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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2022; 24(2):87-101



Artigos de Revisao

Relações de apego e Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade infantil

Attachment relationships and child Attention Deficit Hyperactivity Disorder

Relaciones de apego y Trastorno por Déficit de Atención con Hiperactividad infantil

Lao Tse Maria Bertoldo, Carolina Schuch, Fernanda Barcellos Serralta

Resumo

A insuficiência de condições seguras de apego pode estar associada a dificuldades no desenvolvimento infantil e vulnerabilidade para o surgimento de condições clínicas diversas, como o Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH). Foi realizada uma revisão narrativa da literatura buscando contribuições da Teoria do Apego para a compreensão de fatores ambientais associados ao TDAH infantil. A revisão incluiu artigos teóricos e empíricos dos Portais do Index Psi, PubMed, Capes e Google acadêmico publicados nos idiomas português, inglês e espanhol entre 2002 a 2021. Os estudos apontaram que: crianças com TDAH apresentam em geral as mesmas dificuldades no desenvolvimento das que possuem apego primário inseguro; o apego de crianças com TDAH difere das crianças típicas, sendo predominantemente inseguro; estudos com pais dessas crianças têm encontrado dificuldades na função reflexiva destes. Conclui-se que o laço estabelecido entre criança e cuidador principal pode ser considerado um fator de proteção ou risco para o desenvolvimento infantil. A Teoria do Apego pode oferecer suporte para pensar diferentes fatores ambientais associados ao TDAH.

Descritores: Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade; Apego a objetos; Mentalização

Abstract

The insufficiency of secure attachment conditions may be associated with difficulties in child development and vulnerability to the onset of various clinical conditions, such as Attention Deficit Hyperactivity Disorder (ADHD). A narrative literature review was carried out seeking contributions from Attachment Theory to the understanding of environmental factors associated with childhood ADHD. Revision included theoretical and empirical articles from Index Psi, PubMed, Capes and Scholar Google published in Portuguese, English and Spanish between 2002 and 2021. The studies showed that: children with ADHD generally have the same difficulties in development of those with primary insecure attachment; the attachment of children with ADHD differs from typical children, being predominantly insecure; studies with parents of these children have found difficulties in their reflective function. It is concluded that the bond established between the child and the main caregiver can be considered a protective or risk factor for child development. Attachment Theory can support thinking about different environmental factors associated with ADHD.

Keywords: Attention Deficit Hyperactivity Disorder; Object attachment; Mentalization

Resumen

La insuficiencia de las condiciones de apego seguro puede se asociar con dificultades en el desarrollo infantil y vulnerabilidad a la aparición de diversas condiciones clínicas, como el trastorno por déficit de atención con hiperactividad (TDAH). Se llevó a cabo una revisión de la literatura narrativa buscando contribuciones de la Teoría del Apego a la comprensión de los factores ambientales asociados con el TDAH infantil. La revisión incluyó artículos teóricos y empíricos de los portales Index Psi, PubMed, Capes y Academic Google publicados en portugués, inglés y español entre 2002 y 2021. Los estudios mostraron que: los niños con TDAH generalmente tienen las mismas dificultades de desarrollo que aquellos con inseguridad apego primario; el apego de los niños con TDAH difiere del de los niños típicos, ya que es predominantemente inseguro; Los estudios con padres de estos niños han encontrado dificultades en su función reflexiva. Se concluye que el vínculo que se establece entre el niño y el cuidador principal puede considerarse un factor protector o de riesgo para el desarrollo infantil. La Teoría del Apego puede apoyar el pensamiento sobre diferentes factores ambientales asociados con el TDAH.

Descriptores: Trastorno por Déficit de Atención con Hiperactividad; Apego a objectos; Mentalización

 

 

INTRODUÇÃO

O Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade - TDAH - é um diagnóstico frequente em crianças na idade escolar cujas causas precisas ainda estão em debate. Há consenso científico de que o transtorno possua origem multifatorial, sendo derivado de interações genéticas e ambientais¹. No entanto, é frequente também a redução do diagnóstico à origem puramente biológica, tendo como um dos impactos a medicação excessiva de crianças com o diagnóstico. Outro aspecto preocupante é a não exploração adequada de outros fatores associados, o que limita a assertividade do tratamento. A visão biologicista é uma característica das últimas décadas do século XX². Embora essa perspectiva ainda predomine na literatura, atualmente diversos estudos, majoritariamente internacionais, constatam a contribuição de fatores não biológicos na eclosão e agravamento desse transtorno. Destacam-se, nesse sentido, os que verificam o impacto das relações precoces vividas na infância como associáveis ao TDAH, tais como os estudos desenvolvidos pela Teoria do Apego.

