Nerve - um jogo sem regras"" />
Rev. bras. psicoter. 2022; 24(2):123-136
Ferreira AJC, Rosaffa RG. Psicanálise e cultura a partir da análise do filme "Nerve - um jogo sem regras". Rev. bras. psicoter. 2022;24(2):123-136
Resenha
Psicanálise e cultura a partir da análise do filme "Nerve - um jogo sem regras"
Psychoanalysis and culture from the analysis of the movie "Nerve - a game without rules"
Psicoanálisis y cultura desde el análisis de la película "Nerve - un juego sin reglas"
Ana Julia Candida Ferreira, Renata Garutti Rosaffa
Resumo
Abstract
Resumen
INTRODUÇÃO
Algumas produções cinematográficas conseguem representar fragmentos do cenário cultural contemporâneo com riqueza de possibilidades interpretativas, tornando-se verdadeiros exemplos de metalinguagem. O filme "Nerve: Um jogo sem regras" é um desses exemplos. Dirigido por Henry Joost e Ariel Schulman e lançado no ano de 2016, narra a busca da protagonista, Venus, uma moça tímida, por uma versão mais extrovertida e animada de si mesma, a partir de sua inscrição num jogo de desafios online chamado Nerve.
O filme atende as características do gênero thriller , ou suspense, estabelecendo uma narrativa de tensão e excitação para manter o público atento. Tal aspecto relaciona-se diretamente com a metalinguagem produzida no filme: os personagens são colocados em situações de constante suspense, tensão e excitação em meio a um cenário hightec que serve de espelho ao público, mostrando a cultura contemporânea que insere a todos nós.
A cena inicial não poderia ser mais contemporânea: uma jovem, a protagonista, utiliza seu computador para acessar seus e-mails, abrindo uma janela após a outra, sem fechá-las ou responder a elas. Um e-mail, contudo, ganha um destaque especial, trata-se de um convite para o jogo: Nerve (nervo, traduzido para o português), que dá título ao filme. Venus, a protagonista, fica então diante de duas posições a serem escolhidas em Nerve: 1) um observador ou 2) um jogador. Mesmo sem o conhecimento dos detalhes ou implicações dessa escolha, Venus opta pela posição de jogadora, automaticamente autorizando o jogo a acessar todas as suas informações pessoais disponíveis na Internet, como dados bancários, histórico de buscas e acessos em websites, tudo isso com a finalidade de estabelecer desafios mais personalizados.
A partir da posição de jogadora, a personagem aceita se submeter aos desafios que lhe são encaminhados, cumprindo-os em tempo real e com transmissão online para uma multidão que escolheu a posição de observador. Diante dessas circunstâncias, qual a melhor opção? Quais ganhos poderiam haver em se submeter à exposição imposta por esse jogo e quais os custos para o sujeito? Esses são alguns dos diversos elementos tratados no filme que nos permitem reconhecer a dinâmica social que tem predominado na cultura contemporânea pós-moderna. São justamente esses elementos representativos da dinâmica social, que evidenciam como as relações sociais contemporâneas parecem se estabelecer, e que favorecem o olhar à luz da Psicanálise, uma vez que a esta interessa as manifestações da cultura, pois, conforme afirma Mendes4:
[...] ela fala do que há de inconsciente na cultura, daquilo que se manifesta no discurso da cultura. Embora a ciência não se preocupe com o sujeito que opera como produtor dela mesma, a psicanálise parte do que a ciência deixa de lado, que é justamente o sujeito do inconsciente e o mal-estar nas relações com a cultura (p. 24)4.
Ordem, progresso, verdade, razão, objetividade, emancipação universal, sistemas únicos de leitura da realidade, grandes narrativas, teorias universalistas, fundamentos definitivos de explicação, fronteiras, barreiras, longo prazo, hierarquia, instituições sólidas, poder central, claras distinções entre público e privado etc (p. 83)8.
Sob a influência do mundo exterior real que nos circunda, uma parte do isso experimentou um desenvolvimento especial. O que era originalmente uma camada cortical dotada dos órgãos para a recepção de estímulos e dos dispositivos para a proteção contra estímulos se transformou numa organização especial que desde então serve de mediadora entre o isso e o mundo exterior. A esse distrito de nossa vida psíquica demos o nome de eu (p. 44)10.
A vantagem de haver instituições fortes é que as referências identitárias a partir das quais nos constituímos estão dadas, e são vividas como sólidas e confiáveis. A desvantagem é que há poucas opções de vida consideradas legítimas. Nesse contexto cultural, quem não cabe no modelo único sofre e se culpa por se sentir - e por ser, efetivamente - diferente e desviante da norma (p. 31-32)14.
A façanha do Eu é saber que o futuro é imprevisível e indeterminado, locus privilegiado da dúvida, do conflito e do sofrimento. Nesta variabilidade infinita que se traduz na abertura para um futuro não decidido a priori é que o Eu vai escrever a sua história e interpretar o mundo (p. 91)13.
Aquilo que chamamos de pós-modernidade generalizou as experiências da transplantação, do exílio e do desenraizamento: ela acentuou a violência. Nesta experiência, nós somos confrontados não somente com o que há de estranho (estrangeiro) no outro, mas, primeiramente e sobretudo, com o que surge em nós de desconhecido, de indiferenciado e de estranhamento inquietante. Nossas referências identificatórias e nossas identificações se encontram modificadas. Nesta perspectiva, as falhas (failles) na segurança do ambiente são também uma experiência geradora de angústia, na medida em que a perda do código reatualiza os conflitos intrapsíquicos entre as tendências de amor e de ligação e as tendências de raiva e de desligamento. (p. 22)16.
A fantasia do psicótico não é somente um substituto para o brincar, como na neurose, mas também pretende ser a realidade, mais apropriadamente chamada de uma nova realidade. Não é mais uma questão de brincar, mas de um substituto para realidade perdida (p. 38)19.
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