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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2022; 24(2):103-114



Relato de Caso

Observações sobre a identificação projetiva como forma de comunicação em um caso de avaliação-intervenção

Observations on the projective identification as a means of fcommunication in an assessment-intervention case

Observaciones sobre la identificación proyectiva como una forma de comunicación en un caso de intervención-evaluatión

Maria Angela Favaro Nunes, Bruno Gomes Valente

Resumo

O objetivo deste artigo foi o de compreender o fenômeno da identificação projetiva que se originou em um processo de avaliação-intervenção sob a orientação psicanalítica, no atendimento de uma criança e sua família. A análise do material teve como eixo primevo as concepções de Klein e Winnicott a fim de descrever as aproximações e distanciamentos no decorrer dos encontros, sustentando as reflexões sobre a relação construída. A totalidade dos atendimentos foi marcada pela comunicação não-verbal do paciente. Sobretudo os gestos, as poucas vocalizações e os sentimentos despertados no autor tornaram-se as vias possíveis de uma comunicação. Com o holding oferecido pelo setting, o menino começou a fazer atividades por iniciativa própria, espalhando tintas e cola, fazendo montagens com papeis, uns sobre outros. O rolo de papeis servia para uma montagem no próprio corpo, tal como o fio da seda, na busca de um continente para sua mente nascente, emergente no encontro com um ego auxiliar, mente-casulo para abrigar. A experiência do atendimento e as discussões na supervisão mostraram a importância do vínculo com o paciente que favoreceu a identificação da dor mental e abertura com vistas à expansão do espaço mental a partir da dupla.

Descritores: Criança; Contratransferência; Psicanálise

Abstract

This paper aims at understanding the phenomenon of projective identification that originated in an assessmentintervention process in the treatment of a child and his family from a psychoanalytic point of view. Material analysis had Kleins and Winnicotts conceptions as a primary axis for describing the approaches and distances that took place throughout the meetings, providing the basis for the reflections on the relationship built between analyst and patient. All the encounters were characterized by the patients non-verbal communication. Notably, the gestures, the few vocalizations and the feelings that emerged in the intern became the possible means of communication. With the holding offered by the setting, the boy started doing activities on his own initiative, spreading paints and glue, creating assemblies with papers, one on top of another. The roll of paper for cleaning was used for an assembly wrapped around his own body, like a silkworm weaving threads in its metamorphosis. The encounter with an auxiliary ego allowed for a felling of continuity, a cocoon-mind for sheltering at that moment. The experience of the treatment process and the discussions with a supervisor demonstrate the importance of the bond with the patient, which favored the identification of pain and openness with a view to expanding the mental space on the duo.

Keywords: Child Care; Countertransference; Psychoanalysis

Resumen

El objetivo de este artículo fue comprender el fenómeno de identificación proyectiva que se originó en un proceso de evaluación-intervención bajo una orientación psicoanalítica, en la atención psicológica de un niño y su familia. El análisis del material tuvo como eje primario las concepciones de Klein y Winnicott para describir las aproximaciones y distancias durante los encuentros, sustentando las reflexiones sobre la relación construida. Todas las visitas fueron marcadas por la comunicación no verbal del paciente. Sobre todo, los gestos, las pocas vocalizaciones y los sentimientos que fueron despertados en el interno se convirtieron en un medio posibles de comunicación. Con el holding ofrecido por el setting, el niño empezó a realizar actividades por iniciativa propia, esparciendo pinturas y pegamentos, haciendo montajes con papel, uno arriba del otro. El rollo de papel de limpieza sirvió para un montaje, al envolverlo al alrededor del cuerpo, así como el gusano de seda que produce el hilo en su metamorfosis. El encuentro con un ego auxiliar permitió la sensación de continuidad, un capullo-mente para refugiarse en ese momento. La experiencia de esta atención psicológica y de las discusiones en la supervisión mostraron la importancia del vínculo con el paciente, lo que favoreció la identificación del dolor y una apertura al buscar ampliar el espacio mental de la dupla.

