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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2022; 24(3):99-112



Artigo de Revisao

Kohut e Kernberg na era digital: novas perspetivas sobre o narcisismo

Kohut and Kernberg in the digital age: new perspectives of narcissism

Kohut y Kernberg en la era digital: nuevas perspectivas sobre el narcisismo

João Luis Martins Quarenta; António Manuel Da Mota Almeida; Carla Rio; Orlando von Doellinger

Resumo

INTRODUÇÃO: O conceito de narcisismo é um dos mais importantes aportes psicanalíticos para a compreensão do Psiquismo humano. Partindo da obra de Freud, este conceito desenvolveu-se em grande medida com os contributos de Kohut e de Kerneberg. Entretanto a sua importância mantém-se atual. Nas últimas décadas, na sociedade ocidental, temse assistido a mudanças sociais significativas, nas quais se promove a competição e o individualismo em detrimento de objetivos e valores de grupo. A este facto acresce a velocidade cada vez maior a que estas mudanças acontecem. O surgimento de novas tecnologias de informação, sobretudo das redes sociais, ajuda a explicar este fenómeno.
MÉTODOS E OBJETIVOS: Nesta revisão não sistemática pretendeu-se explorar a evolução do conceito de narcisismo, partindo dos contributos de Kohut e Kernberg, e perceber de que forma o mundo ocidental atual e a exposição às redes sociais influenciam o desenvolvimento do narcisismo na sociedade.
RESULTADOS/DISCUSSÃO: Na sociedade moderna ocidental tem havido favorecimento de valores individuais, o que parece ter impacto na forma e na expressão de traços narcísicos de personalidade. Estes traços, outrora tidos como mal adaptativos, podem agora ser premiados e até incentivados. Embora não existam dados definitivos, vários estudos relacionam o reforço do narcisismo com a utilização das redes sociais.
CONCLUSÃO: O narcisismo continua a ser objeto de pesquisa e profunda discussão, que obriga à consideração da sua dimensão biopsicossocial. Os fenómenos socioculturais da sociedade moderna ocidental colocam novas questões sobre a distinção entre o narcisismo patológico e o saudável, modeladas em parte pelas redes sociais.

Descritores: Narcisismo. Ciência, tecnologia e sociedade. Redes sociais online. Evolução cultural

Abstract

INTRODUCTION: Narcissism concept is one of the most important psychoanalytic contributions to human psyche understanding. After Freud´s works, this concept was developed with major contributions of Kohut and Kerneberg and its importance remains present. In recent decades, significant social changes have occurred, in which competition and individualism are promoted at expenses of group goals and values. Moreover, these changes occur at an increasing speed. The emergence of new information technologies, especially the internet and social networks can help explain this phenomenon.
METHODS AND OBJECTIVES: This non-systematic review aimed to explore the evolution of the concept of narcissism, based on the contributions of Kohut and Kernberg, and to understand how the current Western world and exposure to social networks influence the development of narcissism in society.
RESULTS/DISCUSSION: In modern Western society there has been favouring individual values, which appears to impact on the form and expression of narcissistic personality traits. These traits, once thought to be maladaptive, may now be rewarded and even encouraged. Although there is no definitive data, several studies link the reinforcement of narcissism with the use of social media.
CONCLUSION: Narcissism continues to be an object of research and profound discussion, which compels consideration of its biopsychosocial dimension. The sociocultural phenomena of modern Western society pose new questions about the distinction between pathological and healthy narcissism, shaped in part by social networks.

Keywords: Narcissism; Online social networking; Science, technology and society; Cultural evolution

