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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2022; 24(1):49-62



Artigo de Revisao

A contratransferência no processo supervisionado em Terapia Cognitivo-Comportamental

The countertransference in Cognitivebehavioral Therapy supervised process

La contratransferencia en el processo supervisado en Terapia Cognitivo-Conductual

Janaína Bianca Barletta; Isabela Pizzarro Rebessi; Carmem Beatriz Neufeld

Resumo

A contratransferência, mesmo que seja considerada fundamental, é pouco discutida na Terapia Cognitivo- Comportamental (TCC) e, com menor ênfase ainda, na supervisão clínica. Este texto tem por objetivo fomentar a reflexão sobre a contratransferência em supervisão na TCC e a importância de seu manejo pelo supervisor. Para tanto, duas vinhetas de situações hipotéticas de supervisão são apresentadas, sendo uma em grupo e outra individual, a fim de ressaltar como possíveis reações esquemáticas do supervisor frente ao terapeuta e/ou à situação supervisionada, se não observadas, podem impactar nos propósitos primordiais formativos, normativos e restauradores da supervisão. Como consequência, é possível que supervisões venham a se tornar danosas ou prejudiciais. Considera-se a importância do treinamento de supervisor com intuito de aumentar o manejo contratransferencial, incluindo o uso de estratégias da própria TCC, para identificação e reestruturação de pensamentos distorcidos, regulação emocional e aumento de estratégias salutares no processo de ensino e aprendizagem clínica.

Descritores: Contratransferência; Terapia Cognitivo-Comportamental; Ensino

Abstract

Countertransference, although considered fundamental, is little discussed in Cognitive-Behavioral Therapy (CBT) and, with even less emphasis, in clinical supervision. This text aims to encourage reflection on countertransference in supervision in TCC and the importance of its management by the supervisor. To this end, two vignettes of hypothetical supervision situations are presented, one in a group and the other individually, to highlight how possible schematic reactions of the supervisor towards the therapist and/or the supervised situation, if not observed, can impact the primary formative, normative and restorative purposes of supervision. As a result, it is possible that supervision will become adverse or harmful. It is considered the importance of supervisor training to increase countertransference management, including the use of CBT strategies to identify and restructure distorted thoughts, emotional regulation and increase healthy strategies in clinical teaching and learning process.

Keywords: Countertransference; Cognitive Behavioral Therapy; Teaching

Resumen

La contratransferencia, aunque se considera fundamental, es poco discutida en la Terapia Cognitivo-Conductual (TCC) y, con aún menos énfasis, en la supervisión clínica. Este texto tiene como objetivo fomentar la reflexión sobre la contratransferencia en la supervisión en TCC y la importancia de su gestión por parte del supervisor. Con este fin, se presentan dos viñetas de situaciones hipotéticas de supervisión, una en grupo y otra individualmente, con el fin de resaltar cómo las posibles reacciones esquemáticas del supervisor hacia el terapeuta y / o la situación supervisada, si no se observan, pueden impactar los propósitos formativos, normativos y restaurativos primarios de la supervisión. Como resultado, es posible que la supervisión se vuelva prejudicial. Se considera la importancia de la capacitación de supervisores para incrementar el manejo de la contratransferencia, incluyendo el uso de estrategias de TCC para identificar y reestructurar pensamientos distorsionados, regulación emocional e incrementar estrategias saludables en el proceso de enseñanza y aprendizaje clínico.

Descriptores: Contratransferencia; Terapia Cognitivo-Conductual; Enseñanza

 

 