Descriptores: Niño; Psicoanálisis; Contratransferencia

 

 

O presente artigo trata das observações de um processo de avaliação-intervenção psicológica, sob a orientação psicanalítica. O atendimento foi realizado por um dos autores, supervisionado pela outra autora, sendo esse artigo produto da elaboração dos pensamentos de ambos acerca das sessões. Os encontros ocorreram entre o autor com seu paciente de cinco anos e a família, em um estágio do curso de Psicologia. Trata-se da modalidade do psicodiagnóstico interventivo que, embora não seja uma psicoterapia, pode ter um efeito terapêutico pensando que as entrevistas e a aplicação de testes e técnicas podem ser acompanhadas de assinalamentos, comunicações e interpretações1. Essa modalidade de trabalho postula o contato permanente com a criança e sua família no decorrer de alguns encontros, auxiliando no conhecimento de sentidos e significados atribuídos às suas vidas e seus mundos2.

Tal processo de avaliação-intervenção tornou possível a observação, através da prática, dos conceitos psicanalíticos estudados com as leituras. A compreensão do construto de identificação projetiva é complexa, representou grande avanço teórico nos estudos psicanalíticos contribuindo de forma significativa à prática clínica, principalmente nos casos de crianças e pacientes psicóticos. O conceito de identificação projetiva foi descrito pela primeira vez, por Klein3, em seu artigo de 1946 "Notas sobre alguns mecanismos esquizoides" para designar uma forma especial de identificação do bebê com a mãe. Esse mecanismo, na sua forma primitiva, se traduz por fantasias em que sujeito introduz a própria pessoa dentro do objeto a fim de destruí-lo. Por consequência, partes do próprio self, boas e ruins, são cindidas, projetadas e introduzidas no interior do objeto. O significado da identificação projetiva vai além da ideia da associação destas duas palavras, isto é, atribuição ao objeto de traços de si próprio.

Melanie Klein, inicialmente, salientou os ataques sádicos ao corpo da mãe para explicar o que denominou como identificação projetiva, ocorrendo primeiramente o ato de sugar até exaurir e assaltar o corpo da mãe, retirando os seus conteúdos bons, secundariamente o ato de depositar maldade, excrementos maus no corpo da mãe e a expulsão de substâncias perigosas do próprio self para dentro da mãe. Sendo assim, os aspectos nocivos do self não são só projetados, mas também introjetados para dentro da mãe, que passa a ser sentida como sendo o self mau, e não como um indivíduo separado. Se a mãe é sentida como sendo o self mau, perseguidor, grande parte do ódio contra o próprio self é dirigido contra ela, o que leva a "uma forma particular de identificação que estabelece o protótipo de uma relação de objeto agressiva"3 (p. 27). Klein define esse tipo de identificação especial como identificação projetiva.

Em um estado primitivo do desenvolvimento, a identificação projetiva diz respeito a uma defesa importante da posição esquizoparanóide, usada contra a ansiedade e que também constrói as relações de objeto narcisistas, pelo fato de que o indivíduo secciona partes do próprio self que ele projeta nos objetos externos. A função principal é a de afastar de si o sadismo, que causa o medo e a ansiedade persecutória. Vale mencionar que anteriormente esse processo foi denominado por Klein como "excisão" e, posteriormente, no artigo de 1946 veio a ser uma primeira formulação do conceito de identificação projetiva. Trata-se de "um grito de socorro do ego imaturo enviado ao ambiente"4 (p. 103). O ego imaturo percebe-se atacado por violentas pulsões, resta-lhe enviar partes do seu self ao ambiente a fim de que ocorra algum tipo de processamento destes aspectos insuportáveis. Em consequência, há um empobrecimento do ego devido ao uso excessivo da identificação projetiva, sendo a justificativa que, ao usar a identificação projetiva e projetar aspectos do self, este fica cindido, como consequência as partes boas da personalidade são sentidas como perdidas.

