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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2021; 23(3):209-219



Resenha

Black Mirror: considerações psicanalíticas sobre o uso destrutivo da tecnologia

Black Mirror: psychoanalytic considerations on the destructive use of technology

Black Mirror: consideraciones psicoanalíticas sobre el uso destructivo de la tecnologia

Rafael Gomes Karama,b,c

Resumo

A série inglesa Black Mirror desnuda o humano a partir da sua complexa relação com a tecnologia de uma forma que impacta e provoca o telespectador. Algo inquietante sobre nós é revelado através do espelho da série, que convida a refletir sobre um uso destrutivo das novas ferramentas e suas possíveis consequências. O autor aceita o convite e examina a partir das principais temáticas da série, o que em nosso funcionamento psíquico pode levar a um uso mortífero da tecnologia. Na busca desse objetivo, este trabalho propõe um diálogo entre as narrativas de Black Mirror e conceitos psicanalíticos de Freud, Meltzer, Bion e Green.

Descritores: Narcisismo; Teoria psicanalítica; Princípio do prazer-desprazer; Libido

Abstract

The English series Black Mirror exposes the human from its complex relationship with technology in a way that impacts and stirs the viewer. Something uncanny about us is revealed through series mirror, which invites us to reflect on the destructive use of new tools and their possible consequences.The author accepts the invitation and examines it from the main themes of the series, which in our psychic functioning can lead to a deadly use of technology. In the pursuit of this objective, this work proposes a dialogue between Black Mirror narratives and psychoanalytic concepts of Freud, Meltzer, Bion and Green.

Keywords: Narcissism; Psychoanalytic theory; Pleasure-pain principle; Libido

Resumen

La serie inglesa Black Mirror despoja al ser humano en su compleja relación con la tecnología de una manera que impacta y provoca al espectador. Algo inquietante acerca de nosotros se revela a través del espejo de la serie, que nos invita a reflexionar sobre el uso destructivo de nuevas herramientas y sus posibles consecuencias. El autor acepta la invitación y la examina a partir de los principales temas de la serie, que en nuestro funcionamiento psíquico pueden derivar en un uso letal de la tecnología. En la búsqueda de este objetivo, este trabajo propone un diálogo entre las narrativas de Black Mirror y los conceptos psicoanalíticos de Freud, Meltzer, Bion y Green.

Descriptores: Narcisismo; Teoría psicoanalítica; Principio de dolor-placer; Libido

 

 


"O futuro é brilhante."
Black Mirror
(2016)



1) O HUMANO PRIMITIVO E O NOVO PODERIO TECNOLÓGICO

Maria é uma mulher jovem, com cerca de 35 anos. Conta que ao levar a filha Sara, uma criança de 3 anos, tida como alegre e curiosa, a um parque da cidade, distraiu-se por poucos segundos ao encontrar uma amiga da época da faculdade. Quando olhou para os brinquedos, Sara já não estava lá. Maria conta que entrou em desespero e saiu gritando o nome da filha pelo parque, sendo ajudada por algumas pessoas. A filha foi encontrada caída no chão, mas sem maiores machucados, a poucos metros de uma avenida. A pequena Sara tinha ido atrás de um gatinho que estava passando pelos brinquedos. Após o episódio, Maria relata ter ficado ainda mais ansiosa e preocupada com a segurança da filha. Descobriu a existência de um equipamento inovador que promete "paz de espírito e segurança" para pais e filhos. O equipamento promete uma maneira de monitorar a localização, os sinais vitais e, como opção, o acesso a imagens do ambiente de Sara, que podem ser obtidos sem que a filha saiba que está sendo observada. Também na categoria opcional, há uma forma de limitar a intensidade de estímulos estressantes ou traumáticos, evidenciados através da monitorização dos sinais vitais e nível de cortisol. Maria relata que ficou surpresa e assustada com as ferramentas extras do serviço, mas não planeja usá-las. O pai de Maria, que mora com ela e a ajuda na criação de Sara (Maria é mãe solteira), é totalmente contrário ao uso: "Temos que deixar as crianças serem crianças", ele diz. Maria queixase que o pai era descuidado e que, por causa disso, ela quebrara o braço quando criança, o que é sentido por ela uma como falha grave.