A terapia cognitivo-comportamental (TCC) tem características específicas que definem sua forma de trabalho e dão vazão aos axiomas que a sustentam. A relação terapêutica, por exemplo, que é um dos elementos essenciais no processo de intervenção psicoterápica, reconhecida em todas as abordagens teóricas e considerada uma competência genérica, tem características específicas na TCC. Ou seja, é baseada no empirismo colaborativo, na troca de conhecimentos para construção conjunta de solução de problemas em terapia, imprimindo a participação ativa tanto do paciente quanto do terapeuta1. Na mesma direção, Kazantzis, Dattilio e Dobson2 apontam três elementos distintivos da TCC na relação terapêutica que divergem de outras abordagens: (a) a colaboração, que nesta concepção teórico-prática, provoca mudanças na implicação dos envolvidos, por exemplo, convidando os pacientes a serem ativos no processo psicoterápico, tornando-se agente de mudança. O terapeuta, por sua vez, faz uma função de guia, isto é, parte de uma postura mais diretiva e menos contemplativa; (b) o empirismo, característica que potencializa a avaliação da experiência, ou seja, dos pensamentos, das emoções e dos comportamentos, a partir de eventos do ambiente, com base nos indicativos empíricos e; (c) o diálogo socrático, que pressupõe uma postura curiosa e de entendimento do outro, sugerindo que o terapeuta apresente questionamentos informativos, de análise e de sínteses, resumos periódicos e, escuta ativa e empática. Desta forma, oportuniza-se a identificação de pontos divergentes, a tomada de perspectiva, a elaboração de novos significados, levando à descoberta guiada3,4 e à apropriação do próprio processo terapêutico pelo paciente2. Para tanto, terapeuta e paciente precisam reconhecer-se como uma verdadeira equipe, na qual cada um tem papel fundamental. A relação terapêutica baseada na colaboração, empirismo e descoberta guiada é essencial para que os outros elementos específicos da TCC sejam conduzidos de maneira apropriada, como a adequação do uso de programas, estrutura, técnicas, para que sejam efetivos para o atendimento em questão1 .

Uma vez que há uma interação baseada no empirismo colaborativo no processo terapêutico, entende-se que a repercussão da relação ocorra para ambos os envolvidos, qual seja, paciente e terapeuta. Barletta, Cardoso e Neufeld5 apontam que a relação de ajuda psicoterápica pode ser extremamente desgastante e, portanto, vulnerabilizar o profissional, tornando-o sensível a sentir-se abalado nesse processo, podendo gerar ou potencializar desconforto intenso, por exemplo. Assim, exige-se do terapeuta um repertório de habilidades sociais acurado, tais como a habilidade de fornecer e solicitar feedbacks apropriadamente, equilibrar as habilidades empáticas e assertivas, e manejar problemas interpessoais, bem como, elementos relacionados ao autoconhecimento do profissional6. De acordo com Pugh e Margetts7 as habilidades sociais do terapeuta são fundamentais para uma relação adequada em terapia, mas também são complexas, uma vez que estão diretamente associadas ao contexto. Isto é, inclui aspectos pessoais e inter-relacionais do terapeuta, sincronização com o processo terapêutico, integração conceitual e habilidades procedimentais.

Um dos aspectos considerados nesse processo é a contratransferência, definida como a reação esquemática do terapeuta frente ao comportamento do paciente em contexto clínico e/ou à situação terapêutica7. Leahy8 ressalta que os terapeutas também têm esquemas que podem ser disfuncionais e quando ativados nas situações de terapia com o paciente podem ser considerados a contratransferência na TCC. Este autor exemplifica pensamentos automáticos que aparecem com frequência na contratransferência ao destacar distorções como rotulação quando o terapeuta avalia que o paciente é resistente ao processo terapêutico e não adere as propostas da terapia, a personalização ao se culpabilizar pela demora da melhora do paciente, ou mesmo o pensamento tirano do tipo deveria, ao interpretar que o paciente deveria fazer o plano de ação. Pugh e Margetts7 reforçam que as reações cognitivo-afetivas disfuncionais dos terapeutas em contexto clínico são comuns em TCC, sejam estas relacionadas ao paciente e/ou à situação psicoterapêutica, que, por sua vez, podem gerar ou manter crenças disfuncionais e pensamentos autorreferentes avaliativos, fortalecendo a autocrítica demasiada e catastrófica do terapeuta.

Ao contemplar este cenário, um questionamento que aparece é sobre o impacto que tais pensamentos podem ter no terapeuta e, consequentemente, na condução da psicoterapia. Como exemplo relacionado à psicoterapia, as suposições do terapeuta sobre limitação que a estrutura de sessão da TCC impõe no processo, torna mecânica a relação estabelecida, ou mesmo, suposições que a agenda deixa a terapia insensível à necessidade de fala do paciente, impedindo que possa ser abarcado o que é importante e diminuindo o acolhimento à angústia do paciente, podem impactar na falta de fidelidade e empatia na aplicação da TCC, afastando-o de uma condução adequada9.