Resumen

INTRODUCCIÓN: El concepto de narcisismo es una de las aportaciones psicoanalíticas más importantes para la comprensión del psiquismo humano. A partir de la obra de Freud, este concepto se desarrolló en gran medida con las aportaciones de Kohut y Kerneberg. Sin embargo, su importancia sigue siendo actual. En las últimas décadas, la sociedad occidental ha experimentado importantes cambios sociales, en los que se fomenta la competencia y el individualismo en detrimento de los objetivos y valores de grupo. A esto hay que añadir la creciente velocidad a la que se producen estos cambios. La aparición de las nuevas tecnologías de la información, especialmente las redes sociales, ayuda a explicar este fenómeno.
MÉTODOS Y OBJETIVOS: Esta revisión no sistemática pretendía averiguar la evolución del concepto de narcisismo, a partir de las aportaciones de Kohut y Kernberg, y comprender cómo el mundo occidental actual y la exposición a los medios sociales influyen en el desarrollo del narcisismo en la sociedad.
RESULTADOS/DISCUSIÓN: En la sociedad occidental moderna se han favorecido los valores individuales, lo que parece repercutir en la forma y la expresión de los rasgos narcisistas de la personalidad. Estos rasgos, que antes se consideraban inadaptados, ahora pueden ser recompensados e incluso fomentados. Aunque no hay datos definitivos, varios estudios relacionan el refuerzo del narcisismo con el uso de las redes sociales.
CONCLUSIÓN: El narcisismo sigue siendo objeto de investigación y de profundos debates, lo que obliga a considerar su dimensión biopsicosocial. Los fenómenos socioculturales de la sociedad occidental moderna plantean nuevos interrogantes sobre la distinción entre el narcisismo patológico y el sano, configurado en parte por las redes sociales.

Descriptores: Narcisismo; Ciencia, tecnología y sociedad; Redes sociales en línea; Evolución cultural

 

 

INTRODUÇÃO

Apesar de presente há muito na linguagem coloquial, o conceito de narcisismo é, por um lado, um dos aportes psicanalíticos fundamentais para a compreensão do psiquismo do ser humano e da psicopatologia e, por outro lado, um dos mais complexos e confusos1.

De acordo com uma das mais relevantes versões do mito - proposta por Ovídio, nas "Metamorfoses" -Narciso era um herói grego, do território de Téspias (Beócia), famoso pela sua beleza e orgulho. Um dia,após ter rejeitado o amor da ninfa Echo, foi amaldiçoado por vingança pela deusa Nemésis. Quando, depois da maldição, Narciso olhou para o seu reflexo na água, apaixonou-se por ele de tal modo que definhou até morrer, incapaz de se afastar2.

Uma das primeiras descrições de narcisismo num contexto psicopatológico (remetendo especificamente para uma "perversão sexual"), relacionando-o com o mito de Narciso, foi efetuada por Havelock Ellis que utilizou a expressão "Narcissus-like" para descrever o que denominou de autoerotismo(1). Contudo, é a Paul Näcke que é atribuída a utilização, pela primeira vez, do termo "narcisismo" para caracterizar o que entendia ser uma perversão sexual, aludindo ao mito de Narciso3,4.

Na obra de Freud o conceito surgiu - e ganhou notoriedade significativa - em «Três ensaios sobre a teoria da sexualidade», de 1905. Em 1911 Otto Rank escreveu a primeira obra psicanalítica dedicada exclusivamente a este assunto e, em 1914, Freud publicou a obra "Introdução ao Narcisismo", onde procedeu a uma revisão da sua proposta inicial sobre o conceito e introduziu as noções de narcisismo primário e de narcisismo secundário5,6. De acordo com esta nova perspetiva, muito precocemente no processo desenvolvimental, o narcisismo primário (caracterizado pela satisfação das pulsões libidinais no próprio corpo) deve começar a dar lugar ao narcisismo secundário (quando o bebé começa a conseguir distinguir o corpo próprio do seu entorno e passa a investir nos objetos externos - nomeadamente nos seus cuidadores - retornando esse investimento, posteriormente, para si mesmo). Ou seja, para Freud deverá ocorrer uma passagem do narcisismo primário para o amor objetal (relacional, portanto) como parte normal do desenvolvimento, caso contrário o narcisismo secundário surgirá como algo patológico (com a retirada do investimento libidinal nos objetos externos), devendo o paciente focar-se também nas necessidades dos outros, concebendo uma imagem realista de si7.

Depois de Freud múltiplos autores da área psicanalítica foram aprofundando o conceito de narcisismo. De entre eles salientam-se Heinz Kohut e Otto Kernberg, pela particular importância dos seus contributos originais.


