Rev. bras. psicoter. 2022; 24(1):139-158
Almeida NO, Neufeld CB. Terapia Focada na Compaixão para pessoas com obesidade: um estudo de viabilidade. Rev. bras. psicoter. 2022;24(1):139-158
Artigo Original
Terapia Focada na Compaixão para pessoas com obesidade: um estudo de viabilidade
Compassion Focused Therapy for people with obesity: a feasibility study
Terapia Centrada en la Compasión para personas con obesidad: un estudio de viabilidad
Nazaré de Oliveira Almeida; Carmem Beatriz Neufeld
Resumo
Abstract
Resumen
INTRODUÇÃO
A obesidade é considerada pela OMS1 um dos maiores problemas de saúde pública do mundo, um estado de epidemia global. Nas últimas décadas, cerca de 200 milhões de homens, 300 milhões de mulheres e 40 milhões de crianças com menos de cinco anos, o que representa 10% da população, atingiram graus preocupantes de obesidade. Sua prevalência mundial mais que dobrou entre 1980 e 2014 e, para 2025, a obesidade está projetada em 700 milhões de adultos e 75 milhões de crianças. Um dos principais fatores de risco para obesidade e transtornos alimentares é a insatisfação corporal. Pessoas com obesidade apresentam níveis mais elevados de insatisfação corporal do que pessoas com peso eutrófico2,3. Comumente elas têm crenças disfuncionais sobre o próprio corpo, incluindo julgamentos distorcidos sobre seu tamanho e forma, bem como a frequente discrepância percebida entre o corpo ideal e o real4,5.
A Terapia Focada na Compaixão (TFC) é uma das abordagens psicoterapêuticas que propõe a regulação da relação do cliente com o seu corpo e com a sua alimentação. Desenvolvido por Paul Gilbert (2009)6,7 como uma abordagem de tratamento transdiagnóstico que visa construir a autocompaixão e reduzir o sentimento de vergonha, visa desenvolver um sistema de suporte interno que antecede o envolvimento com o conteúdo interno doloroso. Seu modelo considera o sentimento de vergonha e a autocrítica centrais para a manutenção de psicopatologias. Segundo o modelo evolutivo, em situações de ameaça social, abuso ou hostilidade, a autocrítica é uma estratégia adaptativa, e está associada ao sentimento de vergonha, derrota, rejeição e perseguição social, tendo sua origem na memória de eventos ameaçadores.
A abordagem da TFC à compaixão se inspira em práticas e filosofia budistas do alívio do sofrimento e também no evolucionismo, neurociências, psicologia social e neuropsicofisiologia de dar e receber cuidados7,12,32. Sentir-se cuidado, aceito e ter um sentido de pertencimento e afiliação com os outros é fundamental para a maturação fisiológica e bem-estar do ser humano7,12,32. Estes estão ligados a tipos particulares de afeto positivo que estão associados ao bem-estar e a um aumento da produção e liberação de neurohormônios como endorfina e ocitocina, os quais promovem sentimentos e sensações de calma, distintas daquelas emoções ativadoras da psicomotricidade associadas à realização, excitação e busca de recursos7,12,32. Estas sensações de foco em realizações podem sem distintas da sensação positiva de bem-estar, contentamento e segurança, inclusive por que estão menos associadas à prevenção e tratamento dos sintomas de depressão, ansiedade e estresse7.
No contexto dos transtornos alimentares, Goss e Gilbert (2002)8 propuseram que o sentimento de vergonha poderia estar subjacente aos sintomas de restrição alimentar, compulsão e purgação e que o transtorno também poderia ser visto como uma tentativa de autoproteção para regular tal sentimento. Apoiados no modelo psicopatológico da TFC, eles sugerem que, no curto prazo, os comportamentos típicos desses transtornos podem promover algum conforto, mas, a médio e longo prazo, intensificam o sofrimento, principalmente por perpetuarem a crença de que se é diferente, inadequado, sem controle, defeituoso ou nojento. De acordo com o modelo da TFC, o desenvolvimento da autocompaixão é a única forma desses pacientes romperem com esses ciclos não adaptativos e prevenir a recaída9.
O estresse e a ansiedade podem aumentar a sensação de fome e resultar na preferência por alimentos ricos em gordura e açúcar10, como estratégia de enfrentamento para distrair esses estados desagradáveis, como também ocorre na depressão, na qual há uma falta de motivação para se envolver em comportamentos saudáveis11. Em geral, estudos sobre a eficácia da TFC demonstraram que, após a intervenção, os pacientes apresentam redução significativa dos sintomas depressivos, ansiedade, vergonha, autocrítica e comportamentos submissos, bem como aumento da capacidade de autocontenção e compaixão por si mesmo12. A autocompaixão e essas condições psicológicas têm uma forte relação inversa13, sendo a primeira preditora da segunda, sendo também associada a menos ruminação, perfeccionismo e medo do fracasso14. Nesse sentido, a autocompaixão é promissora como forma de abordar alguns dos fatores de risco psicológicos relacionados à obesidade.