Nesse sentido, entende-se que a atenção as próprias emoções e as especificidades dos conteúdos cognitivos ocorridos em sessão fazem parte das competências do terapeuta. O manejo da contratransferência com o uso de técnicas cognitivas de identificação, avaliação e modificação de pensamentos, bem como de regulação emocional podem favorecer a tomada de consciência das crenças e dos esquemas ativados do terapeuta e, consequentemente, o aumento da qualidade na condução clínica10,11. Porém, a contratransferência pode facilmente ser negligenciada ou passar desapercebida pelo terapeuta, o que, por sua vez, favorece o sofrimento do profissional frente ao atendimento, bem como atitudes contraproducentes ao processo terapêutico12. Logo, o manejo das questões emocionais do terapeuta eliciadas no atendimento clínico se torna fundamental para prevenir intervenções prejudiciais e aumentar a qualidade do atendimento13.

Castonguay et al.13 entendem que, em supervisão, os terapeutas em formação podem desenvolver a capacidade de monitoramento dos sentimentos eliciados em sessão, especialmente dos desagradáveis de sentir, como raiva, mas também os excessivamente agradáveis de sentir ou até mesmo ambivalentes7,11. Para aprender a identificar e manejar a contratransferência, é preciso uma atitude aberta para a auto-observação e autoconhecimento de pontos fortes e vulnerabilidades. Dessa forma, considera-se a supervisão clínica como um momento oportuno e crucial no treinamento de terapeuta, que pode potencializar o desenvolvimento do repertório de competências clínicas, incluindo o processo reflexivo e autorreflexivo do terapeuta em formação5,6,14. Assim, é nesse contexto que o terapeuta em supervisão aprende a conceitualizar a própria contratransferência, movendo-a de uma percepção de frustração para compaixão no contexto clínico7.

A supervisão clínica em TCC se assemelha à psicoterapia e é regida pelos mesmos pressupostos e axiomas da teoria. Por outro lado, é uma atividade diferenciada e específica, que tem características únicas e finalidade distinta da prática clínica, com três propósitos primordiais e inter-relacionados, quais sejam, formativo, normativo e restaurador15. Essas autoras reforçam que estes três aspectos são considerados funções essenciais que norteiam a supervisão, portanto, devem ser alçados ao longo do processo supervisionado. Assim, pode-se dizer que a supervisão clínica tem como intuito auxiliar o terapeuta em formação a desenvolver competências psicoterapêuticas (função formativa), baseadas na ética e qualidade de intervenção (função normativa), sempre prezando pelo suporte emocional e resguardando a saúde mental do profissional (função restauradora) (Figura 1).


Figura 1. As funções ou propósitos da supervisão



Alguns autores apontam que a relação interpessoal em supervisão é hierárquica já que um profissional sênior orienta o aprendiz16,17. Esse entendimento condiz com o modelo de supervisão tradicional ou de terapias não estruturadas e fortemente divulgadas no Brasil9, no qual o supervisor se mantém em uma condição de poder e expertise bastante distante do terapeuta novato. Por outro lado, há um questionamento sobre a relação interpessoal em supervisão, em que a hierarquia e a autoridade excessivas podem ser contraproducentes no alcance do desenvolvimento do terapeuta15,18. Não se questiona as diferenças de papéis a serem desempenhadas em supervisão clínica e que, consequentemente, têm influência na hierarquia, mas ressalta-se a importância de não as tornar demasiadas e rígidas ao ponto de se transformarem em uma barreira. Neste sentido, Milne19 partilha a ideia de que a supervisão em TCC vislumbra uma aprendizagem para autonomia, com uso de metodologias experienciais e educativas, baseadas no envolvimento ativo de todos os participantes deste processo.