MÉTODOS

O debate sobre a presença do narcisismo na sociedade e a sua correlação com a evolução sociocultural tem sido objeto de controvérsia há décadas, com literatura algo contraditória sobre o assunto, sobretudo se for analisada longitudinalmente. Este debate é modelado pelas diferentes conceptualizações que o conceito de narcisismo tem apresentado e pela sociedade em que se desenvolve, levantando dúvidas constantes sobre a sua atualidade e dificultando alcançar posições de consenso. Partindo da intenção de clarificar o tema, no contexto formativo da residência em Psiquiatria, procedemos a uma revisão não sistemática da literatura tentando compreender as perspetivas de dois autores fundamentais (Kohut e Kernberg) e da evolução dos seus diversos conceitos de narcisismo, nomeadamente na sua relação com as transformações sociais e tecnológicas mais recentes. Foram efetuadas pesquisas bibliográficas nas bases de dados PubMed e SciELO com os principais descritores "narcisismo/narcissism", "Kohut", "Kernberg" e "redes sociais/social network/social media", tendo sido selecionados textos de acordo com a solidez da sua fundamentação teórica e adequação ao tema. A estes foram acrescentadas algumas leituras que nos pareceram fundamentais, por serem frequentemente referidas nos artigos inicialmente selecionados, tendo em conta os objetivos delineados. Em resumo, esses objetivos foram o de analisar a evolução do conceito de narcisismo partindo dos contributos incontornáveis de Kohut e Kernberg até ao conceito atual de Perturbação Narcísica de Personalidade e, posteriormente, procurar integrar o modo como esta evolução se associa às mudanças sociais do passado recente e qual a eventual articulação entre a crescente presença das redes sociais e surgimento ou a potenciação de eventuais traços narcísicos.


RESULTADOS

Kohut e a Psicologia do self

Heinz Kohut propôs, ao contrário do defendido até então, que as necessidades narcísicas persistiriam por toda a vida, dando importância à existência de certas respostas das outras pessoas para que o indivíduo possa manter um sentimento de bem-estar. Os seus estudos, conduzidos com base no trabalho clínico com pacientes portadores de perturbação da personalidade narcísica, foram a base da Psicologia do Self, teoria que enfatiza o papel das relações externas na manutenção da autoestima e da coesão do próprio self 8.

Na sua teorização Kohut explicitou que os pacientes com perturbação da personalidade narcísica se encontram num estádio de desenvolvimento em que necessitam de mais respostas confirmatórias do ambiente. Isto acontece pela ausência de validação e de admiração por parte das figuras cuidadoras às demonstrações exibicionistas ocorridas durante sua a infância (na base do fenómeno que denomina de transferência especular, no processo terapêutico) ou pela ausência de uma figura disponível para ser idealizada e admirada, cuja presença acalma e securiza (na base do que denomina de transferência idealizadora). Neste contexto, o narcisismo desenvolver-se-á como uma tentativa de restaurar um estado de harmonia entre o self e o meio ambiente. Isto acontece porque o self integra as experiências de acordo com a adequação do ambiente às necessidades da criança. A não satisfação dessas necessidades resulta num self vulnerável à fragmentação9,10.

Dessa forma, de acordo com a sua teoria, Kohut propõe que há necessidades dos pacientes que devem ser compreendidas e parcialmente satisfeitas. Em termos desenvolvimentais, propõe uma teoria de duplo-eixo que possibilita a continuidade do desenvolvimento narcísico em simultâneo com a continuidade do desenvolvimento objetal. Assim, por um lado, numa linha narcísica do desenvolvimento, o self grandioso, através da transferência especular, será transformado em ambições saudáveis e a idealização dos pais, pela transferência idealizada, permitirá a internalização de ideias e valores. Por outro lado, teríamos a linha do desenvolvimento que conduz ao amor objetal (linha clássica). Na relação terapêutica o terapeuta é vivido como sendo uma extensão self do paciente, uma parte de si mesmo, um selfobjeto, e através do seu entendimento será possível favorecer a experiência selfobjetal de acolhimento às requisições narcísicas presentes7 .

Este modelo terapêutico permitiria a transformação do self em formas narcísicas menos vulneráveis à ausência de respostas imediatas e concretas por parte dos selfobjetos, favorecendo as buscas mais realistas e adequadas do próprio self 7,9,11.

Alguns contributos de Kernberg

Partindo do seu trabalho clínico com indivíduos com psicoses e com graves perturbações da personalidade, Otto Kernberg acabou por desenvolver conceptualizações originais que incorporam a metapsicologia freudiana, a teoria da relação de objeto (de Melanie Klein), os contributos dos autores do Middle Group britânico (mormente Winnicott, Balint e Fairbairn), bem como de Heinz Hartmann7 .

Com uma intensa produção científica, com impacto significativo em diversos modelos explicativos e compreensivos, Kernberg introduziu na literatura psiquiátrica e psicanalítica perspetivas profundas e inovadoras da clínica e da intervenção terapêutica em graves perturbações da personalidade, tendo cunhado termos específicos, como o de narcisismo maligno9.