Outra abordagem importante para a alimentação transtornada é a Alimentação Intuitiva, a qual visa fazer com que a pessoa observe, perceba e atenda às necessidades de seu próprio corpo. A autocompaixão é um princípio transversal da Alimentação Intuitiva. A Alimentação Intuitiva é um programa estruturado de autocuidado para a alimentação que integra instinto, emoção e pensamento racional. Foi criada em 1995 por duas nutricionistas chamadas Evelyn Tribole e Elyse Resch15 como um modelo baseado em evidências, cuja premissa fundamental é que, se ouvido, o corpo intuitivamente "sabe" a quantidade e a qualidade do alimento a comer para manter a saúde nutricional e o peso adequado. Este conceito é conhecido como "sabedoria interna" ou "sabedoria do corpo". Justamente pela convergência com o objetivo da TFC, a Alimentação Intuitiva foi escolhida como psicoeducação alimentar para complementar o grupo de comparação com o grupo de intervenção.
O objetivo deste estudo foi analisar a viabilidade de uma intervenção de TFC para pessoas com obesidade, testando e refinando sua proposta, a fim de informar o modelo definitivo subsequente para o ensaio clínico randomizado. Os objetivos específicos são avaliar os efeitos da intervenção em sintomas de depressão, ansiedade e estresse, compulsão alimentar, bem como na autoestima, consciência alimentar e autocompaixão. Além disso, a perda de peso.
MÉTODO
Contexto da pesquisa
Este foi um estudo de viabilidade de a intervenção que aconteceu em julho e agosto de 2019, no Espaço Roberta Ferreira, localizado na Rua Jorge Sanwais, n.º 975, Centro, Foz do Iguaçu/PR.
Os participantes foram recrutados a partir de um cadastro de pessoas com diferentes graus de excesso de peso, por meio do qual esperavam ser atendidas em um programa de emagrecimento da empresa Rede Paranaense de Comunicação (RPC) na cidade de Foz do Iguaçu.
Participantes
Para a fase de intervenção, 13 participantes foram selecionados de forma aleatória pelo critério de cálculo estatístico de tamanho de amostra (n=(Nxn0)/(N+n0)). Após o aceite os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre Esclarecido e realizaram a primeira avaliação quantitativa.
Os critérios de inclusão foram: idade entre 18 e 50 anos, de ambos os sexos, ensino fundamental completo e com obesidade grau 1 (IMC entre 30.0 - 34.9 kg/m2) ou obesidade grau 2 (IMC entre 35.0 - 39.9 kg/m2), segundo a Organização Mundial de Saúde1, que apresentem alimentação emocional ou vergonha corporal. Os critérios de exclusão foram: transtornos psicóticos, autistas, ideação suicida grave, depressão, ansiedade ou outros transtornos mentais em estado agudo, avaliados pelo instrumento DASS-21 e pela Entrevista clínica baseada no DSM-515.
Intervenção
A intervenção foi baseada no protocolo da Terapia Focada na Compaixão descrito por Paul Gilbert, Nicola Petrochhi e James Kirby16 em 2019 (Anexo A). Este protocolo é uma intervenção de grupo de Terapia Focada em Compaixão para pessoas com excesso de peso, o qual foi traduzido e adaptado culturalmente, utilizando-se a metodologia de Reichenheim e Moraes (2007) 17, a qual se baseia nas equivalências: conceitual, de itens, semântica, operacional, de mensuração e funcional. O protocolo original compreende 12 sessões semanais de grupo de 2h de duração. Cada sessão era iniciada com uma prática de meditação de compaixão, a qual normalmente conta com uma respiração calmante, ativação do self compassivo pelas qualidades da compaixão (sabedoria, força e compromisso) e, na sequência, o reforço da melhor intenção para estar no grupo: estar aberto para aprender maneiras de se ajudar, apoiar os outros da melhor maneira possível em sua jornada e estar aberto à ajuda das outras pessoas. Depois da prática de abertura, os participantes eram convidados a compartilharem sua experiência durante a semana e também durante a prática de abertura. Depois dessa partilha, a pesquisadora e facilitadora introduzia a psicoeducação do tema da sessão, a qual era seguida de práticas de meditação ou exercício escrito que podia ser feito individualmente e às vezes em pares ou pequenos grupos. Ao final, a sessão era encerrada com nova prática de meditação. Após todas as práticas de meditação ou exercícios havia compartilhamento das vivências pessoais e debate entre os participantes e a facilitadora.