Uma vez que a relação interpessoal em supervisão baseada na TCC também parte da participação colaborativa e de construção conjunta, ou seja, um trabalho de equipe com a corresponsabilidade do terapeuta e do supervisor15, entende-se que a contratransferência em supervisão é um elemento a ser considerado no processo de aprendizagem. Se por um lado, a contratransferência tem sido pouco estudada na TCC12, ao se focar na supervisão clínica e na contratransferência do supervisor, a literatura se torna ainda mais escassa. Apesar de não ser um termo aceito por todos os autores, entende-se que este conceito em supervisão pode oferecer maior entendimento das relações interpessoais estabelecidas, especialmente quando não favorecerem a aprendizagem e desenvolvimento18.

Segundo Prasko e Vyskocilova11, a contratransferência do supervisor em relação ao terapeuta em treinamento é um elemento comum na supervisão clínica e deve ser foco da autorreflexão, bem como pode ser trabalhada na supervisão da supervisão. É essencial que o supervisor aprenda a reconhecer e processar suas reações, avaliando seus próprios pensamentos, emoções e comportamentos ativados no processo supervisionado20. Uma sugestão é que o supervisor esteja atento as fortes reações emocionais na interação com um supervisionando ou a mudança gradual da emoção ao longo do processo supervisionado. Outro aspecto que pode denotar a contratransferência do supervisor é se há emissão de comportamentos mais agressivos ou impacientes, seja diretamente em supervisão ou em momentos de discussões com pares, como na supervisão da supervisão18. Portanto, reforça-se a importância do treinamento do supervisor21 para que o profissional tenha cada vez mais manejo de identificar, avaliar e lidar de forma saudável com os aspectos contratransferenciais no contexto de formação de terapeutas, ainda que poucos supervisores no cenário mundial receberam treinamento sistematizado para esta prática7.


DESENVOLVIMENTO TEÓRICO-METODOLÓGICO

Partindo do exposto, um questionamento amplo que emerge é sobre a relação da contratransferência do supervisor com a aprendizagem e desenvolvimento no processo supervisionado em TCC. Uma vez que há uma escassez na literatura e uma lacuna de pesquisas empíricas sobre a temática, este trabalho foi baseado em uma perspectiva narrativa, cuja busca de material ocorre de forma assistemática, mas proporciona um direcionamento inicial explanatório, crítico e de posicionamento, associando a narração à teoria22.

Portanto, este texto tem por objetivo fomentar a reflexão sobre a contratransferência em supervisão na TCC e a importância de seu manejo pelo supervisor, levantando possibilidades de transformá-la em uma ferramenta de aprendizagem. Para ilustrar o processo contratransferencial na supervisão serão apresentadas duas vinhetas com situações hipotéticas de supervisão como caminho metodológico, que serão expostas em formato grupal e individual, bem como com níveis diferentes de desenvolvimento de terapeutas. Após a apresentação das vinhetas, abrir-se-á para a discussão sobre o impacto da contratransferência no processo supervisionado, relacionando-o com a teoria.


SITUAÇÃO HIPOTÉTICA DE SUPERVISÃO 1

Na primeira vinheta, parte-se de uma supervisão em grupo, cujo foco de trabalho é no atendimento grupal, com terapeutas recém-formados considerados de nível iniciante na prática clínica da TCC (Figura 2). Na descrição da situação supervisionada, pode-se identificar a ativação de pensamentos e de emoções desagradáveis de sentir do supervisor.


Figura 2. Supervisão de terapeutas recém-formados



Como visto no exemplo descrito na vinheta (Figura 2), uma terapeuta em formação relatou o quanto ficou incomodada com o comportamento de uma das participantes no grupo de intervenção que estava conduzindo. Ao ouvir o relato do comportamento que a terapeuta teve durante a intervenção, considerado agressivo com a participante, o supervisor sentiu-se frustrado e apontou de forma mais firme o quanto a terapeuta não agiu adequadamente. Uma vez que o supervisor não estava consciente da sua própria reação esquemática, apenas respondeu aos pensamentos, sem escolher estratégias pedagógicas ou formas de comunicação mais claras, empáticas e assertivas, ativando pensamentos distorcidos, emoções desagradáveis de sentir e respostas comportamentais igualmente inadequados com a terapeuta em formação. Ao ouvir da terapeuta que o supervisor estava errado e que dar um limite de forma intransigente para a participante era necessário e o correto a fazer, a emoção de raiva e as cognições de perceber-se confrontado e de julgar a terapeuta como petulante foram eliciadas na situação. Neste cenário, é bastante provável que o supervisor tenha comportamentos punitivos com a terapeuta em treinamento, especialmente se for um contexto de educação formal, como na graduação ou pós-graduação.

