Rev. bras. psicoter. 2022; 24(1):1-15
Santos TC, Penido MA. Transtorno distímico: uma ilustração clínica pela perspectiva da Terapia Cognitivo-Comportamental e Terapia Cognitiva Processual. Rev. bras. psicoter. 2022;24(1):1-15
Artigo Original
Transtorno distímico: uma ilustração clínica pela perspectiva da Terapia Cognitivo-Comportamental e Terapia Cognitiva Processual
Dysthimic disorder: clinical illustration from the perspective of Cognitive-Behavioral Therapy and Processual Cognitive Therapy
Trastorno distímico: una ilustración clínica desde la perspectiva de la Terapia Cognitivo-Conductual y la Terapia Cognitiva Procesal
Thais Carvalho Santos; Maria Amélia Penido
Resumo
Abstract
Resumen
INTRODUÇÃO
A quinta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5)1 caracteriza a distima, pelo humor deprimido na maior parte do tempo durante o período mínimo de dois anos. Ele indica ainda que, além do humor deprimido, o indivíduo deve apresentar dois ou mais dos sintomas a seguir: apetite diminuído ou alimentação em excesso; insônia ou hipersonia; baixa energia ou fadiga; baixa autoestima; concentração pobre ou dificuldade em tomar decisões; sentimentos de desesperança. O paciente distímico jamais deve ter tido sintomas de mania ou hipomania. Ademais, os sintomas devem causar sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento profissional, social ou em outras áreas de importância na vida do sujeito.
Nessa perperctiva, a distimia é vista como uma depressão leve, flutuante e duradoura2. Spanemberg e Juruena3 apontam que os pacientes distímicos são geralmente tristes, rabugentos, sarcásticos, preocupados com sua possível inadequação, queixosos, exigentes e resistentes às intervenções terapêuticas, apesar de serem assíduos aos atendimentos. O indivíduo com distimia frequentemente apresenta funcionamento relativamente estável, porém com disfunção em certas esferas vitais, como a social, familiar, laboral ou pessoal4.
O DSM-51 aponta que a prevalência da distimia, em 12 meses nos Estados Unidos, é de aproximadamente 2%. Apesar de aparentar uma prevalência baixa, o prejuízo causado pelo transtorno pode ser intenso. Diante do exposto, aponta-se que a etiologia da distimia é complexa e multifatorial, envolvendo mecanismos biológicos, psicológicos e sociais, como por exemplo: hereditariedade, predisposição, temperamento, fatores de vida, estressores biológicos, gênero, eventos estressantes na infância, entre outros5. Somente a partir da década de 80 que a distimia foi integrada aos transtornos de humor. Essa mudança significou um avanço no tratamento de pacientes que respondem bem aos antidepressivos6 .
Nesse sentido, o transtorno que aparece como a comorbidade mais associada com a distimia é o Transtorno Depressivo Maior (TDM)7. Alguns estudos apontam que a distimia aumenta os riscos de o sujeito ser diagnosticado com TDM, outros achados inferem que a maioria dos pacientes com distimia, em algum momento da vida, irá desenvolver TDM8. Alguns autores defendem a ideia de que existe um espectro depressivo, tendo a distimia e o TDM diferenças mais quantitativas do que qualitativas8.
No começo da década de 60, Aron Beck propôs a Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) como um tratamento eficaz para a depressão9. Ao longo dos anos, a abordagem também foi adaptada para o tratamento de outros transtornos psicológicos, como o transtorno de pânico, fobias, transtorno obsessivo-compulsivo, transtorno de ansiedade generalizada e distimia, que é o foco deste estudo. Estudos empíricos realizados com uma ampla gama de perfis populacionais demonstraram eficácia da abordagem para o tratamento desses transtornos10 .
Nesse âmbito, a TCC é uma abordagem de tratamento ativa que auxilia os pacientes a reconhecerem e modificarem suas crenças disfuncionais que agravam o sofrimento emocional9. Essa abordagem tem como meta a reestruturação das crenças nucleares (CNs), que são aqueles pensamentos globais, rígidos e supergeneralizados sobre si mesmo, sobre o mundo e acerca do futuro, que são considerados tão verdadeiros que não são questionados11. Esses pensamentos influenciam na maneira como o sujeito se sente e se comporta nas mais variadas situações.