Para Kernberg, no narcisismo existem algumas semelhanças com a perturbação da personalidade borderline (PPB), sobretudo no modo como se utilizam defesas primitivas (como a clivagem e a dissociação) e se estabelecem relações de objeto. Estas duas estruturas de personalidade poderão distinguir-se pela presença de um self narcísico integrado, mas patologicamente grandioso, na personalidade narcísica, que surge da fusão do self ideal com o objeto ideal e com o self real7. Esta fusão conduz a fenómenos projetivos - projeção dos aspetos do self que são inaceitáveis - o que leva à desvalorização dos objetos externos alvos dessas projeções, ao mesmo temo que tem lugar a destruição dos objetos internalizados.

A "grandiosidade patológica do self ", termo cunhado por Kohut, foi adaptado por Kernberg para se referir a um self grandioso, e por isso defensivo, contra o investimento ou a dependência de terceiros. De acordo com Kernberg o narcisismo normal (transitório) deve ser visto como um investimento da líbido no self que mantém boas relações objetais internas. Já no narcisismo patológico, verifica-se uma profunda deterioração nas relações de objeto, deixando o self de ter capacidade para o estabelecimento de relações integrativas, sendo o investimento no Outro predominantemente temporário e superficial, tendo em vista a diminuição da tensão sentida12.

Os pacientes narcísicos, de acordo com a descrição de Kernberg, são pessoas que se comparam constantemente aos outros, mantendo sentimentos de inferioridade e anseios intensos de possuir o que outras pessoas possuem. De forma a lidarem com a inveja que sentem, desvalorizam os outros e, consequentemente, ocorre um esvaziamento do seu mundo interno de representações objetais, originando uma sensação de vazio interior. Esse vazio apenas pode ser compensado pela admiração de outras pessoas e por meio de um controlo absoluto sobre elas. Apesar destas distorções, indivíduos com uma personalidade narcísica podem ter defesas adaptativas consideradas adequadas pela sociedade. Isto ocorre sobretudo em fenómenos em que são admirados por terceiros, ou quando atingem um sucesso social assinalável, que se pode dar, contudo, à custa do exibicionismo e com um interesse profissional pouco genuíno, naquilo que o autor apelida de pseudosublimação3,7.

A controvérsia Kernberg / Kohut

Ainda que ancoradas em perspetivas eminentemente psicanalíticas as teorizações destes dois autores continuam a ter um forte impacto na abordagem atual à Perturbação de Personalidade Narcísica (PPN). E, no entanto, estas teorizações divergem em vários pontos (alguns dos quais centrais) na conceptualização teórica e nas intervenções terapêuticas propostas7.

Apesar de concordarem na perspetiva do narcisismo como uma fase normal e essencial do desenvolvimento estes autores divergem quanto à razão da sua persistência.

De acordo com Kohut, o narcisismo enquanto traço, surge e matura-se durante o desenvolvimento, permanecendo presente durante a vida, propondo a universalidade da necessidade de gratificação narcísica através de selfobjetos12. Aliás, o self narcísico patológico é resultado da estase, não evolutiva, do self narcísico da criança que resulta da ausência de um selfobjeto. A própria idealização na transferência é vista como uma compensação dessa estrutura intrapsíquica ausente7.

Por outro lado, Kernberg elabora a sua teoria de acordo com os modelos metapsicológico e da Psicologia do Ego, considerando que há um processo de desenvolvimento normativo, no período pré-edipiano, de integração do Supereu. Este processo deve ser acompanhado de uma sublimação dos traços narcísicos infantis dando lugar a um Eu coeso, com representações integradas do self e dos objetos. Distingue o narcisismo saudável (sempre imaturo e presente apenas durante o desenvolvimento) do narcisismo patológico. Para este autor, o self narcísico é uma estrutura patológica, que não tem quaisquer semelhanças com o desenvolvimento normal das crianças, e a idealização uma defesa contra sentimentos aversivos)7,12.