Uma vez que a supervisão clínica é considerada um momento pedagógico fundamental no desenvolvimento do terapeuta, está consolidada na graduação de psicologia e fortemente sugerida na pós-graduação21, sabe-se que a relação hierárquica é um componente consolidado no contexto educacional17. Entende-se ainda, que nesta conjuntura a avaliação pode ir além das competências clínicas previstas no processo supervisionado15 , mas também incluem atribuições de notas que impactam em o aluno ser aprovado ou reprovado21, o que é mais um elemento para ser considerado na balança da relação interpessoal e de poder18 e, consequentemente, podendo estar associado à contratransferência do supervisor.

Terapeutas iniciantes, geralmente, ainda não desenvolveram um repertório clínico básico, com lacunas no conhecimento, nas habilidades e nas atitudes. Espera-se que o supervisor possa reconhecer as dificuldades dos terapeutas em formação, para lançar mão de estratégias de ensino compatíveis com a necessidade apresentada no contexto supervisionado, assim como assegurar o cuidado com suporte emocional do terapeuta5.

Em situações como a descrita na vinheta (Figura 2), o supervisor do quadrinho encontrava grande dificuldade no manejo de suas emoções desagradáveis de sentir, como frustração, angústia e raiva, e de seus esquemas disfuncionais. Para o supervisor era óbvio que a terapeuta em treinamento soubesse que jamais poderia se dirigir dessa forma a um paciente. Verifica-se que a terapeuta também estava com raiva da participante e, por estar em início da sua prática profissional e formação em TCC, não sabia o que fazer para manejar a contratransferência. A dificuldade de identificar e lidar com as reações esquemáticas, tanto do supervisor quanto da terapeuta, potencializou os desafios estabelecidos na relação interpessoal, a ruptura e resistência de ambos18.

Entende-se que vários desdobramentos podem acontecer em supervisão relacionados à contratransferência do supervisor. Por exemplo, fazendo um paralelo com a perspectiva proposta por Leahy8, se o supervisor avaliar a dificuldade da terapeuta como falta de engajamento e a reação esquemática ativada for perfeccionismo, corre-se o risco de rotular a terapeuta em formação como irresponsável e sem maturidade. Dessa forma, o supervisor pode tornar-se intolerante às imprecisões clínicas da terapeuta e diminuir o comportamento de ajuda ofertado. Se o supervisor tiver um perfil narcisista, pode-se rotular a terapeuta como desrespeitosa e com atitudes de desvalia com o supervisor, uma vez que a profissional em formação não seguiu ou aceitou as orientações dadas. Como resposta comportamental inadequada, o supervisor pode ser mais punitivo ou mesmo invalidar qualquer emoção e ação da terapeuta. Em todos os casos, a falta de consciência e manejo da contratransferência do supervisor pode desfavorecer um espaço contingente e seguro de aprendizagem5 , promover desgaste na relação interpessoal18 e romper com as funções formativas, normativas e restauradoras do processo supervisionado15.


SITUAÇÃO HIPOTÉTICA DE SUPERVISÃO 2

Na segunda vinheta (Figura 3), parte-se do primeiro encontro de uma supervisão individual, cujo foco de trabalho é no atendimento individual de adulto, com terapeuta de nível de desenvolvimento avançado. Percebe-se que nesta vinheta, duas possibilidades de pensamentos automáticos distorcidos diferentes, ainda que a emoção descrita seja a mesma, porém impactando em comportamentos distintos, de acordo com o funcionamento da supervisora e de seus esquemas ativados.