Em meio a diferentes teorias sobre efeitos de relações precoces no desenvolvimento humano, a Teoria do Apego oferece uma perspectiva baseada em evidências empíricas sobre como as primeiras experiências com os cuidadores serão referência para o desenvolvimento da personalidade e em relacionamentos futuros. Esta teoria preconiza que o comportamento de apego infantil é um mecanismo biológico e psicológico na qual a criança busca alcançar e manter proximidade com algum indivíduo para sentir mais segurança em lidar com o mundo. Dessa forma, com o tempo, espera-se que um vínculo se estabeleça entre criança e cuidador garantindo o estabelecimento de capacidades físicas e emocionais3. Segundo essa perspectiva teórica, as experiências precoces, com o cuidador primário, podem impactar em maior ou menor grau a saúde psicológica e, em alguns casos, quando na ausência de boas condições subjetivas iniciais, favorecer os transtornos psicológicos4,5,6. A ideia central da Teoria do Apego enfatiza, portanto, que o desenvolvimento de um apego seguro com os cuidadores primários tem função protetiva na saúde mental.

Vale destacar que crianças com apego seguro apresentam maior autoestima, independência, melhor regulação emocional e resiliência. Autores dessa escola oferecem significativas contribuições sobre a importância das vivências emocionais na infância, especialmente com as figuras de apego com base nos diversos aspectos da constituição da criança. Assim, se predominantemente inadequadas ou traumáticas, essas vivências podem acarretar dificuldades no desenvolvimento posterior de várias funções mentais da criança, ou até mesmo ocasionar diferentes sintomas ou transtornos5,6,7,8.

A Teoria do Apego e contribuições para a compreensão do desenvolvimento infantil

Segundo Main8, a Teoria do Apego passou e ainda passa por grandes ampliações desde as primeiras contribuições de John Bowlby3,4, seu propositor. Psiquiatra e psicanalista das relações objetais, Bowlby potencializou condições de desenvolvimento da pesquisa empírica em Psicanálise a partir da sua teorização sobre a importância do apego no funcionamento psíquico. O apego, para o autor, difere dos demais comportamentos, uma vez que representa uma relação na qual a criança, em sua insuficiência de recursos, necessita de cuidados físicos, mentais e afetivos, de um cuidador para sua sobrevivência. Vivências desse processo influenciariam de forma significativa o desenvolvimento da personalidade como um todo e os padrões de relacionamentos futuros, ou seja, o estilo de apego nos relacionamentos4.

É importante salientar que Bowlby4 investigou a dinâmica da formação e rompimento de vínculos afetivos e, a partir de sua prática, observou os importantes efeitos da relação mãe-filho no funcionamento mental da criança. Bowlby, que já havia traçado um percurso no campo das investigações psicanalíticas, desenvolveu de modo original aspectos teóricos mais focados em sua observação de experiências entre crianças e suas mães, analisando os aspectos saudáveis e patológicos dessas interações8. Assim como Freud, Bowlby deu especial importância às primeiras experiências e relações da criança, mas substituiu alguns conceitos como o de energia psíquica, por vínculo, organização e controle, para estudar esse fenômeno de forma mais empírica e acessível à pesquisa9.

Para Bowlby4, os seres humanos, por questões de sobrevivência sua e da espécie, necessitam tanto de segurança quanto de regular a angústia ao longo da vida. Por isso, teriam uma predisposição inata a estabelecer laços emocionais e, assim, terem necessidades atendidas buscando proximidade com um cuidador. Comportamentos como chorar, balbuciar, sorrir, teriam como finalidade aproximar-se de alguém para estabelecer certa segurança a fim de explorar o mundo. O apego seria, desse modo, um padrão de vinculação afetiva da pessoa.