Além da intervenção de Terapia Focada na Compaixão, os participantes, assim que encerraram as 2h de sessão, passaram pela intervenção de Comer Intuitivo (Anexo B).
Todas as sessões foram realizadas por uma psicóloga (primeira autora) treinada no protocolo e houve supervisão pela orientadora de pesquisa, também psicóloga e doutora em psicologia, a qual acompanhou o processo de pesquisa e análise de dados.
Em cada sessão foram entregues folhetos para discutir conceitos e propiciar reflexões durante a atividade de casa. Além disso, foram indicadas práticas meditativas com o uso de áudios de meditações guiadas. Além disso, durante essas sessões, foram utilizadas metáforas e poesias para trabalhar alguns conceitos.
MEDIDAS DE DESFECHO
Medidas de desfecho primário
Para avaliar a viabilidade pela caracterização da população, recrutamento/consentimento e avaliar as taxas de retenção, determinar a adequação dos instrumentos, avaliar a aceitação da intervenção) os participantes responderam a um formulário de preenchimento anônimo, contemplando questões referentes a diferentes características da intervenção foi entregue aos participantes. As questões tratavam dos seguintes tópicos: local de realização do curso, duração do curso, duração das sessões, temas trabalhados na Terapia Focada na Compaixão, temas trabalhados na psicoeducação da Alimentação Intuitiva, adequação do conteúdo do manual, assimilação do conteúdo, assimilação das práticas, adequação da terapeuta e desvantagens potenciais. Além do formulário, um grupo focal foi realizado com todos os participantes na semana seguinte ao término da intervenção.
Medidas de desfecho secundário
Para avaliar sintomas de depressão, ansiedade e estresse, compulsão alimentar, bem como na autoestima, consciência alimentar e autocompaixão, bem como a perda de peso, foram utilizados os seguintes instrumentos
antes e depois da intervenção:
Escala de Depressão, Ansiedade e Estresse - DASS-21
A DASS-21 é um conjunto de três subescalas cada uma contendo 7 itens do tipo Likert, de 4 pontos, de autorresposta. Ela foi desenvolvida por Daza18. Foi adaptada para o contexto brasileiro por Vignola e colegas19, que verificaram uma boa consistência interna: os valores do alfa de Cronbach foram, respectivamente, de 0,90 para a depressão, 0,86 para a ansiedade, 0,88 para o estresse e 0,95 para o total das três sub-escalas.
Escala de Autoestima de Rosenberg - EAR
A EAR foi desenvolvida por Rosenberg20 e adaptada para o contexto brasileiro por Hutz e Zanon21, possui dez itens, sendo seis referentes a uma visão positiva de si mesmo e quatro referentes a uma visão autodepreciativa. Foi verificada uma boa consistência interna, com valores do alfa de Cronbach variando entre 0,68 e 0,86.
Escala de Compulsão Alimentar - ECAP
A ECAP foi desenvolvida por Gormally e colegas22 e avalia a existência de episódios de compulsão alimentar em obesos. A Escala foi traduzida e adaptada para o português por Freitas e colegas23 que encontraram a consistência interna moderadamente alta: alfa de Cronbach=0,85.
Questionário de Mindful Eating - MEQ
O questionário MEQ foi desenvolvido por Framson e colegas24 para avaliar o grau de alimentação consciente do respondente. Ele foi validado para o contexto brasileiro por Lucena-Santos e colegas25 que encontraram a consistência interna de alfa de Cronbach=0,85.
Escala de Autocompaixão - SELFCS
A escala SELFCS foi desenvolvida por Neff26, composta de 26 itens, sudividida seis fatores (seis subescalas) que avaliam autocrítica, calor/compreensão, sobreidentificação, condição humana, isolamento e mindfulness. Foi validada para o contexto brasileiro por Souza e Hutz27 que encontraram a consistência interna de alfa de Cronbach=0,87.
Questionário dos Três Fatores da Alimentação - TFEQ-R21
O TFEQ-R21 foi desenvolvido por Stunkard e Messick28 e traduzido porá o português por Natacci e Ferreira29, é uma escala de autorrelato que identifica os seguintes padrões de comportamento alimentar. O valor de coeficiente alfa de Cronbach da escala é de 0,85.
IMC
Foi realizada a caracterização da obesidade, ganho ou perda de peso por meio do Índice de Massa Corporal (IMC), obtido pela divisão do peso, medido em quilogramas, pela altura ao quadrado, medida em metros (kg/m2)1.
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