Francisco é um jovem com cerca de 25 anos que tinha desistido de se envolver com novas mulheres devido ao risco de sofrimento inerente aos relacionamentos. Cita dolorosos términos em relações passadas para justificar. Após algum tempo sem nenhum tipo de encontro sexual, soube da existência do novo software de relacionamento amoroso que tem conquistado um grande número de adeptos. O sistema promete encontrar a sua "alma gêmea" através de um grande banco de dados, que inclui avaliações do comportamento dos usuários durante os encontros, que também servem para calibrar o sistema. Entusiasmado, Francisco argumenta que mesmo se o encontro/relacionamento sugerido não der certo, o sofrimento será menor, pois o programa consegue prever o tempo de duração da relação, evitando assim investimentos afetivos desnecessários.

As vinhetas acima são baseadas no início da relação entre os protagonistas e a tecnologia nos episódios Arkangel e Hang the DJ - no programa, os nomes dos personagens são Marie, Sara, e Frank, oriundos da premiada série britânica Black Mirror, mas pergunto ao leitor: o quão distantes são de situações vividas no cotidiano contemporâneo? Mais adiante neste artigo trarei um pouco do seguimento destes episódios.


2) O CENÁRIO DE BLACK MIRROR

Black Mirror é uma série antológica de ficção científica, com substancial dose de suspense psicológico, centrada na sociedade contemporânea e nas consequências inesperadas do uso das novas tecnologias. As até agora cinco temporadas apresentam histórias em um presente alternativo (diferente apenas pela inclusão da tecnologia abordada) ou em um futuro próximo. Sobre o conteúdo e a estrutura de Black Mirror , Charlie Brooker, criador da série, diz: "cada episódio tem um elenco diferente, um cenário diferente, até mesmo uma realidade diferente, mas todos tratam da forma que vivemos agora - e da forma que podemos estar vivendo daqui a 10 minutos se formos desastrados".

Assisti o primeiro episódio desta série quando estava em férias com um grupo de amigos e recordo do seu impacto. Assim como a maioria dos que assistiram, precisei de um tempo para digeri-lo. A inquietação que a série causa é mesmo digna de reflexão.

Apesar de Black Mirror ser classificado como um programa de ficção científica, a inquietação que provoca não é proveniente de uma narrativa que utiliza os riscos de uma tecnologia com pensamento próprio, como no clássico 2001, uma Odisseia no espaço, de Stanley Kubrick; ou da tecnologia criando tecnologia, narrativa bastante comum em filmes de ficção científica dos anos 80 e 90 - onde o mundo passava a ser governado por robôs que se rebelaram contra a espécie humana. O foco essencial é a relação do homem com a tecnologia e os potenciais desfechos desta interação. Bom, como a tecnologia é criada pelo homem para o homem, seja por necessidade ou por desejo, temos o humano e a sua forma de se relacionar com o novo poderio tecnológico como a base temática da série. A frase de Brooker é provocativa e toca na ferida: "... mas todos tratam da forma que vivemos agora - e da forma que podemos estar vivendo daqui a 10 minutos se formos desastrados". Lembro aqui da escultura Self Made Man, obra mais conhecida da artista Bobbie Carlyle que descreve um homem lapidando a si mesmo para fora da pedra bruta. Esculpe a si mesmo e o seu futuro. As tecnologias em Black Mirror fazem parte da es(cultura), mas é o humano que decide os desfechos da série. Dentro deste cenário, algumas perguntas são dignas de reflexão: O que no humano pode influenciar este desfecho, ou nas palavras de Brooker: por onde poderíamos ser "desastrados"? E por que a série inquieta tanto?

Para tentar responder a estas perguntas e refletir sobre o que o diretor nos comunica, penso ser necessário olhar para a série como um todo, mas também aprofundar nos episódios com os temas mais frequentes. Usando como norte a frase de Brooker (acima), e como bússola conceitos psicanalíticos de Freud, Meltzer, Bion e Green, passearemos por episódios e vinhetas que entendo serem simbólicos para sentir e esboçar compreensões sobre Black Mirror.