Nesse sentido, a identificação projetiva é um meio pelo qual o paciente expressa a sua necessidade, como a de um apoio ambiental especial ao qual não teve acesso em tenra idade, como um cuidado materno suficientemente bom e um ego auxiliar para o seu estado não integrado. No contexto terapêutico, fala-se em uma atuação (acting out) no contexto transferencial, por parte do analista como efeito das identificações projetivas do paciente. Porém, o que define se o analista irá atuar ou oferecer continência na situação transferencial, dependerá de como o analista recebe a identificação projetiva do paciente, se a reconhece e a toma como uma forma de comunicação. Os impulsos do paciente são projetados para dentro do analista que pode responder reagindo a eles ou verbalizando-os5.

Enquanto Klein apresentou as posições esquizoparanóide e depressiva indicando que o desenvolvimento de uma mente ocorreria da primeira no sentido da segunda, Bion6 (1994) mostrou que a personalidade de qualquer pessoa possui partes psicóticas e não-psicóticas, sendo os mecanismos de defesa da cisão e identificação substitutos da repressão, esta última empregada pela parte não-psicótica da personalidade. Com isso, empreendendo ataques destrutivos, tudo o que pode ser vivido com a função de ligar um objeto a outro é atacado pelo paciente. No texto "Ataques ao elo de ligação" do livro Second Thoughts, Bion retoma Klein3,6 chamando a atenção para o uso excessivo da cisão e da identificação projetiva. Esse último serve de proteção ao psiquismo, utilizado não apenas de forma patológica. Trata-se de perceber a comunicação não-verbal como um meio através do qual o paciente se expressa na situação analítica e que, portanto, diz respeito ao aspecto contratransferencial. Pode ser reconhecido e/ou reagido a esse aspecto do paciente. Hanna Segal propôs que esse modo especial de situação em que o paciente projeta para dentro do analista aspectos que lhe são próprios nos leva a admitir que a "[...] transferência está assentada em situações primitivas pré-verbais."7 (p. 1082).

Alguns autores falam de comunicações na esfera transferencial que são sentidas como "premonições". A comunicação não-verbal do paciente através de violentas identificações projetivas permite retomar a "interface trabalho psicanalítico, intuição e premonições decorrentes da intersubjetividade da mente"8 (p. 176). Esses movimentos que não são apenas ouvidos, mas também sentidos, teriam função antecipatória de captação de emoções nascentes8. Sanches (2012)8 discorre sobre a comunicação desses estados mentais, ocorrida através do mecanismo da identificação projetiva, uma vez que carecem de simbolização e abstração. Todo esse contexto diz respeito a aspectos transferenciais e contratransferenciais do processo terapêutico. A identificação projetiva do paciente produz um movimento no qual este se sente perseguido pelo terapeuta, uma vez que projeta os ataques que realiza à sua própria parte libidinal. Dessa maneira, a identificação projetiva é uma forma de se estabelecer uma comunicação entre o paciente e o terapeuta, se este pode ser continente ao que lhe é projetado9.

No contexto contratransferencial, o psicoterapeuta pode, não apenas compreender o que é dito, mas disponibilizar-se para aspectos provenientes das comunicações não-verbais. Pontes e Torrano10 utilizaram o modelo da tecnologia Bluetooth para chamar a atenção sobre as comunicações sentidas por um analista a partir do caso de um atendimento a uma paciente, cujas comunicações ocorreram fora do contexto da análise. O analista teve flashes e sentimentos antecipatórios de eventos importantes vividos por uma paciente que sofrera um acidente.

Diante de situações aflitivas do contexto transferência-contratransferência, Winnicott trouxe colaborações significativos para o trabalho com o paciente, com uma prática de décadas de trabalho com crianças e suas famílias. Para este autor, o cuidado suficientemente bom provém da mãe que alimenta a onipotência do bebê e, gradualmente, também frustra em determinados momentos. A mãe que não é suficientemente boa não alimenta tal onipotência do bebê, impondo sua própria necessidade ao gesto espontâneo do bebê. Assim, o bebê cria uma coleção de reações a uma sucessão de falhas, seu verdadeiro self não pode emergir tampouco a criatividade que dele é decorrente11. Ponto primordial é a importância do papel ambiental e do cuidado materno para o desenvolvimento emocional saudável do lactente.

