipatórios da pessoa surda em "O som do silêncio". Rev. bras. psicoter. 2022;24(3):135-139
Resenha
Os manifestos emancipatórios da pessoa surda em "O som do silêncio"
The emancipatory expressions of the deaf person in "Sound of metal"
Los manifiestos emancipadores del sordo en "Sound of metal"
João Paulo Vasco Avelino
Resumo
Abstract
Resumen
O longa-metragem Sound of metal (em português "O som do silêncio"), lançado em 2019 e dirigido por Darius Marder aborda a história de Ruben (Riz Ahmed), integrante de uma banda de heavy metal, que é diagnosticado com surdez profunda durante uma turnê com sua namorada Lou (Olivia Cooke) nos EUA. Ao aproximar o espectador a surdez adquirida de Ruben com as intercorrências da vida e a forma como se relacionar com elas, reforçam que "a deficiência faz parte do ciclo de vida humano, podendo ocorrer a qualquer momento, e de um modo diferente de vida e não menos digna"1, ou seja, a deficiência compreendida como um manifesto da pluralidade humana, além de coadunar com os estudos da deficiência pela perspectiva feminista, ao ampliar as possibilidades de compreender o ser humano, a diversidade, a materialidade do corpo, o multiculturalismo e as formações sociais que interpretam o corpo e suas diferenças2.
Historicamente, os surdos sempre foram estigmatizados, considerados "humanamente inferiores"3, afinal, "aquele cujo discurso não pode circular como o dos outros: pode ocorrer que sua palavra seja considerada nula e não seja acolhida, não tendo verdade nem importância"4.
O processo de negação do personagem ao ser diagnosticado pelo médico, para além das compreensões do que é a experiência da deficiência, é um processo compulsório de que todos os corpos performem dentro das capacidades normativas, numa tendência de afastar-se do que é tido como "incapaz"5, e se conecta com o modelo biomédico da deficiência, onde o sujeito tem um corpo que é passível de correção, conserto ou cura e procura de todo modo, que seja adequado à norma vigente que requer corpos saudáveis e produtivos6. Identifica-se tais pressões sociais, quando o personagem não encontra alternativa para a carreira na banda, no relacionamento amoroso e no futuro enquanto pessoa surda. O filme nos engendra a relação de Ruben ao se comunicar com a sociedade ouvintista e as dificuldades enfrentadas por ele, além dos preconceitos, e o capacitismo internalizado pelo próprio personagem.
Para Mello7, "o capacitismo é materializado por meio de atitudes preconceituosas e geradoras de discriminação que hierarquizam pessoas em função da adequação de seus corpos a padrões de beleza e capacidade funcional". Desta forma, "o capacitismo é estrutural e estruturante, ou seja, ele condiciona, atravessa e constitui sujeitos, organizações e instituições, produzindo formas de se relacionar baseadas em um ideal de sujeito que é performativamente produzido pela reiteração compulsória de capacidades normativas que consideram corpos de mulheres, pessoas negras, indígenas, idosas, LGBTI e com deficiência como ontológica e materialmente deficientes"8.
É uma produção audiovisual que nos condiciona a uma nova dinâmica social, que ausenta vieses de vitimismo ou discursos de superação, que retrata e escancara o capacitismo e subverte os estereótipos produzidos pela sociedade corpo-normativa. Nessa condição, estão presentes as discussões sobre a ética da autonomia pela remoção de barreiras, citado por Garland-Thomson2 e a perspectiva emancipatória e anticapacitista, associada ao pensar em formas de participação que são promotoras de agência, a responsabilidade do investigador face aos sujeitos investigados e pensar em formas de investigação que sejam suficientemente adaptáveis de modo a captar a complexidade do real, e sobretudo, valorizar a voz desses corpos com deficiência9,5. Ou seja, permite ao espectador envolver-se com o manifesto emancipatório numa perspectiva de aprender COM e/ou pesquisar COM as pessoas com deficiência10, caracterizados no filme após o envolvimento de Ruben com o centro de reabilitação de pessoas surdas.
Quando Ruben participa das atividades do centro de reabilitação de surdos, administrado por Joe (Paul Race), personagem surdo em decorrência de uma explosão durante a Guerra do Vietnã, Ruben conhece a Língua Americana de Sinais, se envolve na comunidade surda e compreende o corpo com surdez. Embora não exista uma única forma a priori de ser surdo, Sacks11 afirma que a cultura surda é constituída por uma forma singular de se colocar no mundo para além da deficiência sensorial, como linguagem, costumes, crenças e valores, e estes proporcionam condições para a construção da identidade e subjetividade12. Para Perlin13, Ruben assume uma identidade surda híbrida, aquela cujo surdo perde a audição ao longo da vida e aprende língua de sinais como uma segunda língua, conserva o pensamento pautado na língua oral e reconstrói as relações sociais amparadas na língua visual.
Ruben marcha à tentativa de recuperação da capacidade auditiva: o implante coclear. Tal atitude de Ruben associa-se às discussões sobre a cultura surda dentro de uma perspectiva da sociedade ouvintista, ou seja, faz com que a pessoa surda seja obrigada a olhar-se e narrar-se como se fosse ouvinte dentro do normocentrismo social, como já discutido, mas sobretudo, relaciona-se com os benefícios que podem ser explorados através desta intervenção, que é decidido pelo próprio indivíduo. Autores evidenciam que o implante coclear em adultos melhora o aproveitamento auditivo, origina mudanças positivas a inserção social e à qualidade de vida geral dos implantados, e produz impressões subjetivas sobre as perspectivas de vida com resgate da independência, autonomia, liberdade e privacidade da vida adulta14.