Kohut distinguiu a PPN da perturbação da personalidade borderline (PPB) sobretudo porque, na sua perspetiva, a PPB se caracterizaria por um défice de coesão do self que não se verifica na PPN. Já Kernberg, por usa vez, estabeleceu várias pontes entre as duas perturbações da personalidade, propondo que elas operam no mesmo nível de organização. Aliás, Kernberg defende que se deve enfatizar o papel adaptativo da grandiosidade na manutenção de um funcionamento relativamente bom do Eu (ao contrário do que acontece na PPB), apesar das defesas primitivas existentes em ambas - clivagem, idealização, negação, omnipotência e identificação projetiva. A PPN, distingue-se pela grandiosidade narcísica, apresentando, contudo, tal como na PPB, um deficitário controlo dos impulsos e baixa tolerância à frustração. Kohut discorda desta posição, não vendo necessidade de se abordar a raiva e a revolta que, quando surgem, deverão ser interpretadas como secundárias e reativas, resposta compreensível às falhas dos pais7,12

Estas diferenças, não só na conceção teórica, mas também nas descrições das características dos pacientes analisados, levaram a que, posteriormente, outros autores defendessem a existência de dois subtipos diferentes de narcisismo15. Esta ideia foi ganhando relevo nas abordagens teóricas e clínicas mais atuais havendo hoje um maior consenso de que o narcisismo ocorre dentro de um continuum entre estes dois subtipos. Numa extremidade encontra-se o narcisismo tipificado pelo indivíduo invejoso e ganancioso que exige atenção, admiração e aplauso, descrito em detalhe por Kernberg. Na outra, uma forma mais vulnerável a desprezos e à autofragmentação, caracterizada por Kohut7 .

O conceito de narcisismo no Manual Diagnóstico e Estatístico de Perturbações Mentais

O narcisismo continua a ser objeto de pesquisa e discussão. Só em 1980, através do Manual Diagnóstico e Estatístico de Perturbações Mentais (DSM) III, é que a PPN foi identificada como uma entidade própria. Desde então, a classificação dessa identidade tem sido alvo de sucessivas revisões, sobretudo pela controvérsia em torno da importância atribuída à grandiosidade nessa perturbação13.

No DSM 5, a PPN é integrada no Cluster B, grupo que inclui outras Perturbações de Personalidade com as quais partilha características. Aqui, as perturbações de Personalidade foram organizadas em 5 critérios, ainda alvo de discussão entre vários autores14.

A complexidade do processo de revisão da DSM levou a que, na sua mais recente versão, as perturbações da personalidade fossem incluídas nas secções II e III. A secção III ("Modelos e Medidas Emergentes") ao apresentar uma perspetiva classificatória dimensional pretende responder às dificuldades identificadas na atual abordagem - categorial. A perspetiva dimensional, ademais de se contrapor à perspetiva categorial, pressupõe a existência de um continuum. Ou seja, mais importante que afirmar que um individuo tem ou não uma (determinada) perturbação de personalidade será identificar traços e modelos de funcionamento que apontam para uma estrutura de personalidade. Nesse sentido são propostos dois modelos de funcionamento: o narcisismo grandioso, que envolve o sentimento de importância do próprio, de dominância e de ser único e magnânimo; e o narcisismo vulnerável, caracterizado por sentimentos de insegurança, hipersensibilidade à crítica e evitamento social15.


DISCUSSÃO

Modelação do narcisismo no passado recente

Com base nos conceitos criados no início do século XX e nos modelos desenvolvidos por Kernberg e Kohut, a discussão sobre o conceito de narcisismo tem merecido atenção e controvérsia crescentes16. Várias conceptualizações responsabilizam os pais, mas alguns estudos evidenciam a necessidade de se considerar a existência de um componente genético e que o funcionamento dos pais pode até ser um aspeto parcialmente reativo na relação com a criança17. Enquanto potencial perturbação da personalidade, o narcisismo deve ser compreendido prestando atenção à sua dimensão biopsicossocial, não estando alheio a influências hereditárias e ambientais17,18.

Um dos exemplos explorados por autores de diferentes áreas é a mudança do ambiente socioeconómico e político ocorrida durante a segunda metade do século passado.