Em um texto de 1958, Winnicott12 discorre sobre uma capacidade sofisticada para estar só na presença de alguém. Refere-se a um modo especial de relação entre o bebê em fase de amamentação, ou aquela criança pequena que está sozinha "e a mãe ou a mãe substituta que está confiantemente presente, ainda que representada por um momento por um berço ou um carrinho de bebê, ou pela atmosfera geral do ambiente próximo" (p. 33). Esse aspecto da teoria de Winnicott entra em consonância com um ponto da teoria de Klein, no sentido do objeto bom internalizado, o lactente na sua confiança com o ambiente, e serve como uma reserva boa, que posteriormente, o ajuda a lidar com a ansiedade. Para Winnicott12, essa reserva boa, lhe dá autossuficiência para viver, de modo que a criança fica temporariamente capaz de estar só, mesmo na ausência de objetos. O processo de estar só na presença de alguém, quando há uma imaturidade do ego, é compensado pelo apoio do ego auxiliar da mãe. O indivíduo introjeta o ego auxiliar da mãe, sendo este ponto relacionado com a teoria Kleiniana de introjeção do objeto bom, e assim o indivíduo se torna capaz de ficar só sem o apoio frequente da mãe. De outro modo, "a capacidade para estar só se baseia na experiência de estar só na presença de alguém, e que sem uma suficiência dessa experiência a capacidade de ficar só não pode se desenvolver" (p. 35)12. Acerca desse assunto, Winnicott mostra que a capacidade para estar só diz respeito a uma maturidade emocional descrevendo que teoricamente sempre há alguém presente "equivalente, inconscientemente, à mãe, à pessoa que, nos dias e semanas iniciais, estava temporariamente identificada com seu lactente, e na ocasião não estava interessada em mais nada que não fosse seu cuidado" (p. 37)12.

Assim, podemos pensar o analista que está presente, fazendo seu papel de suporte para aquelas necessidades do paciente, considerando-se o setting analítico um possibilitador dessa nova condição de maternagem13. Pacientes com um desenvolvimento incongruente, que no início da vida não tiveram uma base para um crescimento emocional saudável e que sofreram grandes intrusões, revelam um funcionamento que se expressa, sobretudo, através da comunicação não-verbal na prática clínica, por meio de identificações projetivas, e que põem à prova a capacidade do terapeuta de suportar uma carga emocional intensa. Isto é "quando o terapeuta é pressionado a sentir e se comportar de uma maneira consistente com as fantasias que o paciente projeta nele"14. Essa carga emocional se evidencia por meio da contratransferência, pode se tornar um instrumento de ajuda para que o analista compreenda ou vivencie com seu paciente as intensas angústias psicóticas. Porém, esse processo depende da disponibilidade do terapeuta para essa percepção, ele pode defender-se de viver a angústia dessa carga, e/ou conter e transformar as identificações do paciente. Dessa maneira, o paciente pode viver a continuidade de ser, sem ser interrompido por invasões, conforme o pensamento de Winnicott.15 Todos estes aspectos dizem respeito aos sentimentos provocados no analista decorrentes dessas identificações projetivas do paciente e do que estas suscitaram no analista. A contratransferência decorrente do mecanismo da identificação projetiva pode se tornar, assim, uma ferramenta no processo analítico e, a partir do vínculo estabelecido cria-se um campo psicanalítico, um solo transicional que possibilita e oferece sustentação a um trabalho de análise16.

O objetivo deste artigo foi o de compreender o fenômeno da identificação projetiva que se originou na relação transferencial e contratransferencial, observado durante as sessões com um paciente de 5 anos de idade, em uma clínica-escola de Psicologia de uma Universidade localizada no interior do estado de São Paulo. A análise do material teve como eixo primevo as concepções de Klein e Winnicott a fim de descrever as aproximações e distanciamentos durante o processo de avaliação-intervenção, sustentando as reflexões sobre a relação construída.

