Rev. bras. psicoter. 2022; 24(1):17-30
Cassinelli T, Guzzo JF, Rucks T, Boff RM. Tocados pelo Fogo: O Transtorno Bipolar a partir da Análise Cognitivo Comportamental. Rev. bras. psicoter. 2022;24(1):17-30
Artigo de Revisao
Tocados pelo Fogo: O Transtorno Bipolar a partir da Análise Cognitivo Comportamental
Touched with Fire: Bipolar Disorder from Cognitive Behavioral Analysis
Tocados por el Fuego: Trastorno Bipolar a partir del Análisis Cognitivo Conductual
Tamiris Cassinellia; Joana Frata Guzzoa; Thalia Rucksa; Raquel de Melo Boffb
Resumo
Abstract
Resumen
INTRODUÇÃO
O Transtorno Bipolar (TB) caracteriza-se como um transtorno de humor e está dividido em tipo I e tipo II1. Além da depressão maior presente em ambos diagnósticos, o TB tipo I apresenta pelo menos um episódio de mania, enquanto o tipo II, ao menos, um episódio de hipomania2. Há oscilações de humor entre a depressão e a euforia, ou seja, o termo bipolar expressa os dois polos de humor ou de estados afetivos que se alteram neste quadro: a depressão e seu oposto, a hipomania ou a mania3.
A compreensão dos dados epidemiológicos da patologia é relevante para identificar populações e fatores de risco associados. A prevalência ao longo da vida em amostras americanas e brasileiras para o TB tipo I é de, aproximadamente, 1% e, de cerca, de 1,1% para o tipo II4. Em uma revisão crítica dos principais inquéritos epidemiológicos realizados em amostras populacionais representativas, tendo como foco o estudo do World Mental Health Surveassy Initiative (Iniciativa da Pesquisa Mundial de Saúde Mental)5, foi observado a prevalência média de 0,6% do TB tipo I, de 0,4% do tipo II, de 1,4% para transtornos que não preenchem todos os critérios. A prevalência em São Paulo é de 2,1%, sendo menos que a metade da norte-americana (4,4%).
Antes de o indivíduo passar por procedimentos que o ajudem a lidar com o seu transtorno, é necessário que seja realizado um diagnóstico preciso. Trata-se de um transtorno grave, com taxas de suicídio de 10-30 vezes maior do que na população em geral6. Por isso, a demora para diferenciar o TB da depressão unipolar desafia muitos profissionais, o que pode ocasionar graves consequências, como tratamentos inadequados que podem aumentar o risco7. Além de tratamentos farmacológicos incorretos, outras causas estão associadas ao suicídio em indivíduos com TB, tais como desesperança, impulsividade, agressividade6, história familiar, tentativas de suicídio anteriores, gênero, comorbidades, entre outros8. O diagnóstico de transtornos psiquiátricos requer atenção a todos os aspectos biopsicossociais do indivíduo. No que tange ao TB, uma anamnese minuciosa deve incluir a identificação de sintomas e sinais, análise do temperamento do paciente, história familiar detalhada, estressores do contexto em que o sujeito vive, respostas aos medicamentos, além de avaliações clínicas ou exames complementares9.
É fundamental salientar que a eficácia do tratamento está relacionada com a adesão do paciente aos medicamentos, junto à psicoterapia, caso o contrário, o não comprometimento com o uso de fármacos no tratamento pode agravar a frequência dos episódios maníacos e depressivos, aumentar as internações, as tentativas de suicídio e a piora na qualidade de vida dos familiares e do próprio paciente10. Na Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC), desde o início do processo terapêutico é construída a conceitualização cognitiva do caso, de maneira colaborativa entre terapeuta e paciente. Tal procedimento contínuo auxilia na identificação de um padrão cognitivo, na preparação de um plano de tratamento e na elaboração das intervenções terapêuticas, propiciando uma visão ampla, desde as crenças disfuncionais e estratégias de comportamento, até chegar às crenças nucleares do sujeito11.
