Rev. bras. psicoter. 2021; 23(3):195-207
Zatti C, Semensato MR, Ramos-Lima LF, Waikamp V, Freitas LHM. Trauma infantil e manifestações histéricas na atualidade: uma revisão da literatura. Rev. bras. psicoter. 2021;23(3):195-207
Revisão Narrativa
Trauma infantil e manifestações histéricas na atualidade: uma revisão da literatura
Child trauma and hysterical manifestations today: a literature review
Trauma infantil y manifestaciones histéricas hoy: una revisión de la literatura
Cleonice Zattia; Márcia Rejane Semensatob; Luis Francisco Ramos-Limaa; Vitoria Waikampa; Lucia Helena Machado Freitasa
Resumo
Abstract
Resumen
INTRODUÇÃO
A histeria foi compreendida de muitas formas ao longo dos séculos, e vem sendo objeto de estudo desde os primórdios da medicina. A denominação de histeria foi utilizada por Hipócrates (460-377 a.C.) e deriva da palavra grega hystera, que significa matriz, útero ou o "lugar onde algo se gera". Na época, supunha-se que esse órgão era a causa da histeria. Nogueira1 explica que Hipócrates relacionava a histeria a migrações uterinas e ao represamento de substâncias humorais, que, como consequência da abstinência sexual, produziriam efeitos tóxicos. A "Teoria do Útero Errante", a Wandering Womb, foi mencionada tanto por Platão quanto por Hipócrates em Corpus Hippocraticum. Essa teoria, que persistiu na Europa por muitos séculos, baseou-se na hipótese de que a sintomatologia derivava do movimento do órgão pelo corpo. Por exemplo, se o útero se movesse, poderia esmagar os pulmões e gerar asfixia; se o movimento fosse próximo ao coração, haveria sintomas de palpitação, e assim sucessivamente1.
Desde os primórdios, a histeria foi considerada essencialmente uma questão feminina, inclusive na psicopatologia, seja por mulheres apresentarem mais frequentemente os sintomas, seja pelo fato de possuírem um útero. Com efeito, o feminino intriga a psicanálise por construir sua satisfação para além da "alegria fálica". Os sintomas histéricos foram a porta de entrada para a "descoberta" do inconsciente, o que levou Freud ao desenvolvimento da psicanálise2. Ele chegou a considerar o compromisso feminino com a família algo essencial e ao mesmo tempo perigoso para a civilização, pois não conseguia desvendar os mistérios desse gênero3.
No entanto, considera-se hoje que a histeria não é atribuída exclusivamente a mulheres. De acordo com Ceccarelli4, boa parte da dificuldade, inclusive dos psicanalistas, em se falar da histeria masculina, e, em sentido mais amplo, da sexualidade masculina, se deve à resistência em questionar o modelo falocêntrico. Freud chegou a apontar uma das principais dificuldades dentro da histeria masculina: a castração. Essa característica amplia consideravelmente o arcabouço teórico sobre o fenômeno. A sedução seria o sintoma privilegiado dessa posição subjetiva: importa é receber o amor de todos - não se pode renunciar a ninguém. Nesse sentido, um dos aspectos principais da histeria masculina é a insatisfação5.
Em "A questão da análise leiga", Freud6 referiu que a vida sexual das mulheres adultas era um continente misterioso para a psicologia. Assim, a histeria toma a forma de uma "doença misteriosa", ao longo dos séculos mascarando vivências precoces traumáticas que nos permitiriam entender o sofrimento dos pacientes em tratamento7.
Em torno de 1880, nas consultas médicas para as pacientes histéricas eram realizadas massagens pélvicas. De fato, Joseph Mortimer Granville patenteou o primeiro vibrador eletromecânico com forma fálica como um instrumento terapêutico para efetuar a "Massagem pélvica"7. Mais tarde, passou-se a comercializálo ao público em um contexto exclusivamente médico. No final desse período, inúmeras experiências de "paroxismo histérico" foram investigadas, porém os médicos perceberam que a ação não curava a histeria. Esta foi a primeira "doença" para a qual a medicina não encontrou uma explicação7.
Desde a terceira edição do DSM (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders) a histeria não consta enquanto categoria diagnóstica. Em 1994, na classificação do DSM-IV, o termo "histeria" foi diluído entre os Transtornos Somatoformes, que abrangem os Transtornos Conversivos8. Em 2013, no DSM-V, os Transtornos Somatoformes com presença de sintoma clássico da histeria ("histeria de Briquet") foram denominados Sintomas Somáticos e Transtornos Relacionados9. No entanto, os critérios desse manual diagnóstico para rastreio do "transtorno da personalidade histriônica" não contemplam a personalidade histérica. Esses critérios histriônicos se aproximam dos critérios para transtornos borderline ou narcisista, dificultando a identificação da histeria clássica2.