Material clínico

Augusto tem 5 anos de idade e chegara recentemente de mudança à cidade com sua família. Os pais buscaram atendimento com a queixa de agressividade do menino. A relação familiar era permeada por não ditos, especialmente aqueles que se referiam à história de vida do menino. Ele fora abandonado pela mãe biológica (usuária de drogas) que, por vários momentos, deixou-o com outras pessoas, como vizinhos, até que as constantes situações de negligência a levaram à perda do direito de cuidar do bebê. Posteriormente, após ter ficado alguns meses em um abrigo no primeiro ano de vida, Augusto foi adotado pelo avô materno biológico, que se encontrava casado com a segunda esposa. Esse casal tinha uma filha pré-adolescente, e adotara Augusto ainda bebê com pouco menos de um ano de idade. O avô-pai mostrava-se cético quanto ao processo do psicodiagnóstico interventivo, contudo comparecia para levar o menino juntamente com sua esposa. Ele tinha uma postura de autoridade pouco tolerante com Augusto, resolvia os problemas "batendo". Preocupavase em prover cuidado satisfatório ao menino, inferimos que buscava oferecer um desfecho diferente daquele de sua filha, a mãe biológica de Augusto, uma reparação por parte dele no exercício de sua função parental. A avó mostrava-se dedicada ao menino, afetiva com ele, estava ansiosa pela melhora de Augusto, cooperando com o processo, preocupada, sobretudo, com a situação de contar ao menino sua origem.

Segundo os pais, Augusto apresentava problemas na escola, havia batido e mordido os colegas, respondia de modo ofensivo às professoras, não obedecia, era inquieto na sala de aula. Em casa, Augusto demonstravase enciumado de sua tia-irmã adolescente, especialmente pela proximidade dela com a mãe, manifestando medo de ser abandonado. Durante todo o período de atendimento, os pais participaram do processo de forma assídua, colaborando na troca de informações que contribuíram para o aprofundamento da queixa trazida pela família relacionada ao filho, culminando com o surgimento de uma demanda familiar. Os acompanhamentos eram feitos em encontros com a criança alternado com os pais (no formato de devolutivas parciais a estes).

É fundamental mencionar que os dados referentes à identificação do paciente bem como da família foram mantidos sob sigilo, utilizou-se um nome fictício, garantindo o anonimato. A família manifestou concordância com a utilização do material clínico para pesquisas e publicações, legitimando sua anuência através da assinatura do Termo de consentimento Livre e Esclarecido.

O bicho-da-seda-menino e sua busca por uma mente-casulo

O fragmento do material clínico salienta o vértice escolhido da observação e análise da comunicação não-verbal do paciente. Buscou-se ilustrar o conceito de identificação projetiva, levando em consideração os aspectos transferenciais e contratransferenciais. O material clínico foi escolhido com base nas reflexões feitas em supervisões de grupo.

Inicialmente, contou-se com três sessões de anamnese com os pais e em seguida iniciaram-se encontros com a criança, alternados com conversas com os pais, totalizando-se 16 encontros. Esse dispositivo do psicodiagnóstico-interventivo possibilitou discussões a partir da interação com a criança e com a família. Em síntese, a queixa e a fala dos pais enfatizava a agressividade do menino em casa e com os colegas na escola. No primeiro contato com o menino, a inquietação e a agressividade não apareceram, mas sim a desconfiança e uma quietude. Não interagia com o autor nem com outras crianças que faziam parte do grupo do psicodiagnósticointerventivo. Centrava-se no seu brincar retraído, porém expressava-se de forma educada, não agitado nem agressiva, embora quase não falasse.