Figura 3. Supervisão de terapeuta experiente



Como visto no exemplo descrito na vinheta (Figura 3), uma terapeuta proficiente com experiência e treinamento de médio prazo buscou supervisão. Logo no início, a terapeuta relatou o quão feliz se encontrava por ter iniciado o processo supervisionado com aquela profissional, expondo sua expectativa de desenvolvimento clínico. No quadrinho 2A, a emoção eliciada foi o medo e os pensamentos automáticos da supervisora passaram pela percepção de incompetência, de não se sentir capaz de ajudar a terapeuta, de julgá-la mais competente que a si mesma. Um provável comportamento é a desistência de supervisionar e o encaminhamento da terapeuta para outro supervisor. No quadrinho 2B, a emoção se manteve como medo, mas os pensamentos automáticos ativados indicaram a distorção do deveria e o pressuposto que a supervisora deveria fazer tudo perfeito. A probabilidade de a profissional entrar em um looping de perfeccionismo, emitindo comportamentos de busca de segurança de muito esforço, estudo e planejamento excessivo é alta.

Percebe-se que se a ativação esquemática for negligenciada, o nível de sofrimento da supervisora pode ser elevado. A tendência é que a profissional desqualifique o próprio trabalho, tenha distorções do tipo tudo ou nada (se não for uma supervisão perfeita, não serviu de nada), personalização (é minha culpa que a terapeuta não se desenvolve) ou catastrofização (não será possível ajudá-la, farei tudo errado, ela irá detestar)8.


DISCUSSÃO

Com intuito de fomentar a reflexão sobre a contratransferência em supervisão na TCC, as duas vinhetas apresentadas neste texto são exemplos de diferentes situações de supervisão que podem ativar reações cognitivo-afetivas e comportamentais do supervisor. Sabe-se que a supervisão clínica em TCC é considerada um momento pedagógico essencial no desenvolvimento do terapeuta14,15, favorecendo o aumento de repertório clínico, aspectos éticos e possibilitando o cuidado ao bem-estar do profissional. Neste sentido, o contexto oportuniza o manejo e monitoramento da contratransferência do terapeuta11,13, facilitando o aprendizado da identificação, avaliação e reestruturação de cognições disfuncionais, regulação de emoções intensas, tomada de decisão e escolha de comportamentos mais adequados na prática clínica.

Para tanto, a literatura aponta que em supervisão podem ser utilizadas estratégias da própria TCC com o supervisionado, sendo necessário a atitude de abertura ao processo reflexivo do terapeuta e ao conhecimento e habilidade do supervisor. Além disso, o supervisor pode ser considerado um modelo de manejo às reações emocionais para o supervisionando7,14,15. Ou seja, parte-se do entendimento que o supervisor precisa ser preparado para exercer esta prática profissional. Uma das perguntas que é imediatamente levantada diz respeito ao supervisor: qual o impacto no processo de desenvolvimento do terapeuta quando a contratransferência é negligenciada no processo supervisionado?

Um dos pontos que a literatura de supervisão em TCC tem fortalecido, de forma semelhante à terapia, é a importância da relação interpessoal entre supervisor e terapeuta em formação como um elemento fundamental para o desenvolvimento e a aprendizagem2. Nesse contexto, espera-se que o supervisor possa manter a postura colaborativa, descoberta guiada e estratégias para facilitar a tomada de decisão no processo terapêutico que está em revisão na supervisão15. Corrie e Lane18 reforçam que a emoção permeia as interações interpessoais de maneiras complexas e sutis, e quando negligenciadas no processo supervisionada, afetam a qualidade das relações.

Entre as intervenções que a aliança estabelecida em supervisão pode favorecer diz respeito ao uso de estratégias experienciais e baseadas em ação, consideradas essenciais em uma supervisão baseada em evidências19. Para trabalhar a contratransferência - incluindo crenças do terapeuta sobre a terapia, sobre o paciente e sobre si mesmo - o uso de role-play e a diversidade de estratégias empregando a técnica da cadeira vazia, têm sido apontadas como eficazes no processo supervisionado em TCC7, especialmente por serem métodos ativos e experienciais. Esses autores destacam que o role-play tem foco pragmático, enquanto a cadeira vazia tem uma perspectiva mais criativa. Ao focar na contratransferência do supervisor, a atitude de abertura à autoprática da TCC pode facilitar a identificação, a reflexão e manejo das próprias reações esquemáticas. Nesta direção, Bennett-Levy, Thwaites, Haarhoff e Perry23 reforçam que ouso das estratégias da TCC pelo profissional no seu cotidiano é fundamental para identificar o impacto no próprio funcionamento e, assim, fortalecer a autorreflexão, o automonitoramento e a autocompreensão sobre si e sobre seu papel enquanto supervisor.