O chamado "pós-fordismo", movimento que se tornou patente em 1970, acarretou os conceitos de flexibilidade e de especialização laborais, de modo a acompanhar rápidas transições dos padrões de consumo. Esta flexibilidade, dependente das exigências vigentes do mercado livre, veio pôr em causa o modelo existente de segurança laboral traduzindo-se em novas configurações, quer da organização industrial, quer da vida social e política. O padrão laboral resultante criou também modificações na noção da esfera e dos limites pessoais, que se fundem com o trabalho e criaram limites difíceis de distinguir19. A associação do narcisismo ao "pósfordismo" tem a ver, parcialmente, com este paralelismo já que, simplificadamente, podemos pensar que no narcisismo existe uma diminuição da capacidade de distinguir entre o self e meio envolvente, pelo recurso a fenómenos projetivos. Recurso esse que, se usado de forma continuada, pode agravar uma vulnerabilidade identitária, com significativos défices na coesão do self e na distinção entre as características do próprio e as do objeto real. O "pós-fordismo" trouxe um contexto de insegurança laboral que, simultaneamente, exige uma flexibilidade incondicional, podendo conduzir a que a promoção da capacidade de trabalho se torne parte da personalidade, tornando o individuo numa "mercadoria"20, o que perpetuará sentimentos de vazio e de falta de autenticidade e, simultaneamente, estimulará traços narcísicos defensivos21. Este novo ambiente laboral é desprovido das respostas validantes sem as quais, de acordo com Kohut, os traços narcísicos se tornam mais evidentes. Por outro lado, também dificulta, pelas suas características, a capacidade do self estabelecer relações integrativas, aspeto importante no processo de sublimação do narcisismo patológico referido por Kernberg. Este paralelismo com a noção de "mercadoria" tem sido associado ao conceito do "fetichismo da mercadoria" de Karl Marx, explorado na obra "O Capital"22. Nesta publicação o autor defende que a produção de mercadorias na sociedade capitalista se autonomiza relativamente à vontade do produtor, passando a existir uma relação direta entre as coisas e não entre as pessoas. Cada produtor deverá produzir a sua mercadoria nos termos de satisfação de necessidades alheias, o que faz com que a mercadoria determine a vontade do produtor e não o contrário.

Este lado abstrato do trabalho enaltece e cultiva o crescimento socioeconómico, a acumulação, e esvazia o valor concreto do objeto, tal como o narcisismo nega o valor autónomo e a qualidade dos objetos. O mundo é desvalorizado pois não existe fora do self e não tem uma autonomia que mereça ser considerada23

Alguns autores, como Lasch, têm sugerido que nas últimas décadas se constata, na população geral, um aumento de traços associados ao narcisismo e que este incremento poderá ter relação com o contexto cultural prevalente, no que apelidou de "narcisismo cultural"17,21,24,25. De um modo geral, e simplista, as sociedades podem ser consideradas individualistas ou coletivistas. Nas sociedades coletivistas a prioridade é dada aos objetivos que servem os grupos como um todo; o foco, por isso, é nos objetivos comuns. Este aspeto contrasta com as sociedades individualistas, onde a primazia é dada aos processos e às motivações de cada um26,27. A promoção do individualismo tem sido evidente, nas últimas décadas, nas sociedades ocidentais, com a adoção e as escolhas de valores centradas no próprio e que se podem fundir com algumas das características presentes no conceito de narcisismo14,17. A evolução histórica geopolítica europeia do século passado permitiu retirar achados de outro modo difíceis de replicar: Vater28 comparou a Alemanha Ocidental, mais capitalista e individualista, com a Alemanha Oriental, de cunho coletivista, e encontrou significativas diferenças na prevalência de traços narcísicos em cada uma das duas populações, mais evidentes na Alemanha Ocidental. Nesse mesmo estudo concluiu que se verificou uma diluição dessa diferença, nos indivíduos que nasceram após a reunificação do país, em 1990. Na mesma linha de raciocínio, no passado recente, a análise da prevalência de expressões individualistas (e que enaltecem a individualidade) tem demonstrado que existe um recurso crescente a pronomes da primeira pessoa do singular ("eu" em vez do "nós"). Este fenómeno é patente na letra das canções contemporâneas mais populares, por exemplo29,30. A estes resultados acresce a existência da perceção de que a noção de importância individual na comunidade aumentou de modo significativo31 . Esta conjugação ideológica sugere que sociedades mais individualistas tendem a ser mais narcísicas e que essas características se observam sobretudo nas faixas etárias mais jovens. As particularidades culturais em diferentes geografias, contudo, não permitem uma generalização uniforme desta associação17,32,33.

As sociedades ocidentais modernas, de cunho individualista, representam um ponto de rutura com o modelo tradicional (enquanto modelo instalado, mais normativo e estático), que se traduz numa menor conformidade com as expectativas sociais. Existe um incentivo às motivações internas, com ênfase no individualismo utilitário e expressivo. Estas formas de individualismo pautam-se por uma valorização do individuo sobre a sociedade, podendo favorecer traços narcísicos ao valorizar o percurso individual, em que alguém se destaca34,35.