Ao optar pelo implante coclear, Ruben é expulso por Joe. Joe aqui teme a hibridização da cultura surda e o enfraquecimento dos manifestos políticos da comunidade surda para além da experiência visual das diversas formas de usar a comunicação visual e a língua de sinais e representa o combate à hegemonia ouvinte. Perlin13 atesta que a identidade política surda "cria um espaço cultural visual dentro de um espaço cultural diverso. Praticamente esta identidade surda cria a cultura visual, reclamando à história a alteridade surda".
Para concluir, é importante a reflexão acerca da autonomia e capacidade de agência da pessoa com deficiência protagonizar as decisões sobre si próprios; mas também um debate acerca da possibilidade de tornar processos anticapacitistas, emancipatórios e inclusivos dentro de coalizões entre grupos culturais surdos e ouvintes, sobretudo que fortaleça as identidades políticas dos surdos, não invisibilize as diferenças que compõem a surdez, os surdos, a identidade e a cultura, e ainda respeite o direito e as escolhas de ser surdo.
REFERÊNCIAS
1. Böck GLK. O Desenho Universal para a Aprendizagem e as contribuições na Educação à Distância. Tese (Doutorado em Psicologia) - UFSC, Florianópolis, 2019.
2. Garland-Thomson R. Integrating disability, transforming feminist theory. NWSA Journal, Baltimore, v. 14, n.3, p. 1-32, 2002. Recuperado Disponível em <https://www.jstor.org/stable/4316922>. Acessado em 04jun 2021.
3. Santana AP, Bergamo A. Cultura e identidade surdas: encruzilhada de lutas sociais e teóricas. Campinas: Revista Educ. Soc., vol. 26, n. 91, p; 565-582, 2005.
4. Foucault M. A ordem do discurso. 3. ed. São Paulo: Edições Loyola, 1970.
5. Gesser M, Block P, Nuernberg AH. Participation, agency and disability in Brazil: transforming psychological practices into public policy from a human rights perspective. Disability and the Global South, v. 6, n. 2, p. 1772-1791, 2019.
6. Böck GLK, Silva SC. Modelo Social da Deficiência e o Desenho Universal para Aprendizagem. In: Gesser M, Lopes PH, Raupp FA, Luz JO, Veras NCO, Luiz KG (Org.). Psicologia e Pessoas com Deficiência. 1ed. Florianópolis: CRP-12: Tribo da Ilha, 2019, p. 72-81.
7. Mello AG. Deficiência, incapacidade e vulnerabilidade: do capacitismo ou a preeminência capacitista e biomédica do Comitê de Ética em Pesquisa da UFSC. Ciênc. saúde coletiva, Out 2016, vol. 21, n.10, p.3265-3276.
8. Gesser M, Block P, Mello AG. Estudos da Deficiência: interseccionalidade, anticapacitismo e emancipação social. In: Gesser M, Bock GLK, Lopes PH. (Org.). Estudos da Deficiência: interseccionalidade, anticapacitismo e emancipação social. 1ed. Curitiba: CRV, 2020, v. 1, p. 17-35.
9. Martins BS, Fontes F, Hespanha P, Berg A. A emancipação dos estudos da deficiência. Revista Crítica deCiências Sociais [Online], 98, 2012. doi: 10.4000/rccs.5014. Disponível em <http://rccs.revues.org/5014>.Acessado em 04 jun 2021.
10. Moraes M. PesquisarCOM: política ontológica e deficiência visual. In: Moraes M, Kastrup V (org.). Exercícios de ver e não ver: arte e pesquisa com pessoas com deficiência visual. Rio de Janeiro: Nau. 2010. p. 26-51.
11. Sacks O. Vendo Vozes: uma Viagem ao Mundo dos Surdos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
12. Cromack EMPC. Identidade, cultura surda e produção de subjetividades e educação: atravessamentos e implicações sociais. Psicol. cienc. prof. 24 (4), Dez 2004. Disponível em <https://doi.org/10.1590/S141498932004000400009>. Acessado em 04 jun 2021.
13. Perlin G. Identidades surdas. In: Skliar C. (Org.). A surdez: um olhar sobre as diferenças. Porto Alegre: Mediação, 2005.
14. Vieira SS, Dupas G, Chiari BM. Repercussões do implante coclear na vida adulta. Revista CoDAS, 30 (6), 2018. Disponível em <https://doi.org/10.1590/2317-1782/20182018001>. Acessado em 08 jun 2021.
Universidade Federal de Santa Catarina, Disciplina de Psicologia e Pessoas com Deficiência do Curso de Graduação em Psicologia - Florianópolis/SC - Brasil
Autor correspondente
João Paulo Vasco Avelino
joaopauloavelino1@gmail.com
Submetido em: 09/07/2021
Aceito em: 30/08/2021
Contribuições: João Paulo Vasco Avelino - Redação - Preparação do original, Redação - Revisão e Edição.
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