Ressalta-se ainda que, se negligenciada, a contratransferência no processo supervisionado pode ter um impacto prejudicial para o terapeuta, para supervisor, no próprio treinamento e, em última instância, para o paciente. Para o terapeuta em treinamento, pode impactar na autoeficácia ao ativar crenças de incompetência e potencializar emoções desagradáveis de sentir. Em alguns casos, esses entendimentos podem gerar sofrimento por muitos anos24. Para o supervisor, pode gerar dúvidas sobre si mesmo, sua competência, prejudicar sua autoestima, levar a emoções aversivas em relação ao processo supervisionado e a emissão de comportamentos inapropriados, tais como evitar abordar assuntos específicos na supervisão, atrasos ou uso inadequado do tempo11. O julgamento do supervisionando também pode acontecer, eliciando sentimentos aversivos sobre o terapeuta14 e impactando no comportamento de ausentar-se da responsabilidade no desenvolvimento da aprendizagem. No treinamento, impacta na eficácia do processo de aprendizagem18 , podendo acarretar uma supervisão empobrecida, com rupturas na relação interpessoal e que não alcança as metas de desenvolvimento de competências clínicas. Por vezes, o uso de estratégias didáticas inadequadas pode ser uma maneira de amenizar as emoções já exaltadas ou evitar situações de confronto, incluindo a falta de avaliação de competências clínicas ou mesmo, não proporcionar um ambiente que seja emocionalmente confortável e seguro para a exposição do terapeuta em formação5.

Por outro lado, a contratransferência pode ser utilizada como uma ferramenta em benefício do processo de supervisão, potencializando o aprendizado. Ao manejar a contratransferência de forma adequada, o supervisor permite que as interações sociais em supervisão sejam revistas, aumentando a chance de fortalecimento de vínculo6. Além disso, modela o comportamento do supervisionando sobre o gerenciamento das relações interpessoais, potencializando a performance em situação terapêutica com o paciente. Somado a isso, o supervisor garante que a supervisão seja um ambiente emocionalmente seguro, aumentando as chances de engajamento do supervisionado, de receptividade ao feedback e de reflexão18. Portanto, Bernard e Goodyear16 ressaltam que o investimento na relação pode favorecer a internalização do aprendizado pelo terapeuta, que aumenta a lembrança o resgate da informação, modela o gerenciamento das relações interpessoais a ser alocado em terapia, aumenta a satisfação com o processo supervisionado e fortalece o uso de protocolos de tratamento de forma correta.

Outra questão que impacta na contratransferência do supervisor é a necessidade de dar e empreender feedbacks adequados. Considerado como uma ferramenta imprescindível no processo de supervisão16, o feedback pode acabar desencadeando situações que favoreçam distorções cognitivas por parte do supervisor. Em uma situação na qual deve-se pontuar ao supervisionando que uma técnica não foi utilizada da maneira correta, o supervisor pode sentir medo de ser mal interpretado pelo supervisionando. Este, entre outros comportamentos possíveis, pode levar o supervisor a ser excessivamente empático com o supervisionando e não pontuar de forma adequada o problema ocorrido na sessão. Com o tempo isso pode levar a um desgaste da relação na supervisão, uma vez que o supervisor pode ficar hipervigilante sobre a forma como está fornecendo o feedback, enquanto o supervisionando não estará recebendo o feedback da maneira adequada e, portanto, estará perdendo oportunidades de maior aprendizagem25.

