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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2022; 24(3):9-12



Carta ao Editor

Considerações sobre a busca por muscularidade entre homens gays

Considerations about drive for muscularity among gay men

Consideraciones sobre la búsqueda de musculatura entre los hombres gays

Felipe Alckmin Carvalhoa, Jônatas Oliveirab

Resumo

Apresenta-se um manuscrito no formato de "carta ao editor", em que é abordada a busca por muscularidade por homens gays e suas possíveis funções, como reparação da autoestima danificada por exposição crônica a experiências de homofobia, necessidade ou desejo de uma aparência mais masculina, sensação de força e capacidade de autoproteção e evitação da constatação da própria fragilidade psíquica. São apresentadas indicações a profissionais de saúde mental que cuidam dessa população. Alguns fragmentos da experiência clínica do primeiro autor são apresentados a título de ilustração.

Descritores: Homossexualidade masculina; Insatisfação corporal; Homofobia; Transtornos da alimentação e da ingestão de alimentos; Transtornos dismórficos corporais

Abstract

A manuscript in the form of a "letter to the editor" is presented, in which the search for muscularity by gay men and its possible functions is addressed, such as repairing self-esteem damaged by chronic exposure to experiences of homophobia, need or desire for a more masculine appearance, feeling of self-confidence and capacity for self-protection and avoidance of the realization of one's own psychic fragility. Indications are presented to mental health professionals who care for this population. Some fragments of the first author's clinical experience are presented by way of illustration.

Keywords: Male homosexuality; Body dissatisfaction; Homophobia; Feeding and eating disorders body; Dysmorphic disorders

Resumen

Se presenta un manuscrito en forma de "carta al editor", en el que se aborda la búsqueda de la musculatura por parte de los hombres homosexuales y sus posibles funciones, como reparar la autoestima dañada por la exposición crónica a experiencias de homofobia, necesidad o deseo de apariencia más masculina, sentimiento de fortaleza y capacidad de autoprotección y evitación de la realización de la propia fragilidad psíquica. Se presentan indicaciones a los profesionales de la salud mental que atienden a esta población. A modo de ilustración se presentan algunos fragmentos de la experiencia clínica del primer autor.

Descriptores: Homosexualidad masculina; Insatisfacción corporal; Homofobia; Trastornos de la alimentación y la ingesta de alimentos; Trastornos dismórficos corporales

 

 


São Paulo, 12 de Dezembro de 2022


Prezados Professores Doutores Ana Margareth Siqueira Bassols, Felipe Ornell, Jaqueline B. Schuch, Joana Corrêa de Magalhães Narvaez

Editores-Chefe da Revista Brasileira de Psicoterapia,

Após alguns anos atendendo homens gays em processos de psicoterapia, um perfil de paciente bastante particular tem-se apresentado repetidamente no consultório, presencial ou online: o homem gay, de meia idade, normalmente com êxito profissional, muito musculoso, e bastante fragilizado psiquicamente. A fragilidade se expressa na carência de autoconhecimento, na excessiva preocupação com a avaliação dos outros sobre si, pelo profundo impacto da percepção do outro em sua autoestima e autoconfiança, em déficits de habilidades socioemocionais, como identificação e expressão de pensamentos e sentimentos, habilidade de comunicação e de controle de impulsos, e dificuldade do estabelecimento de rede de apoio social íntima1.

Pesquisadores na área de psicologia clínica têm apontado que a busca por músculos entre a população de homens gays é bastante frequente1. Estudos epidemiológicos indicam que homens gays são atingidos desproporcionalmente por problemas de saúde mental associados ao corpo, como transtornos alimentares e transtorno dismórfico corporal, sobretudo dismorfia muscular, em comparação a homens heterossexuais e população geral1.

A busca por muscularidade entre homens gays pode ter como função reparação/reconstrução da autoimagem e ou/autoestima, muitas vezes profundamente prejudicada por histórico de rejeição/violência familiar associada à orientação sexual, histórico de homofobia, expressa na sociedade e dentro da comunidade LGBTQIA+ e bullying homofóbico durante o período escolar, relativo à magreza, obesidade, fragilidade e/ou feminilidade2,3. Pode também estar associada à necessidade uma aparência mais masculina, à sensação de força e capacidade de autoproteção4. É o que ilustra a fala de Miguel2, 27 anos, personal trainer, proveniente de uma pequena cidade do interior no estado de Minas Gerais: "ninguém vai querer mexer com uma bicha desse tamanho. O povo respeita mais, parece". Em um outro encontro, esse mesmo paciente referiu: "agora eu finalmente me encaixo, sou desejado, respeitado - todo mundo quer ser musculoso, e eu consegui. Claro que ainda falta um pouco, porque ainda estou com as pernas meio pequenas".