A Terapia Cognitiva Processual (TCP) é uma nova abordagem dentro do campo da TCC. A TCP é conduzida como uma formulação de caso em três níveis e três fases. A abordagem foi criada em 2011, no Brasil, pelo psiquiatra Irismar Reis de Oliveira12. O autor se inspirou na obra de Franz Kafka, O Processo¹3. Na obra citada, o personagem principal é acusado e condenado sem que tivesse acesso ao teor da acusação. Os sentimentos de culpa e autoacusação do personagem chamaram a atenção de Irismar, que criou a abordagem com técnicas que possibilitam ao terapeuta reestruturar os pensamentos e as crenças disfuncionais do paciente12.
Os fundamentos da TCP são os mesmos da TCC de Beck9. No entanto, a TCP possui conceitualização e técnicas próprias, que tornaram a TCP uma intervenção diferente quanto à modificação das crenças centrais dos pacientes, sobretudo aquelas a respeito de si mesmos12. De Oliveira12 define os pensamentos automáticos (PAs) como distorções cognitivas ou erros consistentes no pensamento dos sujeitos. O autor considera fundamental que o paciente aprenda a identificar as distorções que comete, tendo em vista que os pensamentos influenciam as emoções e os comportamentos.
Em face do exposto, o presente trabalho tem como objetivo apresentar relato de experiência acerca das contribuições que a articulação entre a TCC e a TCP no tratamento de uma paciente com sintomatologia distímica.
MÉTODO
Trata-se de um estudo de caso realizado no período de outubro de 2018 a março de 2019, totalizando 21 sessões efetuadas com a paciente "Amanda" (pseudônimo). Os atendimentos foram realizadoes em consultório particular e obtiveram supervisão durante o Estágio Supervisionado Clínico em uma instituição de Pós-Graduação em TCC. A paciente assinou o termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE), consentindo o desejo para participação deste estudo.
PARTICIPANTE
Neste trabalho, utilizou-se o nome Amanda para referir-se à paciente do sexo feminino, 19 anos, nível socioeconômico informado médio, estudante de nível superior e homossexual. Amanda reside com seus pais e seus dois irmãos.
INSTRUMENTOS
O Diagrama de Conceituação Cognitiva14 é utilizado para o levantamento de dados que auxiliam no entendimento do funcionamento do paciente e no levantamento de hipoteses que nortearão o trabalho em terapia. O Diagrama é preenchido com dados da infância que possivelmente possuem correlação com a queixa presente, bem como com os pensamentos automáticos, estratégias comportamentais, crenças intermédiárias e crenças centrais do paciente15.
Para facilitar as percepções da relação entre as distorções cognitivas e a emoção e comportamento disfuncionais desencadeados por ela, bem como para auxiliar os terapeutas a avaliar e acompanhar a evolução clínica dos pacientes, Irismar Reis desenvolveu o Questionário de Distorções Cognitivas (CD-Quest) (Anexo 3). O CD-Quest contém 15 itens que mensuram as distorções cognitivas em duas dimensões: frequência e intensidade. As pontuações variam de 0 a 75. Quanto mais alta for a pontuação obtida pelo paciente, mais distorcidos estão seus pensamentos12.
Beck, Rush, Shaw e Emery15 criaram o Registro de Pensamento Disfuncional (RPD) com o objetivo de ajudar os pacientes a responder os PAs com mais eficiência, mudando, com isso, o humor negativo e os comportamentos disfuncionais. Com base no RPD, De Oliveira15 propôs o Registro de Pensamento Intrapessoal (RP-Intra) (Anexo 1) para diminuir as dificuldades enfrentadas pelo paciente ao tentar reestruturar seus PAs. O RP-Intra contém 14 perguntas para a reestruturação de PAs disfuncionais que devem ser respondidas em ordem pelo paciente.