Conforme Main8 (2000), em um segundo momento, a teoria inicial de Bowlby, é refinada pelas contribuições de pesquisas desenvolvidas por Mary Ainswhorth10, por meio de observações naturalísticas da interação de mãe e bebês. O procedimento conhecido como "Situação Estranha" foi o método que permitiu verificar empiricamente as teorizações de Bowlby. Nesse método, a criança era separada brevemente de seus pais e posteriormente os reencontrava. Os sinais que emergiam dessa interação permitiram a classificação em três formas de apego iniciais: seguro, evitativo e ambivalente. Crianças com apego seguro tinham mães mais sensíveis aos sinais enviados pelos seus filhos. Já as formas de apego evitativo e ambivalente estavam relacionadas ao rechaço materno e respostas imprevisíveis das mães. Esses comportamentos foram verificados em crianças com dois a três anos que haviam sofrido separações precoces, mas também em crianças de 12 meses sem separações precoces, que viviam um estresse cumulativo frente à insuficiência ou à limitação na resposta materna.

A terceira fase da teoria, desenvolvida a partir dos anos 80, caracterizou-se pelo estudo dos níveis de representação envolvidos nas relações de apego. Estudos estabeleceram que o rechaço materno levaria a criança à evitação da mãe mediante situações estressantes, e a ausência prolongada da mãe, a partir dos dois anos iniciais, causaria aspectos de evitação e ansiedade imaginados pela criança. Essas descobertas permitiram verificar que diferentes padrões de interação mãe-bebê podem levar a diferentes processos de representação8. Os estudos revelaram que pais de crianças seguras apresentavam algumas características como colaboração, clareza e coerência na forma como contavam aspectos de sua própria história8,9,10. E ainda, que os comportamentos relacionados ao apego, como no caso do apego seguro, não surgiriam plenamente organizados, mas dependeriam da experiência de vida para adquirir maior consistência, o que poderia ocorrer até meados da adolescência8,9.

A partir da ênfase representacional do apego, foram desenvolvidos conceitos como função reflexiva e mentalização, conceitos esses relacionados ao desenvolvimento do Self e à regulação de afeto. A função reflexiva é o recurso subjacente que viabiliza a capacidade de mentalização, que por sua vez é a capacidade de compreender e interpretar o comportamento próprio e de outros, considerando os estados mentais subjacentes. O desenvolvimento dessa capacidade seria facilitado pelo fato da criança, quando pequena, ter sentido estar na mente de outro (cuidador) num contexto de apego seguro11,12,13.

É interessante ressaltar que a função reflexiva precisa ser inicialmente provida por um dos pais, para ajudar a criança na construção de seus próprios recursos mentais6. Quando os cuidadores, por situações diversas, apresentam dificuldades recorrentes em refletir os estados mentais da criança e reapresentá-los de maneira assertiva, ocorre falha nos processos simbólicos desta. Tais lacunas nos processos de representação podem gerar suscetibilidades a diversas psicopatologias14. Destaca-se entre elas o TDAH, transtorno que tem sido investigado quanto às dificuldades na função reflexiva e mentalização na relação primordial da criança com as figuras de apego8,15-19.

Considerações sobre o TDAH

É de conhecimento geral que o TDAH é caracterizado a partir das diretrizes do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais DSM-51 como um padrão persistente de desatenção e/ou hiperatividade impulsividade, que causa prejuízos ao funcionamento ou ao desenvolvimento típico. As especificidades do transtorno estão relacionadas, essencialmente, a prejuízos na atenção, concentração, inibição do impulso e inquietude. Esses sintomas devem ocorrer de modo persistente. O DSM-5 lista nove sintomas de desatenção e nove de hiperatividade, que podem aparecer combinados na apresentação mista. Os sintomas devem estar presentes antes dos 12 anos de idade e, necessariamente, em dois ou mais ambientes. O caráter de transtorno se dá a partir dos prejuízos que acarreta. Esse termo é utilizando pelo DSM-5 em vez de doença ou enfermidade, por abranger a complexa interação de fatores sociais, psicológicos, biológicos e culturais envolvidos na determinação do quadro.

As três formas de apresentação para o TDAH no DSM-51 são: predominantemente desatenta, predominantemente hiperativa-impulsiva e combinada. Os sintomas de desatenção estão mais relacionados a situações como cometer erros, descuidos escolares, não conseguir persistir em tarefas que envolvam um grande esforço mental continuado, dificuldade em terminar ações iniciadas e perder facilmente objetos. A criança pode ser considerada desorganizada ou desastrada, pois em função da inquietude ou desatenção, frequentemente tem dificuldade na execução das tarefas. Os sintomas de hiperatividade se manifestam pela tendência em estar sempre se movimentando, agitação externalizada através de atos como bater os pés, não parar sentado, ficar se remexendo todo o tempo ou seguidamente, correr, falar demais, ter dificuldades em esperar a sua vez para realizar atividades em grupo ou até para falar, ou em realizar atividades silenciosas. A apresentação combinada requer seis sintomas da apresentação desatenta e seis sintomas da hiperativaimpulsiva e, por ser combinatória, essa apresentação é associada a maiores prejuízos1.