3) ESPELHO, ESPELHO MEU... EXISTE ALGUÉM MAIS BELO, FELIZ E PODEROSO DO QUE EU?

Quando Freud descreveu os princípios que regem o funcionamento psíquico pela primeira vez1, introduziu o principio do prazer e o principio da realidade. O objetivo do primeiro era proporcionar prazer e evitar o desprazer, sem se preocupar com regras ou limites; enquanto o segundo visava as limitações e restrições necessárias para uma adaptação à realidade externa. A série explora esta dualidade.

Em Black Mirror, muitos dos episódios começam com uma interação funcional entre homem e tecnologia, em um cenário minimalista e sofisticado. Com o novo poderio tecnológico, os personagens parecem ter a vida facilitada, e com uma suposta ausência da necessidade de entrar em contato com "antigas" situações causadoras de sofrimento e angústia. Bom, isto até o momento em que a realidade se impõe. A narrativa do humano essencialmente poderoso, sem sofrimento e sem limitações é quebrada (a abertura da série fornece o spoiller, ao mostrar uma tela em tensão até o seu rompimento).

O retorno da impotência e do sofrimento (que na verdade nunca estiveram ausentes) lembra os escritos de Freud em O estranho2, onde o autor descreve sentimentos familiares para a vida psíquica, mas que estavam recalcados. O sentimento de estranheza apresenta-se como a sensação angustiante de algo que vai revelar-se de maneira iminente (não por acaso, este sentimento costuma ser explorado na literatura e no cinema para manter a atenção do leitor/expectador), enquanto o retorno do que deveria ter permanecido oculto comumente produz sensação de confusão, terror e morte no indivíduo. Mijolla3 acrescenta: "Porém, mais do que uma interdição no sentido superegóico, esta transposição diz respeito à identidade do sujeito e refere-se simultaneamente ao limite entre o interior e o exterior, entre passado, presente e futuro, e entre a diferença vida/morte." O espelho de Black Mirror utiliza o mal-estar causado pela ruptura na ilusão de um reflexo artificialmente tranquilo e pelo retorno do recalcado como um dos seus principais personagens. Penso que parte do impacto que a série gera no telespectador tem influência deste mecanismo. Dentro disso, embora o título-provocação deste tópico seja baseado na conhecida pergunta que a bruxa da Branca de Neve faz ao espelho mágico, outra relação com um espelho se faz necessário destacar: a narrada em O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde.

Entendo que há outros fatores que se juntam ao sentimento de estranheza. A série apresenta com muita competência a fragilidade e vulnerabilidade do humano frente às novas possibilidades a partir da tecnologia, e o impacto disto no momento de decidir "os próximos 10 minutos". Além disso, a série toca na ferida sobre a nossa dificuldade para modificar - e muitas vezes até para enxergar - o cenário que já estamos vivendo a partir do uso das novas tecnologias. Vamos aprofundar estes pontos.


4) O VOO NOTURNO DA MARIPOSA


"Posso resistir a tudo, menos às tentações"
(Oscar Wilde, 1895)


Já assistimos insetos noturnos voando em volta de uma fonte luminosa sem conseguir mudar a rota. Este estranho fenômeno tem origem no tipo de orientação utilizado por estes insetos para guiarem o seu voo. Na escuridão, os insetos noturnos se orientam pela luz da lua. Como a lua está longe, a distância percorrida pelo inseto não modifica o seu ângulo em relação a ela. Quando há uma fonte luminosa mais intensa e mais próxima, os insetos acabam atraídos por ela, mas diferentemente do voo em relação à distante lua, o ângulo em relação à fonte de luz modifica bastante. "Para mantê-lo constante, como faz em relação à lua, o inseto precisa corrigir sua rota de voo a certos intervalos. Por isso, ele voa em espirais cada vez menores até colidir com a fonte". O fenômeno é explicado pela entomologista Francisca Carolina do Val, do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo. Geralmente são as mariposas, besouros, formigas aladas e alguns mosquitos, entre outros, as vítimas ideais desse tipo de armadilha.