O Role-play Consensual (RPC) é uma técnica bastante utilizada na TCP, que foi usada no atendimento do caso clínico deste artigo. O RPC é utilizado para ajudar os pacientes a tomarem decisões quando estão apresentando intensa ambivalência, além de desafiar comportamentos de segurança que os pacientes possam vir a ter e facilitar experimentos comportamentais. O primeiro passo da técnica consiste em identificar vantagens e desvantagens com a balança decisória. O segundo passo consiste em identificar ambivalência, pesando vantagens e desvantagens de acordo com o "eu racional" e com o "eu emocional". O terceiro passo consiste em eliminar a ambivalência, chegando a um consenso entre o eu racional e o eu emocional através da técnica da cadeira vazia12,17.
Em seguida, deve-ser revisar os passos anteriores e avaliar o aprendizado, bem como avaliar o consenso entre o "eu racional" e o "eu emocional". O sexto passo do RPC consiste na tomada de decisão do paciente. A última etapa da técnica baseia-se em ajudar o paciente para que ele possa manter a decisão tomada, através de um plano de ação, a fim de aumentar as chances de êxito na implementação da ação12.
ANÁLISE DOS DADOS
Caso clínico
Amanda buscou atendimento psicológico relatando sensação de tristeza, ausência de ânimo para suas atividades e desesperança. Ela tentou o suicídio duas vezes no ano anterior à busca do tratamento e manifestou que não sentia mais tal desejo. Suas metas iniciais para a terapia eram melhorar a qualidade de vida, deixar de sofrer com seus pensamentos e realizar suas tarefas de maneira natural, sem enxergá-las como sacrifício. Amanda foi disgnosticada com distima pela psiquiatra e o esquema medicamentoso prescrito pela profissional foi antidepressivo (Zoloft 50mg) e ansiolítico (Rivotril 0,25 mg).
A primeira parte do trabalho com Amanda foi a anamnese. Ela foi colaborativa, não demonstrando resistência em falar de sua história. Amanda relatou que sempre se enxergou de maneira negativa e que não se recorda de já ter se sentido feliz. No entanto, apontou o término do relacionamento e uma suposta traição de seu ex-namorado como fatores desencadeadores que agravaram seu estado emocional, tornando-a mais triste e com sensação de menos valor. Atualmente, ela possui uma boa relação com o ex-namorado, que é uma importante fonte de suporte para ela.
Amanda possui boa relação com sua mãe e sua irmã. Ela qualifica sua relação com o irmão como sendo distante. A relação com o pai é conturbada, uma vez que ambos possuem ideologias políticas diferentes. Amanda relatou que ele é preconceituoso, o que a incomoda bastante. Os pais de Amanda sempre deram bastante liberdade para os filhos. Essa liberdade, por vezes, é interpretada por ela como falta de cuidado.
Amanda enunciou que seus pais nunca lhe cobraram quanto ao seu desempenho escolar e nem à sua escolha profissional. Ela disse que sempre teve um desempenho acadêmico excelente, mas que seu irmão apresentava dificuldade escolar. Amanda relatou que seus pais colavam a prova de seu irmão na parede quando ele tirava nota boa, como forma de incentivo, e que ela tinha pavor de passar por essa situação. Por conta disso, Amanda estudava demasiadamente para não tirar notas baixas e para que as notas altas fossem uma constante. Amanda generalizou, assim, que deveria sempre tirar notas boas.
A relação terapêutica é aspecto central da terapia e no caso de Amanda transcorreu de forma célere. Quando o vínculo estava bem estabelecido, partiu-se para a etapa da psicoeducação acerca do modelo cognitivo e da distimia, hipótese de transtorno de Amanda. A psicoeducação é fundamental para que o paciente compreenda seu funcionamento no modelo cognitivo e o impacto de seu funcionamento, suas crenças e cognições em seus sintomas psiquiátricos.
Amanda não apresentou dificuldades com a psicoeducação do modelo cognitivo da TCC. Ela demonstrou facilidade em identificar as distorções cognitivas que realizava com frequência. Em seguida, trabalhou-se a reestruturação cognitiva com o RP-Intra (Anexo 1). Durante as sessões, Amanda preencheu sem dificuldade o RP-Intra, conseguindo reestruturar os pensamentos disfuncionais que lhe causavam sofrimento.