É amplamente aceito na literatura que o TDAH não teria causa conhecida, e o consenso científico é de que o transtorno tem um carácter multifatorial1. Aspectos tanto neurobiológicos quanto genéticos gerariam suscetibilidades ao aliar-se com fatores ambientais, especialmente de ordem familiar e relacional20. Diferentes estudos têm mostrado que disfunções familiares podem servir como fator de risco para a eclosão e piora dos sintomas de TDAH17,21,22.

Ademais, estudos também têm apontado características semelhantes na parentalidade de crianças com TDAH23,24. Influências bidirecionais entre problemas observáveis de comportamento infantil e interações paifilho são relatadas na literatura sobre o tema25. Por exemplo, Harold et al.22 observaram que mães adotivas apresentaram hostilidade em relação aos filhos e, nesses casos, houve maior predisposição ao TDAH.

Algumas hipóteses, na linha de explicações psicossociais, têm demonstrado que desentendimentos familiares, presença de transtornos mentais nos pais e problemas familiares com estresse severo, são fatores comuns na determinação e manutenção do TDAH20,21,24,26,27. Adversidades enfrentadas pelas famílias, tais como discórdia marital severa, família muito numerosa, criminalidade dos pais, psicopatologia ou baixa capacidade de resposta materna, dificuldades financeiras e institucionalização ou outras situações de vulnerabilidade são relacionados à existência de TDAH28-33.

Diversos estudos internacionais investigam o tipo de apego predominante em crianças com TDAH, assim como a relação da criança com seus cuidadores, avaliando as características destes que podem influenciar na dinâmica do quadro apresentada pela criança15-19,34-37. É importante salientar que os vínculos e as relações precoces da criança estariam relacionados aos sintomas de agitação e distração característicos do transtorno. As hipóteses sugerem que falhas no processo da regulação do afeto, decorrentes de vínculos primitivos deficitários, repercutem em agitação e inibições do pensamento, além de dificuldades na capacidade de mentalização da criança; todas elas associadas a especificidades do estabelecimento de condições de apego15-19,34-37.

Não obstante, ao examinar a literatura nacional, chama atenção a escassez de estudos nessa linha de investigação. Uma busca realizada em novembro de 2019, no portal Index-Psi com os descritores TDAH e apego, não revelou nenhum estudo que apresentasse relação entre as duas variáveis, apesar de ter identificado 314 ocorrências para apego e 113, para TDAH, especificamente.

Com base nessas considerações, este artigo focaliza descrever as contribuições da Teoria do Apego para a compreensão dos fatores psicológicos associados ao TDAH infantil. Ainda que a etiologia do transtorno seja desconhecida, predomina no meio científico uma redução das determinações biológicas tendo como efeito a medicalização excessiva. Essa limitação não abre possibilidades para considerar outros aspectos que possam ser relevantes na determinação do quadro e, consequentemente, importantes em uma linha de tratamento efetiva na redução dos prejuízos acarretados pelo transtorno². Para isso, foi realizada uma revisão narrativa da literatura.


MÉTODO

Trata-se de uma revisão narrativa de literatura. Os artigos de revisão narrativa permitem publicações amplas, que visam discutir o desenvolvimento de um determinado assunto, de forma teórica ou contextual. Não carecem necessariamente, informar as fontes de informação utilizadas, metodologia para busca das referências, nem os critérios utilizados na avaliação e seleção dos trabalhos. Fundamentam-se n na análise da literatura publicada em livros, artigos, teses ou outras publicações38.Para a presente revisão foram consultadas bases de dados e portais nacionais e internacionais, incluindo o Index Psi, PubMed, Capes e Google Acadêmico. Os descritores TDAH e apego (ADHD and attachment, em Inglês) nortearam a busca. Na seção resultados são apresentados os resultados, com foco nos estudos empíricos vinculando as duas variáveis de modo direto ou indiretamente.