Uma das chamadas para a terceira temporada de Black Mirror apresenta um bebê com uma chupeta na boca, sentado em um ambiente escuro, onde a única luz presente vem de um aparelho de tela, que se encontra em seu colo. Na imagem, o bebê olha para a luz que vem do aparelho. Penso que o lado da nossa relação com a tecnologia mostrado na série apresenta algumas semelhanças com a relação dos insetos com a luz artificial e, muitas vezes, também com a nossa relação com a tecnologia fora de Black Mirror. A luz que nos é atrativa, e que em um primeiro momento dá suporte a uma ilusão de trajeto facilitado, acaba por confundir e, para piorar, dificultar o retorno para a rota da realidade. Nisto, há um importante ponto complementar: a luz que atrai não é a mesma para todas as pessoas. Uma mesma tecnologia (ou um tipo de uso desta tecnologia) não é útil e, principalmente, não é sedutora para todas as pessoas. Além disso, mesmo para os propensos, há momentos de maior vulnerabilidade psíquica para a promessa de uma realidade menos sofrida.

Freud, em O mal-estar na civilização4, descreve o que considera as três principais causas de sofrimento para o ser humano: I) Nosso corpo, condenado à decadência e dissolução, II) Mundo externo, que pode voltar-se contra nós e III) Nossos relacionamentos, possivelmente a causa mais penosa. Charlie Brooker parece concordar com Freud. As três principais causas de sofrimento, segundo Freud, estão na motivação para o desenvolvimento da tecnologia e, principalmente, para o tipo de uso da tecnologia mostrado em Black Mirror. Cada tecnologia na série foi desenvolvida por alguma razão. Satisfaz algum(a) desejo/necessidade do ser humano, ou pelo menos a de um grupo. O tema mais prevalente na série vai ao encontro da causa III, de Freud: é a criação ou o uso da tecnologia para diminuir/abolir o sofrimento inerente às relações. Veremos abaixo alguns exemplos.

Em Arkangel, um dos episódios que trago uma possível versão contemporânea no início deste artigo, Marie que já se mostrava uma mãe preocupada com a perda da filha, após perdê-la no parque, enxerga no sistema de controle parental um alento para a sua angústia. Rapidamente passa a usar todos os opcionais do software. Controla a filha, desde a vigilância na brincadeira de esconde-esconde até o nível de estímulos estressantes experimentados. Como consequência, Sarah cresce sem a oportunidade de entrar em contato com as suas emoções e com as vivências naturais para a sua idade. No fim deste episódio, ironicamente, o desfecho final é o grande temor que Marie tentara evitar em seu início. A perda do objeto. A perda da filha, agora adolescente, ocorre não através da morte, mas em uma fuga de casa após ter novamente a sua individuação invadida. Antes de ir embora, a filha agride a mãe com o tablet do sistema Arkangel. Marie termina o episódio sozinha, ou apenas acompanhada da tecnologia. Um final comum em Black Mirror.

No episódio Toda a sua história, da primeira temporada, o software que se oferece como um facilitador é uma espécie de implante, em forma de grão, capaz de gravar e filmar tudo o que o indivíduo enxergava e escuta, oferecendo aos usuários a possibilidade de rever as cenas gravadas, inclusive juntamente com outras pessoas - quando projetadas em uma tela. O episódio inicia com Liam, o protagonista, em uma entrevista de emprego. Logo após o término da entrevista, Liam revê a entrevista na tentativa de descobrir o que se passa na mente dos entrevistadores, principalmente a cena onde um dos entrevistadores lhe diz: "esperamos ansiosamente revê-lo", a qual sente como uma frase enigmática e falsa.