Após a realização do diagnóstico e da elaboração da conceitualização cognitiva, essas são algumas das estratégias que podem ser utilizadas: psicoeducação, gráfico do humor - afetivograma, reestruturação cognitiva, cenário da pior hipótese, intervenção familiar, prevenção à recaída, que objetivam trabalhar com o reconhecimento das oscilações de humor do paciente, fazendo com que ele e o terapeuta consigam prevenir novos episódios12. É importante deixar evidente que todos os protocolos apresentam algum elemento relacionado à psicoeducação sobre os aspectos do transtorno, focam também na primordialidade da medicação, nos sintomas prodrômicos, além da modificação dos pensamentos disfuncionais ao longo do tratamento13. O primeiro passo é a adesão a medicação, para estabilizar o humor, oportunizando, com isso, que a TCC seja usada como tratamento14.
Um ensaio clínico randomizado (ECR) foi conduzido com indivíduos que possuem TB tipo I grave. Os participantes foram acompanhados durante 18 meses com folow up de 30 meses. Um grupo recebeu TCC mais medicação e outro apenas medicação15. O estudo concluiu que a TCC associada à medicação tem resultados superiores e pode prevenir recaídas, além de demonstrar melhora no funcionamento social e no enfrentamento a estressores, portanto, sendo um bom complemento ao tratamento farmacológico15. Os autores também demonstraram que os efeitos da TCC foram mais significativos nos primeiros seis meses do tratamento e nos seis meses após a terapia. Outro ECR com duração de 30 meses, que teve como desfecho a prevenção a recaída em sujeitos com TB tipo I, avaliou o custo-efetividade do tratamento, comparando a TCC mais tratamento padrão com apenas o tratamento padrão. Concluiu-se que a junção de TCC com a medicação proporcionou melhores resultados em relação a recaídas, o que otimizou custos pela redução do uso de serviços16.
Considerando a dificuldade de diagnóstico e tratamento do TB, acredita-se que um artefato cultural possa ser útil como norteador para a prática clínica no que diz respeito à clareza de sintomas e possíveis intervenções em TCC. Utilizando como objeto de estudo um personagem fictício, Carla, do filme "Tocados pelo Fogo"17, objetiva-se demonstrar os marcadores diagnósticos do TB tipo I e, a partir disso, a elaboração de um plano terapêutico coerente com as demandas da personagem.
MÉTODO
Delineamento
Trata-se de um estudo de caso que utilizou de um artefato cultural para caracterização dos critérios diagnósticos do TB tipo I e a realização de um plano de tratamento baseado na Terapia Cognitivo-Comportamental para a protagonista do filme "Tocados pelo Fogo"17.
Fonte
A fonte de análise para este estudo trata-se do filme "Tocados pelo fogo" (Touched with Fire)17 de 2015, dirigido e escrito por Paul Dalio e protagonizado pelo ator Luke Kirby (Marco/Luna) e a atriz Katie Holmes (Carla). O enredo envolve dois jovens poetas, inspirados pela arte e a escrita, com diagnóstico de TB, que se encontram em um hospital psiquiátrico, onde começam um romance. Em seus poemas, eles explicitam seus conflitos emocionais e isso os aproxima, o que agrava os sintomas de ambos. Devido a isso, médicos e familiares tentam separá-los, mas não têm sucesso. Entre diversos encontros escondidos, o casal descobre uma gravidez e, por conta disso, decidem aderir ao tratamento farmacológico. Neste período, Carla realiza o tratamento e faz uso de bebidas alcoólicas ao mesmo tempo, já Luna não adere ao tratamento por acreditar que não precisa da medicação. Com humor estável, sob efeito da medicação, Carla rompe com Luna e interrompe a gestação.
Seleção das Cenas
Foram selecionadas 10 cenas do filme para análise e utilizou-se como parâmetros de seleção os critérios diagnósticos do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais-5 (DSM-5)1 para o transtorno do humor bipolar tipo I. Cada critério diagnóstico foi ilustrado por meio de cenas que traduzissem o funcionamento diagnóstico de um indivíduo com TB.
Referencial de Análise
Para o estudo do artefato utilizou-se como referencial de análise os critérios do DSM-5 para TB. Neste sentido, foram selecionadas cenas nas quais a personagem Carla demonstra, por meio do comportamento público, cognições, emoções e interação social, a manifestação de tais critérios. A possibilidade de intervenção foi estabelecida com base no funcionamento da personagem e nos tratamentos cognitivo-comportamentais empiricamente testados para TB.
RESULTADO E DISCUSSÃO
Foram selecionadas para a análise 10 cenas do filme. Nestas, a personagem Carla demonstra a manifestação dos critérios diagnósticos para o TB tipo I. A tabela 1 apresenta as cenas extraídas do artefato:
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