A distinção entre o narcisismo patológico e o saudável é alvo de intensa discussão há vários anos porque varia em conformidade com a normalidade contextual. Num contexto de rápida mudança cultural e social, traços narcísicos mais pronunciados podem inclusivamente contribuir para o sucesso de um indivíduo e premiar os mecanismos utilizados, previamente mal adaptativos. Mecanismos esses focados na autopromoção e na validação, paradoxalmente pautados pela rigidez e pela adoção de medidas mais ou menos disfuncionais16.

Dentro da evolução recente das sociedades ocidentais, o valor do chamado "capital social" tem vindo a diminuir. Este conceito, cunhado por Putnam36, descreve a influência benéfica das redes sociais tradicionais e a participação ativa nas mesmas, abrangendo as esferas democráticas e familiares. Paralelamente, e de modo quase simultâneo, o crescimento e a adesão às redes sociais digitais tem sido exponencial, com caráter potencialmente aditivo para pessoas com traços narcísicos37,38.

Enquanto traço de personalidade, a narcísica necessidade exacerbada de admiração pode ser alimentada pelas redes sociais, de formas anteriormente inimagináveis. Ao permitir livremente a adoção de atitudes exibicionistas, que a gratificação e a atenção em tempo real potenciam, aumenta-se o sentimento de grandiosidade39-41. Esta exposição das ambições e de sucessos crescentes permite um reconhecimento visível nas arenas sociais em que se movimentam, longe dos constrangimentos que a construção da identidade face-a-face exige.

Esta exposição não é isenta de riscos, sobretudo se pensarmos no que constitui o self, conceito debatido por vários autores42 e que, segundo Leon e Rebeca Grinberg43, é a totalidade da pessoa, incluindo o corpo com todas as suas partes, a estrutura psíquica com todas as suas partes, o vínculo com os objetos externos e internos e o sujeito enquanto oposto ao mundo dos objetos. Ao ser também um processo público o self pode ser modelado, em parte, por esta participação nestas esferas socias, cujo impacto se discute a seguir44. Partindo das ideias definidas por Markus e Nurius45 esta conceção pode assumir duas formas - o self atual, conhecido pelos outros, e o self possível, desconhecido pelos outros - que podem entrar em conflito e perturbar a coesão identitária.

Mundo atual, as redes sociais e o favorecimento do narcisismo

O fenómeno das redes sociais e as consequentes transformações na sociedade têm sido alvo de vários debates. Uma das mais interessantes questões colocadas é a da sua relação com o narcisismo. Isto porque as redes sociais funcionam num contexto de relações superficiais, com a possibilidade de se criarem "amizades" com grande número de pessoas (vários milhares em muitos casos), mas que não passam de meros contactos. Para além disso, proporcionam aos utilizadores um ambiente extremamente controlado, onde podem expor apenas o que querem (selecionando fotografias e momentos). São um espaço ideal de autopromoção, possibilitando a pessoas com funcionamento narcísico tirar vantagem disso. As redes sociais, pela possibilidade de maior divulgação da imagem, de estabelecer um grande número de relações sociais e da autopromoção, constituem um meio atrativo para pessoas com personalidade ou traços de personalidade narcísicos, facilitando a expressão dos mesmos. Vários estudos39 relacionam o narcisismo (e problemas de adição) com as redes sociais. Estes achados são frequentes tanto no narcisismo vulnerável (mais próximo do conceito de Kohut) como no grandioso (mais próximo do conceito de Kernberg), ainda que sejam mais evidentes neste último. Verifica-se que estas pessoas assumem uma presença mais expressiva nas redes sociais e mais conteúdos associados à autopromoção, em parte aliciados com o potencial de uma plateia ilimitada39,46. No narcisismo vulnerável, as redes sociais permitem que indivíduos com menor extroversão possam cultivar selves idealizados que vão, progressivamente, internalizando, através da cuidadosa seleção do que é, ou não, publicado. São, contudo, mais sensíveis a críticas e comentários, o que os faz preferir redes sociais que envolvam menor reciprocidade. Assim, podem melhor gerir a imagem e a identidade que querem passar de si, que receiam não conseguir transmitir pessoalmente, aumentando a possibilidade de serem admirados - traço incontornável do narcisismo47. Neste contexto, como teorizado por Kohut, o narcisismo poderá ter a função de tentar restaurar um estado de harmonia entre o self e o meio ambiente proporcionado pelas redes sociais.