Conceitualização Cognitiva do Caso Amanda
Iniciou-se, então, sua formulação de caso com o Diagrama de Conceituação Cognitiva14 (Anexo 2), para que ela pudesse visualizar melhor seu funcionamento através do conhecimento das suas crenças e de estratégias comportamentais que lhe ajudavam a lidar com essas crenças. Amanda possuía uma crença central de desvalor muito ativada. Ela se enxergava como "incapaz, burra e desinteressante", bem como incapaz de alcançar a felicidade, de ter uma qualidade de vida satisfatória, de conseguir um estágio na sua área e de ser bem-sucedida financeiramente. Amanda enxergava as pessoas a sua volta como mais interessantes do que ela.
Nesse trabalho colaborativo, de levantamento de hipóteses, pôde-se identificar algumas de suas crenças intermediárias, como por exemplo: "Se eu não tirar sempre 10, é sinal de que sou burra e não vou conseguir me formar." "Se uma menina não quiser ficar comigo ou se um relacionamento der errado, é sinal de que não sou interessante e vou sofrer para sempre." "Se eu não fui selecionada para um estágio no terceiro período da faculdade, então nunca terei um estágio e vou ser fracassada profissionalmente." "Se eu disser não para alguém, então essa pessoa não vai mais gostar de mim."
Amanda, para evitar entrar em contato com sua crença de desvalor, utilizava-se de algumas estratégias compensatórias. No trabalho investigativo da conceitualização do caso, Amanda identificou como estratégias compensatórias seu perfeccionismo e sua dificuldade de falar "não" para as pessoas, com o objetivo de não correr o risco de desagradar.
No entanto, apesar de seu perfeccionismo nos estudos, Amanda também procrastinava demasiadamente para estudar e fazer seus trabalhos da faculdade. Ao deixar essas tarefas para a última hora, ela realizava as avaliações acadêmicas sem preparo, diminuindo, assim, as possibilidades de tirar uma nota maior. Identificouse que a procrastinação era padrão confirmatório de sua crença de que era "burra" e "incapaz". Todavia, mesmo procrastinando e não se preparando tão bem para as avaliações, Amanda sempre conseguia um bom desempenho nas mesmas. Desempenho esse que ela nunca considerava suficiente para refutar sua crença.
Outro padrão confirmatório identificado ao longo das sessões foi o fato de Amanda se interessar e iniciar relacionamentos com pessoas que também não estavam bem emocionalmente, o que contribuía para o fracasso de seus relacionamentos. Esse insucesso nos relacionamentos confirmava sua crença de que era "desinteressante", que não encontraria quem a desejasse e de que era desajeitada para relacionamentos.
Para modificação do funcionamento cognitivo, é crucial colocar em prática novos comportamentos que ajudem a questionar a crença central e que visem, ainda, modificar as estratégias compensatórias. No caso de Amanda, a meta estabelecida foi a flexibilização de seu perfeccionismo. Amanda percebeu a importância de não se cobrar tanto quanto a seu desempenho. Ficou acordado, ainda, que ela faria esforços para valorizar mais suas conquistas acadêmicas.
Amanda percebeu a importância de se expor e foi encorajada, na sessão de psicoterapia, a experimentar dizer não para as pessoas ao invés de ultrapassar seus limites para agradá-las. Além disso, foi estimulada a criar um cronograma de estudo diário, com o objetivo de reduzir suas postergações no estudo, não deixando, com isso, as responsabilidades da faculdade para o último momento.
DISCUSSÃO DO CASO
Apesar de Amanda conseguir colocar as exposições comportamentais em prática e de estar psicoeducada acerca do modelo cognitivo e das distorções cognitivas, sabendo reconhecê-las e reestruturá-las com o RPIntra12 (Anexo 1), ela não conseguia utilizar essa ferramenta de reestruturação cognitiva nos momentos de ativação emocional e experimentava intenso sofrimento por um longo período.
Essa dificuldade de Amanda em reestruturar seus pensamentos distorcidos, que acarretavam em sofrimento prolongado, apontou para uma ambivalência importante. Por um lado, Amanda sempre comparecia às sessões com pontualidade e se demonstrava interessada em seu tratamento. Por outro, em seus momentos de crise, não utilizava os recursos aprendidos na terapia. Decidiu-se, então, aplicar a técnica do Role-Play Consensual com o objetivo de dissipar essa ambivalência entre sua razão e emoção, chegando a um consenso12 - o engajamento total em seu processo de mudança.
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