Um mecanismo que pode parecer, num primeiro momento, como tendo função de coping e reparação, para muitos homens gays, tem-se transformado em agravamento do sofrimento psíquico. Entre os sinais e sintomas que diferenciam psicopatologia de um estilo de vida saudável, nesse caso, estão: preocupação excessiva com a forma do corpo e influência indevida do corpo na autoestima, necessidade intensa de ir à academia ou fazer exercícios físicos, mesmo doente ou em situações em que isso não é possível, uso de terapia hormonal sem indicação e sem prescrição médica, realização de repetidos procedimentos estéticos e cirúrgicos com finalidade de parecer mais torneado ou forte, com prejuízo financeiro ou de outra natureza, realização de exercícios físicos ultrapassando os limites do próprio corpo, gerando dor e lesões, insatisfação corporal e/ ou distorção de imagem corporal, superinvestimento psíquico no corpo, em detrimento do desenvolvimento de outras áreas da vida e culpa. Ademais, dietas hiperproteicas, com alta restrição de calorias, gorduras e carboidratos e rigidez na alimentação são sinais de alerta5.

A título de ilustração, Antônio, um homem gay de 38 anos, empresário, residente de uma capital brasileira, reportou em uma das sessões: "eu escolho o hotel para minhas viagens pela academia. Se não tiver, ou se for fraquinha, eu nem vou. Não deixo de treinar nem doente. Durante a pandemia eu fazia exercícios em academia clandestina. Não tenho como parar de malhar". Todas essas manifestações clínicas podem ser sinais/sintomas de transtornos alimentares, como anorexia nervosa, bulimia nervosa ou transtorno dismórfico corporal - dismorfismo muscular ou todos esses transtornos mentais em comorbidade6, não podendo ser confundidos com um estilo de vida saudável.

O sofrimento psíquico e possíveis psicopatologias, como as listadas anteriormente, devem ser avaliados com cautela por profissionais de saúde que atendem homens gays. A dificuldade do reconhecimento e cuidado do sofrimento e do diagnóstico psicopatológico atrasa o tratamento e está associada a piores prognósticos. A abordagem em psicoterapia, independentemente da orientação teórica, deve favorecer repertório de autoconhecimento, sobretudo com relação ao reconhecimento da psicopatologia, de suas origens e de sua função, e possíveis relações do padrão de comportamento atual e experiências homofóbicas na comunidade e/ ou internalizadas. É desafio do profissional de saúde mental, na abordagem desse perfil de pacientes, promover um processo relacional que favoreça o autocuidado e autoacolhimento, além do reconhecimento e a elaboração de marcas deixadas pelos episódios de violência física, verbal e/ou simbólica associadas à homofobia.


Com nossos melhores cumprimentos,
Felipe Alckmin Carvalho e Jônatas Oliveira



REFERÊNCIAS

1. Nagata JM, Ganson KT, Austin BS. "Emerging trends in eating disorders among sexual and gender minorities." Current opinion in psychiatry 33.6 (2020): 562-567.

2. Calzo JP et al. "Eating disorders and disordered weight and shape control behaviors in sexual minority populations." Current Psychiatry Reports 19.8 (2017): 1-10.

3. Ventriglio A et al. "Homophobia and mental health: a scourge of modern era." Epidemiology and Psychiatric Sciences, 30, 1-3.

4. Tiggemann M, Martins Y, Kirkbride A. "Oh to be lean and muscular: body image ideals in gay and heterosexual men." Psychology of Men & Masculinity 8.1 (2007): 15-24.

5. Murray StB, Griffiths S, Mond JM. "Evolving eating disorder psychopathology: Conceptualising muscularity-oriented disordered eating." The British Journal of Psychiatry 208.5 (2016): 414-415.

6. American Psychiatric Association (APA). Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM-5). 5a ed. Porto Alegre: Artmed; 2014.










a Universidade de São Paulo, Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo - São Paulo/SP - Brasil
b Universidade de São Paulo, Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina - São Paulo/SP - Brasil

Autor correspondente

Felipe Alckmin Carvalho
felipealckminc@gmail.com / E-mail alternativo: felipcarvalho@usp.br

Submetido em: 13/12/2022
Aceito em: 14/12/2022

Contribuições: Felipe Alckmin Carvalho - Conceitualização, Investigação, Redação - Revisão e Edição, Visualização; Jonatas Oliveira - Metodologia, Redação - Revisão e Edição, Visualização

Conflito de Interesse: os autores declararam não haver conflitos de interesses. Não houve nenhuma forma de financiamento

1 Esse processo de busca por muscularidade como contraponto à fragilidade psíquica, verificado entre alguns indivíduos homossexuais, também pode estar presente entre homens heterossexuais, sendo selecionado e mantido por outras variáveis da história de vida que não tenham relação com as apresentadas no presente artigo.

2 O nome deste, e dos outros pacientes apresentados, são fictícios. Detalhes da história de vida foram modificados com a finalidade proteger a identidade do paciente.

 

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