A possibilidade de alcançar plateias numerosas, num ambiente controlado, onde a informação é veiculada do modo mais conveniente, constitui um meio privilegiado para expor e alimentar traços projetados que possam colher aprovação e admiração de terceiros. Sabe-se que indivíduos com traços narcísicos têm, habitualmente, perfis com mais atualizações, com uma presença mais constante nas redes sociais e são potencialmente mais disruptivos e agressivos37,44,48. As redes sociais não assumem um papel unidirecional na promoção do narcisismo e há autores que sugerem que elas podem servir para o desenvolvimento de traços narcísicos onde estes não eram verificados anteriormente ou tão exuberantes46,47.

Associada a essa possibilidade, assiste-se a uma cada vez maior exposição à internet e às redes sociais a partir de idades cada vez mais precoces. De que forma esta exposição contribuirá para a formação destes traços de personalidade é algo que se tenta definir51. As redes sociais não são, contudo, desprovidas de vantagens, existindo uma ampla evidência no que toca, por exemplo, ao reforço de laços sociais e sentido de comunidade52.

É ainda importante perceber que independentemente do maior e mais fácil acesso às redes sociais, o contexto cultural continua a ser fundamental no desenvolvimento do indivíduo, já que culturas diferentes valorizam de forma distinta o sucesso individual21. Sociedades coletivistas dão mais valor à interdependência e às normas e objetivos grupais. Nestas culturas os comportamentos narcísicos são geralmente menos valorizados, e de forma compensatória as redes sociais podem constituir uma plataforma de maior liberdade podendo ser mais fácil a expressão de traços de personalidade que de outro modo não seriam bem aceites53.


CONCLUSÃO

A compreensão do narcisismo é multifatorial, destacando-se para tal, os contributos de Kohut e de Kernberg não só na sua compreensão, mas também na identificação dos fatores que o promovem. Neste sentido o contexto social é muito importante. A complexidade da sociedade atual, com modificações tecnológicas progressivamente mais profundas e rápidas, dificulta a identificação de novos fatores. Na sociedade moderna ocidental tem havido uma desvalorização de valores coletivos face a valores individuais, o que parece ter impacto na forma como traços narcísicos de personalidade estão presentes45.

Lasch sugeriu que esta transformação social, em marcha há algumas décadas, amplifica traços narcísicos pela promoção do individualismo e da diminuição do valor do coletivo e dos compromissos sociais21. Parte da evidência recente, que compara diferentes contextos culturais, indica que de facto estas ideias podem estar corretas e que estão a ser favorecidos traços narcísicos numa sociedade cada vez mais individualista.(28) Este fenómeno ganha ainda uma nova dimensão e projeção com o surgimento das redes sociais, profundamente associadas à promoção da imagem e da valorização pessoal, constituindo um meio privilegiado para esse efeito. Há, inclusivamente, evidência da relação entre o tempo passado nas redes sociais e este traço de personalidade. (52)uploading photos and usage frequency Essas redes são uma arena de exercício livre, consciente ou não, de mecanismos de defesa primitivos como a projeção e identificação projetiva, onde se cultivam selves idealizados, se criam falsas identidades, negando a separação, a agressão, a inveja ou a dependência.

Permanece objeto de intenso debate a possibilidade de a utilização destas plataformas ser, além de um meio propício para exibir traços de narcisismo, um fator que incentiva a formação de personalidades narcísicas. O futuro dirá qual o impacto deste fenómeno nas nossas sociedades, sendo importante, reconhecendo os benefícios da sociedade moderna, identificar também os seus riscos.


REFERÊNCIAS

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Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa, Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental - Penafiel - Porto - Portugal

Autor correspondente

João Luis Martins Quarenta
jmartinsquarenta@gmail.com

Submetido em: 04/10/2022
Aceito em: 06/12/2022

Contribuições: João Luis Martins Quarenta - Coleta de Dados, Conceitualização, Investigação, Metodologia,Redação - Preparação do original, Redação - Revisão e Edição;António Manuel Da Mota Almeida - Coleta de Dados, Conceitualização, Investigação, Metodologia, Redação - Preparação do original, Redação - Revisão e Edição;Carla Rio - Conceitualização, Redação - Revisão e Edição;Orlando von Doellinger - Redação - Revisão e Edição, Supervisão

 

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