A seguir, Liam vai a uma festa com uma turma de antigos amigos de sua esposa (Ffion) e começa a ficar incomodado com prováveis situações desconhecidas para ele na vida de sua esposa, principalmente com o nível de intimidade vivido entre Ffion e Jonas, um dos presentes. Chegando em casa, Liam inicia uma série de perguntas, que mesmo respondidas não satisfazem o desejo de saber e desconfiança de Liam, que só aumentam. O protagonista então vai à casa de Jonas e o força a mostrar as suas memórias. Depois, após descobrir que eles tiveram relações sexuais inclusive no período em que Ffion engravidou, faz o mesmo com a esposa. Há uma frase de Liam que considero importante: "Sabe quando você suspeita de algo, é sempre melhor quando acaba sendo verdade. É como se tivesse um dente estragado por anos e estou finalmente colocando a língua lá e tirando todas as coisas podres". O episódio termina com Liam - sozinho - revendo antigas gravações quando estava com a sua família. Até que decide por arrancar o "grão". Independente da infidelidade de sua esposa, o episódio narra a busca incessante de um indivíduo para conhecer, como o título enuncia, tudo sobre o outro. Custe o que custar.

Entendo que um significativo ponto sedutor no tipo de uso do "grão" feito por Liam pode ser levantado a partir da obra de Meltzer e Bion. O autor descreve um conflito fundamental nas relações íntimas do ser humano, chamado por ele de "conflito estético", que seria ainda mais importante que os associados com a separação. Esse conflito, relacionado ao mistério no interior do objeto, se baseia na diferença entre a percepção do outro pelo seu exterior, disponível em todos os sentidos, e o seu interior incognoscível, o qual precisa ser construído através da imaginação criativa5. O impacto dessa situação gera um vínculo que por um lado, conjuga amor, ódio e desejo de conhecer e, por outro, emoções anti-vínculos intensas em todos os sentidos possíveis6. Quando o interior inacessível não é tolerado, podem surgir defesas contra a dor da incerteza, levando a desinvestimentos na relação ou mesmo a fantasias onipotentes de intrusão.

A frase de Liam sobre a sua suposta busca da verdade esconde uma intensa força anti-vínculo, onde o "dente podre" a ser excluido é o outro e o seu mistério. Porém, mesmo com o aparelho e o acesso das imagens gravadas, o saber tudo sobre o outro não é uma possibilidade. O interior do outro, continuava incognoscível. A verdade que Liam pensa ter encontrado, é vista apenas em parte. Há um fato interessante neste ponto: quando o aparelho é utilizado, o usuário fica com os olhos leitosos e esbranquiçados, similar ao que ocorre em alguns tipos de cegueira. Bion7,8, cita a história de Édipo - que sofre a cegueira e o exílio - para descrever uma curiosidade a qualquer custo, intrusiva e destrutiva, a qual teria entre os fatores constituintes, um primitivo sentimento de exclusão. O indivíduo teria predisposição a um estado mental pouco tolerante à emoção e ao não saber, sofrendo intensos ataques aos elos de ligação.

Na luta contra a força cínica dos vínculos negativos esta capacidade de tolerar a incerteza, o não-saber, a "nuvem de desconhecimento", é constantemente solicitada na paixão das relações íntimas, e se situa no centro da questão do conflito estético5. Em Hang the DJ - episódio que também esboço uma versão possível nos dias de hoje, no início do artigo - Black Mirror apresenta uma tecnologia que promete facilitar as relações e encontrar a "alma gêmea", sem ter que lidar com o conflito estético. Logo no início, os protagonistas conversam sobre o tema: "Devia ser loucura antes do "sistema" existir: as pessoas tinham que cuidar dos relacionamentos sozinhas... Decidir com quem ficar entre tantas opções... E se as coisas ficassem ruins, teriam que elas mesmas terminar a relação. Que bom que temos tudo definido. É muito mais simples... mas também é um pouco esquisito". No episódio, o "sistema" indicava com quem seria o encontro, o tempo da relação, e até a comida que cada um teria nas refeições. Todo o espaço para as incertezas e o seu sabor - tanto para o prazer ou desprazer - eram controlados.