RESULTADOS

Na busca simples realizada utilizando os descritores mencionados foram encontrados somente dez artigos. Os nove artigos internacionais são empíricos, explorando essencialmente o estilo de apego da criança com TDAH. Apenas um artigo nacional sobre apego e TDAH foi encontrado na busca. Trata-se de uma revisão integrativa da literatura explorando 16 artigos sobre apego e doenças crônicas, entre elas o TDAH.

TDAH e padrões de apego

Scholtens et al.37 examinaram um grupo de 89 crianças de 6 a 10 anos com altos níveis de sintomas de TDAH. Investigaram a relação dos sintomas do transtorno com as representações de apego, avaliadas por meio de um instrumento baseado em histórias contadas às crianças. A pesquisa demonstrou que crianças com apego inseguro (desorganizado) apresentaram níveis significativamente mais elevados de sintomas de TDAH comparados àqueles da categoria segura. Tanto os sintomas do TDAH quanto o apego desorganizado estavam relacionados à incoerência e ao conteúdo negativo das histórias.

Thorell e colaboradores39 também verificaram associação entre sintomas de TDAH e apego desorganizado em uma amostra de 100 crianças de oito anos e meio. Os sintomas foram avaliados novamente um ano após a classificação de apego e a associação com sintomas de TDAH persistiu independentemente de problemas de comportamento externalizantes. Além disso, foram verificados nessa amostra, que sintomas de TDAH tinham mais associação com insegurança de apego (apego desorganizado) que com eventuais déficits cognitivos e funcionamento executivo.

Em outra pesquisa, também buscando entender estilo de apego da criança com TDAH, realizada por Clarke et al.40, 19 meninos com TDAH e idades entre cinco e 10 anos foram comparados com outras 19 crianças de um grupo controle, sem TDAH. Foram avaliados os modelos internos de apego e self no que tange à ansiedade de separação, através de uma entrevista e desenho da família. Os resultados sugeriram que o TDAH está associado ao apego inseguro: o grupo de crianças com TDAH obteve escores mais pobres em todas as medidas utilizadas e apresentou resultados consistentes para o estilo ambivalente e desorganizado de apego quando comparado ao grupo controle. Os autores também observaram que a qualidade de apego com os cuidadores primários deve ser avaliada quando as crianças apresentam sintomas de TDAH e o tratamento deve também incorporar componentes de fortalecimento desta relação.

Já Roskam et al.17 realizaram uma pesquisa longitudinal com 641 adolescentes adotados de diferentes países, relacionando à privação de apego precoce com o TDAH. Após o controle de variáveis de adoção, relacionaram o tempo de privação inicial de apego ao aumento significativo nos sintomas de TDAH. Outrossim, o aumento no nível dos sintomas de TDAH fora previsto pela duração da exposição e privação de apego, estimada a partir da idade de adoção. Quanto mais precoce a adoção, menos sintomas de agitação, inibição, distração relacionados ao TDAH. Essa relação foi observada especificamente com sintomas de TDAH em comparação com outros fatores externalizantes e internalizantes avaliados em escalas de comportamento.

A avaliação da associação entre TDAH e apego inseguro entre adolescentes também foi o tema da pesquisa de Scharf et al.19 que avaliaram uma amostra de 508 adolescentes, cursando o ensino médio, com questionários de autorrelato referentes ao estilo de apego, sintomas de TDAH (hiperativo e desorganizado) e sensibilidade à rejeição. Como resultado, foi evidenciado que estilos de apego inseguro podem servir como precursores do desenvolvimento para a sintomatologia de TDAH, sensibilidade à rejeição e ajuste social. Verificou-se que adolescentes que apresentavam apego seguro tinham maior habilidade de adaptação às situações, e os que apresentaram apego inseguro possuíam sintomas de TDAH, prejuízos relacionados ao quadro, além de altos níveis de irritação e ansiedade. Os autores sugerem que a medição de estilos de apego pode ajudar a perceber fatores latentes para o TDAH em escolares, como outros problemas de adaptação.

Cuidadores primários, função reflexiva e apego em crianças com TDAH

Outras investigações estão focadas em identificar a relação dos cuidadores primários de crianças com TDAH com suas próprias representações de apego e em como ocorre a função reflexiva, especialmente na figura materna15,17-19,34-37. Resultados apontam que tanto as mães como seus filhos com TDAH têm níveis mais elevados de estilo de apego inseguro que os encontrados em populações não clínicas36,40.