A percepção do autor daquele receio da criança indicava que o menino era capaz de reconhecer aquela realidade desconhecida, com pessoas que ele nunca tinha visto antes. Sabia quem ele era, onde estava e em que momento se iniciava e terminava o encontro, através das poucas falas com o autor. Chamava a atenção o contraste entre o relato dos pais e a experiência de encontro com a criança. Utilizando o eixo a relação transferencial-contratransferencial na compreensão da relação da dupla, ponderou-se que o menino estava vivendo uma experiência emocional nova, permeada por fantasias e ansiedades ainda desconhecidas. Naquele ambiente novo era oferecida a chance de expressar-se, o que reflete o oferecimento de um setting terapêutico seguro, ou seja, um ambiente que se busca capaz de prover a continuidade do ser. O relato dos pais e o contato inicial com o autor indicavam que o menino precisava comunicar o seu sentir através do outro, seja naquele apresentar-se retraído na sessão, precisando de uma "tradução" do que queria dizer, seja na agressividade em sua casa despertando na família a sensação de impotência diante da inquietude e dificuldade de comunicação das necessidades do seu verdadeiro self.

Segundo Alvarez (2020)17, a psicanálise contemporânea presta mais atenção atualmente "à relação interpessoal entre o paciente e seu analista, isto é, às mudanças na transferência do paciente e na contratransferência mutável do analista - sentimentos e reações evocados nele pelo paciente" (p. 23). Anteriormente, Klein já sugeria que podia não ser suficiente buscar no inconsciente dos pacientes aqueles sentimentos ausentes, que poderiam estar, na verdade, nos sentimentos de outras pessoas. Ela chamou de identificação projetiva essa maneira específica de nos livrarmos de partes indesejadas ou não reconhecidas de nossa personalidade, evocando tais sentimentos em outras pessoas. O exame cuidadoso em si próprio, por parte do psicoterapeuta, possibilita o encontro dessas partes excindidas do paciente, depositadas no outro. Tratase de um mecanismo de defesa primitivo, recurso que Augusto parecia acionar como dispositivo de proteção da sua mente. Em casa e na escola esse aspecto mais calmo não podia se mostrar, inferimos que parecia não haver acolhimento adequado que possibilitasse Augusto se sentir seguro para expressar suas necessidades, e como consequência ele reagia a uma sucessão de falhas ambientais, com agressividade e oposição às ordens. De outro modo, era como se a falha se repetisse cada vez que suas necessidades não eram atendidas.

A totalidade dos atendimentos foi marcada pela comunicação não-verbal do paciente que permeava os processos transferenciais e contratransferenciais. Sua comunicação verbal era mínima, não se escutava com clareza sua alocução, ele parecia não conseguir se comunicar de forma verbal. Não havia tradução em palavras para o que sentia. As ações da criança, seus gestos, as poucas vocalizações e os sentimentos despertados no contato com ele eram as únicas vias. Às perguntas e tentativas de aproximação, Augusto reagia com retraimento, porém, aos poucos, começava a soltar-se. Suas palavras eram quase inaudíveis, não tinha voz. Todavia, conseguia pedir para ir ao banheiro, caminho feito na companhia do autor. Enquanto este ficava ao seu lado, em silêncio, mas continente, o menino fazia algumas atividades que começava por iniciativa própria, como usar tintas e a cola, espalhando-os até que quase acabassem, fazendo montagens com papeis uns por cima dos outros. Ao sair para ir ao banheiro também fazia uma montagem semelhante utilizando o rolo de papel para limpar as mãos como instrumento para enrolar o próprio corpo, tal como o fio da seda que endurece ao entrar em contato com o ar, buscando um continente para enrolar-se e construir o próprio casulo, uma mente nascente, a partir do encontro com outra mente-casulo, um ego auxiliar.