O fim do episódio, onde ocorre um "rompimento" com o "sistema", é algo ensaiado desde o início da narrativa. Os protagonistas demonstram que muitas das escolhas do software lhe são impostas, sugerindo pouco espaço para a intuição e criatividade. O próprio nome do episódio, Hang the DJ, algo como "estrangule o DJ" é uma referência a música Panic da banda The Smiths, que toca no fim do episódio, que descreve o incomodo de alguém com o tipo de música tocado por toda Londres, a qual "não lhe diz nada". Em uma estrofe a letra da música questiona: "Será que a vida poderia ser sã novamente?...". Para em seguida completar: "Enforquem o DJ". Black Mirror questiona a imposição e a influência da tecnologia em nossas vidas, sugerindo o rompimento, ironicamente em um dos mais otimistas episódios. No episódio, este movimento do casal era esperado e fazia parte do algoritmo do software. Hang the DJ é uma ilha de otimismo no universo de Black Mirror. Como dito acima, na imensa maioria dos episódios, os protagonistas terminam em um cenário de solidão e vazio.

Além do foco no uso problemático pelo indivíduo, Black Mirror também apresenta o Estado usando a tecnologia de forma sombria, como acontece, por exemplo, em "Engenharia Reversa". Neste episódio, um pelotão de soldados é chamado para auxiliar uma aldeia de camponeses, recentemente atacada por "Baratas" em busca de comida. Há um grande temor de contaminação pelas graves doenças desses seres. Logo, os orgulhosos e destemidos soldados encontram um grupo de "Baratas" e os humanoides, que parecem com zumbis grunhindo, são revelados aos telespectadores. Um soldado consegue abater duas "Baratas", porém uma delas consegue disparar um estímulo luminoso que começa a trazer algumas alterações na sua percepção. Gradualmente, ele começa a sentir coisas que já não sentia mais, como o cheiro da grama. Lembro novamente do trabalho "O estranho", de Freud, que descreve a associação de algo do exterior com percepções internas primitivas e recalcadas2. Na série, o implante do soldado estava danificado. Psicanaliticamente, após o contato com algo do exterior que foi associado com o interno, o conteúdo recalcado estava propenso a retornar. Na segunda missão, com o soldado mais capaz de perceber a realidade, o conteúdo é revelado: as ditas "Baratas" eram na realidade seres humanos. O dispositivo implantado, chamado de "máscara", tinha a função de alterar a percepção dos soldados para que eles não percebessem a realidade que lhes causava sofrimento. Após a quebra do espelho, o conteúdo recalcado retornara, causando um impacto de realidade no soldado. O uso da tecnologia tem o objetivo de resolver um "problema" publicado em livro de general de brigada americano, que observou que 75% dos soldados não disparavam os seus rifles na Segunda Guerra Mundial, mesmo sobre ameaça. Além disso, havia outra questão a ser resolvida: os que atiravam retornavam para o país com graves traumas de guerra. Após a revelação sobre a "máscara", há uma conversa entre o soldado com uma espécie de terapeuta do exército. Questionado, o terapeuta relata o "problema" do não uso da "máscara" e confronta o soldado lhe dizendo que se sua mente não tivesse aceito o dispositivo, ela não teria êxito. Sugere que em todos os soldados que aceitaram a "máscara" haveria uma vulnerabilidade para o recalque - no caso, para desmentir as características "Baratas" em si mesmo, ou forcluir as características semelhantes entre eles e seus "inimigos". Pensando dentro do trabalho de Freud2, o uso da "máscara" faria com que os soldados percebessem os indivíduos "Baratas" como uma espécie de duplo - um "contrário" do Eu - em um funcionamento dentro do narcisismo primário que inclui a desmentida da potência da morte (o espelho de Black Mirror lembra novamente O Retrato de Dorian Gray, onde todo o mortífero desmentido no personagem estava na imagem do retrato - não por acaso, oculto no sótão). No diálogo derradeiro, o terapeuta oferece ao soldado duas possibilidades: manter as suas percepções, porém ficando preso na cadeia, ou retornar ao uso do dispositivo, situação onde sua memória sobre os acontecimentos recentes seria apagada. O episódio termina com o soldado sendo deixado em frente a uma casa vazia e abandonada, em uma cena que transborda miséria de relação. Na visão do soldado, a ilusão de reconhecimento dos pares e de ter chegado a um lar, onde uma esposa amorosa e sensual o aguarda.