Rothstein18 investigou a capacidade da função reflexiva em 18 mães de meninos de sete a nove anos com TDAH e problemas associados de aprendizagem. As mães de crianças com TDAH apresentaram escores significativamente menores de função reflexiva que mães das populações não clínicas. Essas mães apresentaram pontuações mais baixas na função reflexiva ao relatar aspectos do manejo de dificuldades que seus filhos apresentam, bem como o efeito disso no relacionamento com seu filho com TDAH.

Em outro estudo comparativo, Santurde del Arco e Del Barrio del Campo41 examinaram o apego de 70 pais de crianças entre seis e 17 anos com diagnóstico de TDAH e 123 pais de crianças sem TDAH. Os pais que tinham filhos com o transtorno possuíam índices mais elevados de apego inseguro e foram menos acessíveis às interações com seus filhos. Os pais do grupo controle, sem TDAH, apresentaram maiores habilidades para promover uma base de apego seguro para os filhos. Tais resultados já haviam sido encontrados também em outros estudos sobre o tema40, 42.

Outro estudo realizado nesta linha, conduzido por García Quiroga e Ibáñez Fanes36, comparou 17 crianças com TDAH e suas mães a um grupo controle, analisando tanto o estilo de apego de crianças como o das mães. Verificou-se que o TDAH é um transtorno no qual a relação está afetada, pois tanto crianças quanto suas mães apresentaram níveis mais altos de estilo de apego inseguro que o encontrado na população normal. No grupo clínico, as representações de apego inseguro foram padrão ambivalente e desorganizado nas crianças e padrão ansioso nas mães. Dentre as mães do grupo clínico, um subgrupo se destaca pelo padrão de apego inseguroevitativo, distanciando-se emocionalmente de seus filhos, o que poderia dificultar ainda mais a relação.

Ainda, nessa mesma pesquisa, mães de crianças com apego seguro apresentavam características de verbalizar mais suas experiências de forma contínua e não evitativa, o que parecia ter efeito positivo no vínculo com a criança, uma vez que ajudava a criança a elaborar e verbalizar suas próprias experiências. Além disso, essas mães se expressavam de forma a estabelecer conexão real entre a experiência e sua verbalização, permitindo contato afetivo real com seus filhos. A capacidade de pensar sobre as próprias experiências e estar ciente da própria subjetividade e da dos outros, também foi observada como tendência maior em mães cujos filhos mostraram apego seguro. Tendo em vista esses achados, as autoras sugerem considerar as representações de relacionamento da criança no diagnóstico, a fim de elaborar um plano de tratamento que fortaleça o que está fragilizado no vínculo, antes que outros encaminhamentos sejam feitos e, futuramente, possam encontrar obstáculos no relacionamento36.

Já Dallos e Smart35 realizaram entrevistas com familiares de um adolescente com TDAH e Transtorno de Conduta. Eles utilizaram instrumentos padronizados de avaliação de apego e observaram conflito desses pais em relação às suas próprias figuras de apego, bem como a não disponibilidade afetiva da mãe em momentos precoces do desenvolvimento com seu filho. Os autores sugerem mais estudos focados em questões transgeracionais envolvidas nas vivências de apego de pacientes com TDAH.

No artigo nacional de revisão integrativa da literatura sobre o tema, foram analisados 16 artigos sobre estilo de apego de criança com doenças crônicas. Nestes analisados, destacou-se a ênfase na qualidade do vínculo mãe e criança como premissa para um apego seguro, condição associada a melhores chances de desenvolvimento saudável da criança. Nas doenças crônicas analisadas (TDAH, obesidade, autismo e enxaqueca) conceitos como disponibilidade emocional e perspicácia materna em relação à criança, estavam deficitários, repercutindo em algum nível de dificuldade no desenvolvimento43.


DISCUSSÃO

A revisão evidencia que a Teoria do Apego tem sido utilizada como aparato teórico e técnico para delinear diferentes estudos que buscam compreender as relações complexas entre apego e TDAH. Os estudos selecionados são bastante variados, heterogêneos em objetivos, método e público-alvo. Tais investigações indicam: associação entre privação precoce de apego seguro e maior gravidade de sintomas de TDAH17; estilo de apego inseguro como predominante em crianças com TDAH em relação a crianças de amostras não clínicas39,40; repercussões negativas da relação de apego inseguro em crianças com TDAH, tais como prejuízos em aspectos de aprendizagem, afetividade e nas habilidades sociais19,37; associações entre TDAH infantil e características de apego dos cuidadores36,40,41. De modo geral, esses resultados indicam a relevância de se considerar as relações de apego no contexto de compreensão do desenvolvimento do TDAH. Isso sugere o quanto pode ser nociva essa associação, ainda frequentemente negligenciada por clínicos e pesquisadores.