O medo que o feedback possa desagradar o supervisionando pode ser uma questão para o supervisor, ativando crenças que interferem na prática pedagógica da supervisão, como soar falso, punitivo ou, de alguma forma, gerar rupturas na aliança com o terapeuta7,25. A dificuldade com feedbacks corretivos por medo de uma interpretação distorcida por parte do supervisionando pode ainda ser discutida em âmbito cultural, uma vez que é parte da cultura brasileira o receio em desagradar o outro, prejudicando a relação de alguma forma, é bastante iminente9. Uma vez que conversas difíceis são inevitáveis em supervisão, com pedidos de mudanças de comportamento do supervisionando ou com a inclusão de um assunto considerado delicado, espera-se que o supervisor tenha uma habilidade de comunicação empática e assertiva, a fim de transmitir clareza no conteúdo, compreensão dos elementos cognitivo-afetivos do terapeuta, foco no desempenho e gentileza na comunicação7,15,16.

Portanto, parte-se do pressuposto que o treinamento para exercer a prática supervisionada é essencial, fortalecendo a assertiva de que "a necessidade de formação do supervisor se torna ainda mais relevante quando a literatura aponta supervisões que podem gerar consequências danosas ao terapeuta supervisionado"

(p. 123)15. A literatura, nos últimos anos, tem ressaltado que uma importância de incluir no conceito de supervisão a concepção bioética, ou seja, em primeiro lugar, não causar mal7,14. Isto aponta, por exemplo, para a importância de o supervisor aumentar a consciência sobre a contratransferência em supervisão, para minimizar o possível impacto em fornecer supervisões inadequadas, que não favorecem o desenvolvimento do repertório do terapeuta ou mesmo para supervisores prejudiciais, que podem gerar dificuldades emocionais no terapeuta. Seja uma supervisão inadequada ou prejudicial, a repercussão na qualidade do atendimento pode ser um fator fundamental, ao se considerar que uma terceira pessoa pode não receber o atendimento em saúde mental esperado15.

Por treinamento do supervisor incluem-se atividades que promovem desenvolvimento das competências para exercer esta prática profissional, como: workshop, acompanhar um supervisor mais experiente, ser treinado e avaliado em habilidades específicas de supervisão. Outra atividade de extrema importância na formação do supervisor tem sido chamada de supervisão da supervisão, em que o supervisor também é supervisionado por um profissional sobre a sua prática supervisionada e não sobre sua prática psicoterápica11,18.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Partindo desse raciocínio, se defende a ideia de que o manejo contratansferencial de supervisores é um aspecto que deve ser incluído no treinamento dessa prática profissional, especialmente ao se pensar em supervisores noviços que estão iniciando esta função. É essencial que o supervisor lance mão de estratégias da própria TCC, fortalecendo a autoprática e autorreflexão, identificando gatilhos nas situações de supervisão que ativaram suas reações esquemáticas, regulando emoção e reestruturando pensamentos, com objetivo de aumentar a emissão de comportamentos salutares no processo de ensino e aprendizagem.

O manejo da contratransferência favorece o supervisor fazer o movimento zoom in -zoom out no processo supervisionado e, consequentemente, possibilita o aumento da qualidade de escolhas pedagógicas adequadas que promovam as funções formativa, normativa e restauradora na supervisão clínica de TCC. Portanto, considera-se que o manejo do supervisor com a própria contratransferência em supervisão é uma competência fundamental para esta prática profissional.

Ainda que essa narrativa não seja uma pesquisa, limitando-se ao propósito de aumentar a reflexão do leitor sobre um aspecto pouco falado na supervisão em TCC, sugere-se a inclusão desta temática nos protocolos de estudos empíricos. Por outro lado, acredita-se que esse texto possa fortalecer um olhar tão importante e, atualmente negligenciado, para a prática supervisionada em TCC.


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Universidade de São Paulo, Laboratório de Pesquisa e Intervenção Cognitivo-Comportamental (LaPICC) - Ribeirão Preto - SP - Brasil

Autor correspondente

Janaína Bianca Barletta
janabianca@gmail.com

Submetido em: 30/06/2021
Aceito em: 01/11/2021

Contribuições: Janaína Bianca Barletta - Conceitualização, Metodologia, Redação - Preparação do original, Redação - Revisão e Edição, Visualização; Isabela Pizzarro Rebessi - Conceitualização, Redação - Preparação do original, Visualização; Carmem Beatriz Neufeld - Aquisição de financiamento, Conceitualização, Redação - Revisão e Edição.

 

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