Procurei acima trazer alguns exemplos de como a série apresenta o conflito de cada indivíduo na relação com a tecnologia, e de como noites de escuridão interna podem facilitar um uso com desfechos problemáticos. Antes de terminar este tópico, gostaria de complementar a imagem de divulgação de Black Mirror onde é mostrada uma criança acompanhada de um tablet, descrita com detalhes acima. Ao lado da cena, há uma frase: "The future is bright." Algo como "O futuro é brilhante", em português. Seria este futuro um convite para as mariposas em uma noite escura de inverno?


5) E QUANTO AOS PRÓXIMOS DEZ MINUTOS? SEREMOS DESASTRADOS?

Iniciei o tópico anterior citando o voo noturno da mariposa e o seu encontro com a luz artificial. Nesta situação, na maioria das vezes, as mariposas acabam morrendo sem conseguir sair da armadilha. No caso dos humanos em Black Mirror - e também fora dele - o uso destrutivo da tecnologia pode ter várias formas e desfechos, mas entendo que a mais relevante e prevalente faceta de vulnerabilidade descrita na série, a qual procurei aprofundar, tem origem nas dificuldades inerentes às relações humanas. A tecnologia que examinamos seduz através da promessa de que irá evitar ou diminuir as incertezas e as dificuldades inerentes às relações e a vida. Apesar da promessa de um caminho mais fácil, os personagens acabam como as mariposas: os desfechos envolvendo solidão ou isolamento gradual e crescente dos personagens são frequentes.

A narrativa da ficção vai ao encontro das evidências científicas atuais que associam o uso problemático das novas tecnologias com sentimento de solidão9,10. O crescimento do número de pessoas que se isolam em bunkers tecnológicos a ponto de lembrarem funcionamentos gravíssimos como os Hikikomori 11,12, também tem sido motivo de estudo e preocupação13. Outro dado que corrobora com a associação entre as novas tecnologias e um maior nível de isolamento psíquico (ou menor nível de relacionamento íntimo) são os dados de que os jovens de países com nível avançado de tecnologia estão com menor interesse para relacionamentos sexuais13,14,15, ao contrário do que se pensava que ocorreria com a maior liberdade sexual e com as facilitações proporcionadas pela tecnologia.

Penso que alguns dos conceitos de Freud e Green complementam o que foi abordado até aqui e podem auxiliar na compreensão dos cenários descritos. O primeiro deles é o Princípio da Constância, conceito da base da teoria econômica desde os primeiros trabalhos de Freud, que sugere que o aparelho psíquico tende a manter a quantidade de excitação que contém em um nível tão baixo ou, pelo menos, tão constante quanto possível16. A constância seria obtida por um lado pela descarga da energia já presente e, por outro, pela evitação do que poderia aumentar a quantidade de excitação e pela defesa contra esse aumento17.

A partir deste trabalho, Freud conceitua as pulsões em uma dualidade entre duas pulsões, a de vida e a de morte16. A pulsão de morte, ou Thanatos, teria como meta o retorno ao estado anterior e combateria o que aumentasse o estado de tensão. Agiria silenciosamente com uma tendência para o zero, na busca pelo retorno ao estado de repouso absoluto18. A pulsão de vida, designada pelo termo Eros, buscaria o estabelecimento e a manutenção de formas mais diferenciadas e mais organizadas, e mesmo o aumento das diferenças de nível energético entre o indivíduo e o meio - tendo como princípio subjacente um princípio de ligação19. Ao aceitar o aumento da tensão, a pulsão de vida se compromete a também aceitar a dificuldade inerente ao mistério do outro e as incertezas da vida, que fogem ao nosso controle e atacam a nossa onipotência narcísica.