As sensações que permeavam o autor nesse atendimento eram de que não se estava trabalhando com o menino, que mal conseguia falar. As supervisões procuraram mostrar que a presença do autor ao lado do menino, na caminhada por suas produções, no percurso das suas montagens, na companhia viva para as possibilidades de casulo, era de imprescindível importância para, de certa forma, sustentar a carga emocional de angústia que ele exteriorizava. Havia um brincar agressivo que Green (2013)18 salienta "é na presença do horror que compreendemos a necessidade do brincar para tornar esse horror suportável" (p. 24). As comunicações nãoverbais ganharam expressão através da abordagem da contratransferência, o que ajudou na compreensão dos sentimentos da criança. O autor emprestava seu ego auxiliar diante do ego imaturo e fragilizado do menino. Mesmo em silêncio, ensimesmado na sua produção, o paciente comunicava algo que não podia ser trazido à tona pela fala, não havia palavras ainda para as angústias inomináveis. A dor mental dessa criança era a de não saber sobre si mesmo, sobre sua origem, com sentimentos de inadequação e desamparo. Segundo relato da mãe, ele lhe perguntava insistentemente se havia nascido de sua barriga, ao que ela respondia que era do coração, embora não lhe revelasse a verdade sobre sua origem. A busca do menino era por uma verdade que não era dita, mas que estava presente.

Do lado do autor, percebeu-se uma ansiedade para interagir com o menino, que emergia sob a forma de perguntas direcionadas à criança. Contudo, passou-se a observar que ele exteriorizava seus conflitos de forma não-verbal, o que permitiu notar o seu modo peculiar de comunicação através da identificação projetiva. A observação dos aspectos transferenciais e contratransferenciais nesse processo, ainda que não fosse um tratamento psicanalítico padrão, e sim uma modalidade de avaliação-intervenção, revelou-se fundamental. No período inicial dos encontros, na observação lúdica, o autor buscou focalizar as queixas dos pais em relação à criança tentando entender como ele se mostrava com relação àquele relato. No decorrer do processo, foi possível atentar que o paciente começou a se sentir mais confiante naquele ambiente desconhecido com pessoas diferentes, o que colaborou para uma relação de maior confiança, em contraste com os movimentos iniciais de medo persecutório. O vínculo positivo estabelecido com o autor permitiu maior espontaneidade a Augusto durante os encontros. Enquanto nas primeiras sessões ele brincava quieto, sozinho, sem mexer nos materiais gráficos e brinquedos disponibilizados, posteriormente, começou a experimentar os limites do encontro.

Em casa ou na escola, sempre que fazia algo considerado errado que causasse a repreensão de algum adulto, Augusto sofria uma correção, um castigo por parte do pai, ou alguma privação. Tomando em consideração a história de privações vividas muito precocemente pelo menino, inferiu-se que as situações atuais repetiam experiências primitivas de desamparo, provocando desconfiança de Augusto no vínculo com as figuras parentais. A sucessão de falhas ambientais, provocadas quando as necessidades básicas não foram atendidas, a experiência catastrófica de abandono antes que o bebê pudesse diferenciar eu do não-eu, pareciam gerar a reação agressiva e o conflito em relação às ordens dos cuidadores pela marca da repetição. Acredita-se que o holding oferecido nos poucos encontros, na tentativa de romper com o ciclo de falhas, buscando adaptar-se aos movimentos espontâneos do paciente, ajudaram-no a sentir-se mais livre para começar a expressar-se, na busca de uma continuidade do ser. O paciente começou a mostrar sua insatisfação, buscava confrontar o autor indiretamente, espalhando grandes quantidades de tinta, tentando pintar o rosto e os braços deste. Quando Augusto se lavava, utilizava grande quantidade de papeis para se enxugar, enrolando-se como se pudesse fazer o seu casulo. Com frequência jogava tinta no chão, realizava uma sobreposição de cores diferentes de tintas na folha, usando as mãos ou o chão, o que refletia uma desorganização interna que era expressa do modo mais primitivo. Cortava as folhas sulfites que lhe eram oferecidas com agressividade, enquanto o fazia mantinha os olhos no autor, esperando uma reação de punição, o que corroboraria suas experiências anteriores nos vínculos com a mãe biológica e com os pais adotivos que se encontravam também angustiados e perdidos. Augusto brincava e se sujava, mostrava um transbordamento que começou a ser acolhido e contido através da manutenção do setting, quando ele percebia que sua expansão não destruía a relação com o autor que se mantinha firme e receptivo. No término dos encontros, ele reagia com atitudes e comportamentos de agressividade mediante a interrupção do contato.