Kissgen e Franke44 ressaltam que problemas de autorregulação, controle do impulso, inibição e acomodação são dificuldades centrais do TDAH, frequentemente nomeado como um transtorno de autorregulação. A partir dos achados da Teoria do Apego, pessoas com apego inseguro têm muitos prejuízos na regulação emocional e dos comportamentos. Já o apego seguro, também, está relacionado à maior competência justamente nas áreas em que crianças com TDAH possuem bastante dificuldades.

Por conseguinte, os estudos analisados nesta revisão avaliaram constructos importantes da Teoria do Apego em relação ao fenômeno do TDAH infantil. Isso envolve desde estilo predominante de apego dos pais e da criança com TDAH, funcionamento da função reflexiva e outras características que possam ser determinantes na relação entre cuidador e criança com TDAH, a partir da Teoria do Apego18,35,36,41. Esses resultados são condizentes com outros achados já presentes na literatura, como os de Ilardi15, que sugerem relação positiva e significativa entre função reflexiva da mãe e funcionamento social das crianças com TDAH.

A Teoria do Apego é construída com base na premissa de que a relação mãe-filho determina importantes aspectos do desenvolvimento e constitui um modelo para relacionamentos futuros significativos. Sendo o TDAH um transtorno relacionado ao desenvolvimento infantil, os primeiros vínculos podem ter repercutido em sintomas ligados ao transtorno, ou na própria forma de condução do quadro. Segundo Wallin45, o bebê teria capacidade para, desde muito cedo, decodificar o estado cognitivo emocional na interação com seus cuidadores e reagir emocionalmente a partir dessas percepções. A partir disso, o bebê poderá sentir e internalizar vivências que serão fundamentais na construção do estilo de apego, seguro ou inseguro.

Main8 ressalva que apesar de o apego ser perceptível através da conduta da mãe, a conduta em si mesmo não prediz o apego. Então, mesmo que seja através dos hábitos cotidianos, a forma de estabelecer vínculos com a criança não é a existência da rotina estabelecida através da conduta que garantirá o desejo, as expetativas e intenções que digam de um apego. É algo que deve ser mais profundo, mas que requer a conduta para se expressar de algum modo. Para Wallin45, é a expectativa acerca da disponibilidade das figuras de apego que mobilizaria a criança a vincular-se a partir de três atitudes fundamentais: a busca, sequência e manutenção da proximidade com os cuidadores; uso da figura de apego seguro para a exploração e busca da figura de apego segura como refúgio nas situações de perigo.

Além da falta de disponibilidade psíquica do cuidador, pode haver concomitantemente, prejuízo no funcionamento reflexivo deste. O prejuízo no funcionamento reflexivo dos pais, repercute em dificuldade de refletir sobre as intenções e experiências singularmente subjetivas da criança durante momentos de estresse e conflito. O manejo assertivo destas pelo cuidador é fundamental para a criança desenvolver adequada modulação do afeto. Além disso, o funcionamento reflexivo parental permite que os cuidadores contenham o sofrimento da criança, dando origem a processos regulatórios mútuos que aumentam gradualmente a capacidade da criança de se autorregular6,12. Dessa maneira, a avaliação dos estados mentais dos cuidadores das crianças com TDAH pode ser fundamental na detecção e manejo do quadro.