A partir das ideias de Freud sobre as pulsões16,19, Green propõe que a meta essencial da pulsão de vida é a função objetalizante, enquanto que a da pulsão de morte é a de realizar ao máximo uma função desobjetalizante através do desligamento20. Na opinião de Green, é desta maneira que se explica logicamente na teoria freudiana a passagem da oposição libido objetal-libido narcisista para a última teoria das pulsões: Eros e pulsões de destruição. Isto o levou a defender a hipótese de um narcisismo negativo como aspiração ao nível zero, expressão de uma função desobjetalizante que não se contentaria em recair sobre os objetos ou seus substitutos, mas sobre o próprio processo objetalizante. Dentro disso, a manifestação própria da destrutividade da pulsão de morte é o desinvestimento20. Se Freud e Green estiverem corretos, há dentro de nós uma força que busca o caminho mais fácil, que evita o que pode trazer sofrimento, mesmo que este caminho seja pobre em sabor. Uma força com tendência ao desinvestimento no outro, e/ou no próprio viver. Penso que os Hikikomoris e sua vida dentro um bunker narcísisco - com importante ajuda da tecnologia - são exemplos dramáticos do predomínio deste funcionamento observáveis fora dos episódios da série.

Em Black Mirror, a tecnologia também está disponível para servir Eros e a função objetalizante, porém, a função desobjetalizante, silenciosamente, acaba por vincular-se ao tipo de uso da tecnologia e torna-se protagonista. Não por acaso, o nível de intimidade e de investimento no objeto mostrado ao fim dos episódios costuma ser miserável. Situações de dor e fragilidade parecem colaborar para um maior risco individual ou de toda uma sociedade usar as tecnologias, súbita ou gradualmente, a serviço da pulsão de morte/função desobjetalizante. Black Mirror também impacta porque este tipo de uso, os seus motivos, e o seu custo são obscuros e nem sempre identificados em um primeiro momento.

Freud4 pontua que uma das maneiras de diminuirmos o nosso sofrimento é modificando o meio em que vivemos. O desenvolvimento de novas tecnologias estão diretamente ligados a este desejo e há progressos neste sentido, dentro de um uso associado a função objetalizante. Porém, o uso da tecnologia a partir da ilusão de um não sofrer e de um não sentir, acaba a serviço da função desobjetalizante e do narcisismo negativo, afastando o usuário da aceitação da alteridade do outro, do limite da realidade e da morte, revelando-se destrutivo logo ali na frente. É o que entendo da frase de Brooker sobre os "próximos dez minutos" a partir de um uso desastrado.

Black Mirror nos convida a olhar para o nosso reflexo sombrio na relação com a tecnologia, aponta para a fragilidade humana frente a dor narcísica e alerta para os riscos de construirmos um futuro trágico em nível individual e/ou como civilização. Novas tecnologias, antigos (e primitivos) sentimentos humanos. A frase: "Por trás de movimentos aparentes de mudança e progresso, pode existir apenas o antigo objetivo conservador de retornar ao estado anterior das coisas" foi escrita por Freud, há cerca de cem anos16. Black Mirror parece concordar com ela.


REFERÊNCIAS

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18. Mijolla, A. A pulsão de morte. In: Dicionário Internacional de Psicanálise. Rio de Janeiro: Imago; 2005. 19. Freud, S. Esboço de psicanálise. In: Edição Standard Brasileira das Obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago; 1996, v23.

20. Green, A. A pulsão de morte, narcisismo negativo, função desobjetalzante. In: O trabalho do negativo. Porto Alegre: Artmed; 2010.










aCentro de Estudos Luis Guedes, Hospital de Clínicas de Porto Alegre - Porto Alegre/RS - Brasil
bSociedade Psicanalítica de Porto Alegre, Instituto de Psicanálise - Porto Alegre/RS - Brasil
cGrupo de Estudos sobre Adições Tecnológicas, Geat - Porto Alegre/RS - Brasil

Autor correspondente

Rafael Gomes Karam
rafaelgkaram@gmail.com

Submetido em: 21/02/2021
Aceito em: 23/02/2021

Contribuições: Rafael Gomes Karam - Conceitualização, Metodologia, Redação - Preparação do original, Redação - Revisão e Edição.

 

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