Tornou-se imprescindível o manejo da relação transferência-contratransferência para que os encontros pudessem favorecer a continuidade das comunicações vindas do paciente. Através das discussões na supervisão, percebeu-se projeções das angústias e sentimentos do paciente na relação com o autor. Havia um estado de alerta despertado na relação com o menino como que anunciando um movimento explosivo que viria. Porém, o que se seguia nem sempre era nesse sentido. Havia o obscuro, o medo, mas também uma fonte criativa que podia nascer.

O vínculo de confiança ocorreu tanto na relação da criança com o autor, o que favoreceu a entrada no ano seguinte em um processo de ludoterapia de longo prazo, quanto na relação da família com a instituição, sendo esta acompanhada em um atendimento familiar. Como citou Winnicott, a respeito das consultas terapêuticas, que poderíamos utilizar de referência para o psicodiagnóstico interventivo, pode ser um prelúdio para uma psicoterapia mais demorada ou mais intensa, mas pode facilmente acontecer que um paciente esteja preparado para um tratamento mais longo e profundo, "[...] após experimentar o entendimento concernente a essa espécie de entrevista" (grifo do autor) (p. 13)19. Entende-se que o enquadre favoreceu a busca da aproximação de uma autenticidade, o que colaborou para que os encontros tivessem um efeito terapêutico, o que foi transmitido pelos pais em uma das devolutivas, com atenuação de situações conflitivas também na escola.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

A psicanálise utiliza como ferramenta principal para o acesso ao inconsciente, a comunicação e a escuta ativa. Klein e Winnicott direcionaram sua atenção no trabalho com o paciente para aspectos da comunicação de conteúdos primitivos, que não podem ser lembrados, nem verbalizados, pois referem-se a angústias terroríficas e inomináveis. No encontro com o paciente, tais angústias expressaram-se através da contratransferência que pode ser compreendida na medida da disponibilidade daquele que ocupa a função de cuidar. Nesse caso, do autor que estava construindo sua função de psicoterapeuta. Essa fonte teórica permitiu identificar alguns dos processos mentais que aconteceram ao longo dos atendimentos.

A oportunidade de acompanhar o paciente, especialmente no atendimento infantil, seja em modalidades de intervenção terapêutica diversas, seja no atendimento clínico tradicional, propicia o desenvolvimento do raciocínio clínico. Com base na experiência e nas discussões em supervisão, o aluno em formação pode perceber a importância da postura profissional e como ela reflete no vínculo com o paciente. O rolo de papeis do banheiro serviu para uma montagem semelhante àquelas montagens ocorridas no setting, feitas com tintas e colas. Enrolando o próprio corpo, tal como o fio da seda, buscava um holding para uma mente nascente, a partir do encontro com outra mente. A experiência do atendimento e as discussões na supervisão mostraram a importância do vínculo com o paciente, o que favoreceu a identificação da dor e a abertura com vistas à expansão do espaço mental a partir da dupla. O trabalho pessoal do autor, no sentido das leituras, do acompanhamento da supervisão e da sua psicoterapia foram ferramentas que auxiliaram todo o percurso.


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aUniversidade Paulista - Unip, Instituto de Ciências Humanas - ICH - Ribeirão Preto/SP - Brasil
bUniversidade Paulista - Unip, Programa de Mestrado Profissional em Práticas Institucionais em Saúde Mental - Ribeirão Preto/SP - Brasil
cSociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto - SBPRP, Membro Filiado - Ribeirão Preto/SP - Brasil
dInstituto de Estudos Psicanalíticos de Ribeirão Preto - IEP, Curso de Especialização em Teorias e Técnicas Psicanalíticas - Ribeirão Preto/SP - Brasil

Autor correspondente

Bruno Gomes Valente
valentebg@outlook.com / E-mail alternativo: mangelafavaro@hotmail.com

Submetido em: 23/12/2021
Aceito em: 16/05/2022

Contribuições: Maria Angela Favaro Nunes - Redação - Revisão e Edição, Supervisão; Bruno Gomes Valente - Coleta de Dados, Redação - Preparação do original.

 

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