Logo, tendo em vista os resultados apresentados, levar em consideração a Teoria do Apego para compreender as determinações psicológicas e ambientais do TDAH pode abrir um importante via de compreensão, prevenção e tratamento no combate aos prejuízos causados pelo transtorno. Para Santurde del Arco e Del Barrio del Campo41, intervenções que tenham em vista a promoção do apego seguro, em casos de TDAH, poderiam auxiliar o desenvolvimento de habilidades prejudicadas pelo transtorno e evitar piora na sintomatologia, pois o apego seguro favoreceria um melhor desenvolvimento cognitivo e afetivo com resultados na regulação e expressão de afetos, além de aumentar a capacidade de simbolização e elaboração. Nessa proposta de intervenção para a promoção de apego, o foco no desenvolvimento da sensibilidade parental seria essencial para desenvolvimento de um apego seguro na criança. E ainda, o desenvolvimento da função reflexiva nas mães poderia ajudá-las a pensar seus sentimentos, comportamentos e a forma como reagem a eles na relação com os filhos, melhorando a interação da dupla46,47.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apesar da tradição biológica que prepondera na visão sobre a determinação do TDAH, vários estudos, especialmente internacionais, têm explorados fatores ambientais na determinação do transtorno, tais como: vivências precoces, estilos de apego e importância da relação com o cuidador primário. Os achados desses estudos favorecem a compreensão de que as vivências primárias de apego são cruciais para o desenvolvimento da criança e garantem condições de saúde ou adoecimento psicológico. Chama atenção, entretanto, a ausência de estudos nacionais sobre o tema. Apenas um artigo sobre estilo de apego em crianças com doenças crônicas foi encontrado no cenário Brasileiro. Isso indica a necessidade de maior divulgação, entre pesquisadores brasileiros, dos achados dos estudos existentes para que investigações nessa linha possam ser implementadas e, com isso, subsidiar intervenções psicológicas efetivas no tratamento dos diferentes fatores envolvidos no TDAH.

Foi realizada uma revisão narrativa. Esse tipo de revisão, em razão de utilizar estratégias de busca rigorosa e exaustiva, tem resultados que podem conter vieses. Não obstante, seu valor consiste em mostrar um campo de conhecimento e sintetizar achados relevantes sobre o tema examinado que podem servir como base para estudos empíricos e revisões sistemáticas. De modo geral, os resultados dos estudos revisados indicam que crianças com TDAH possuem mais apego inseguro que populações não clínicas; o maior tempo de privação de apego pode estar relacionado com maior gravidade de sintomas de TDAH; e que sintomas de TDAH podem estar mais associados, em alguns casos, com a insegurança de apego, do que com déficits cognitivos e funcionamento executivo. Além do mais, os resultados indicaram que os cuidadores de crianças com TDAH, especialmente a mãe, também apresentam frequentemente padrões de apego inseguro, assim como menor capacidade de mentalização, apresentado prejuízos na Função Reflexiva. Esse dado implica a necessidade de pensar em modelos terapêuticos que incluam a díade mãe-criança.

A qualidade de apego vivenciado com a mãe, portanto, permitirá ou não a criança o desenvolvimento de recursos reflexivos e de mentalização que garantirão um bom desenvolvimento da personalidade, assim como apresentarão impacto nos relacionamentos interpessoais futuros. Ao contrário, quando tais condições não ocorrem, podem surgir psicopatologias no desenvolvimento infantil. Somado a isso, problemas de mentalização, a partir de fragilizações nas condições de apego iniciais, implicam diferente prejuízos para vários grupos e subtipos de psicopatologia infantil que variam de acordo com as especificidades de cada transtorno. O TDAH é um transtorno que pode ser pensado por essa via, como foi observado na literatura apresentada.

Embora a pesquisa sobre a associação entre apego e TDAH ainda se apresente limitada, os estudos nessa área, frequentemente, estão em acordo sobre seus resultados e encontram uma forte conexão entre si. Entretanto, é de extrema importância o desenvolvimento de mais estudos que investiguem tanto a qualidade de apego estabelecido entre cuidadores e criança, quanto a função reflexiva destes cuidadores e possíveis consequências no desenvolvimento. Por conseguinte, uma vez que as pesquisas, sugerem que um apego seguro está associado a fatores que favorecem o desenvolvimento de habilidades fragilizadas pelo TDAH, intervenções com foco nos relacionamentos familiares e interpessoais, na mentalização e na autorregularão afetiva parecem ser oportunas e deveriam ser estudadas em relação às crianças com o transtorno e seus pais.


REFERÊNCIAS

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Unisinos, Programa de Pós Graduação em Psicologia - São Leopoldo/RS - Brasil

Autor correspondente

Fernanda Barcellos Serralta
fernandaserralta@gmail.com / E-mail alternativo: fserralta@unisinos.br

Submetido em: 06/11/2021
Aceito em: 12/09/2022

Contribuições: Lao Tse Maria Bertoldo - Coleta de Dados, Redação - Preparação do original, Redação - Revisão e Edição; Carolina Schuch - Redação - Revisão e Edição; Fernanda Barcellos Serralta - Gerenciamento do Projeto, Redação - Revisão e Edição, Supervisão.

 

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