Os sintomas mais típicos dos quadros histéricos são as conversões. Em termos gerais, referem-se à conversão de problemas emocionais em doenças físicas, mais especificamente, a derivação da excitação do plano psíquico ao plano somático10. Procurou-se classificar esses sintomas em três grupos: (1) memórias de intensidade alucinatória; (2) motor (ataques de choro, risadas, convulsões); (3) propósitos, tendências (inclinação para fazer algo), apatia (deficiências, por exemplo, para comer, andar)10. Entendem-se esses sintomas como um fenômeno complexo, os quais possuem um caráter em comum: o mecanismo complexo de manifestações histéricas é de natureza psicológica, isto é, os distúrbios na histeria processam na esfera psíquica e é o mecanismo psíquico que traz todos os sintomas histéricos em comum11.
Independentemente da classificação técnica, consideramos que os desafios e as condições clínicas relacionadas à histeria ainda permanecem presentes na área médica e psicológica com pontos de dúvidas e buscando uma compreensão sobre suas manifestações7,12,13. Por outro lado, compreende-se que a histeria desafia a prática clínica por apresentar um discurso subversivo cuja característica transversal é colocar o "eu" através do corpo que se expressa, ou seja, uma subjetividade de sintomas "incorporada" no físico13,14. Uma cachoeira de sintomas desaguando em um corpo.
O corpo que se expressa por meio de sintomas pode conter marcas traumáticas, derivadas de um excesso, que o psíquico não consegue suportar15. Na histeria, a linguagem do corpo é crucial, pois o traumático desorganiza a capacidade de pensamento verbal12. Freud, desde o início da década de 1890, buscou compreender a causa dos sintomas histéricos não mais em uma região anatômica, mas na narrativa histórica e simbólica do sujeito13.
No curso do desenvolvimento humano, podem ocorrer eventos traumáticos que excedem a capacidade infantil de compreensão, e desencadeiam marcas dolorosas no aparelho psíquico. Tais experiências traumáticas são continuamente revividas por meio de memórias e, dependendo da intensidade, podem tornar-se avassaladoras na vida de uma pessoa, causando desordens mentais16,17. As crianças que sofreram exposição crônica à violência, maus-tratos e negligência podem desenvolver sintomatologia e/ou transtornos mentais ainda na infância, ou posteriormente na adultez18,19.
À medida que o termo "histeria" passa a ser excluído dos manuais de psiquiatria, como no DSM, pessoas com sofrimento e sintomas característicos da histeria são muitas vezes rotuladas como "simuladoras", dramáticas, cuja queixa existiria "só para ter atenção". Essa descrição é bastante frequente, por exemplo, nos serviços de emergências hospitalares.
Assim sendo, o presente estudo parte das seguintes interrogações: como são as manifestações histéricas na atualidade? Qual a compreensão sobre a histeria na literatura da área ao longo do tempo? Essas manifestações histéricas, que pareciam tão abundantes nos relatos de casos clínicos desde a fundação da psicanálise, agora parecem ter desaparecido diante de tantos "novos" quadros psicopatológicos. Seriam elas pouco visíveis na contemporaneidade ou mascaradas por uma sociedade em que o "normal" é o exibicionismo? Ou ainda, seriam as incompatibilidades de critérios diagnósticos? A fim de contemplar esses questionamentos, será apresentada teoricamente a questão histórica da compreensão da histeria, com o intuito de contextualizar este tema na atualidade. Assim, realizou-se uma revisão narrativa das publicações atuais acerca da histeria e vivências traumáticas na infância, objetivando contribuir para futuras pesquisas e/ou intervenções em psicoterapias.
MÉTODO
Trata-se de um estudo de revisão narrativa da literatura, por considerar a inclusão dos trabalhos a partir de análise crítica dos autores. Os seguintes descritores foram utilizados: "Histeria", "Trauma infantil", "Transtorno mental". Os termos foram pesquisados de modo combinado, delimitando-se os estudos dos últimos 6 anos (2013-2019). Foram incluídos no estudo os artigos que abordavam o tema da histeria; os excluídos foram aqueles que se distanciaram ou não tratavam do assunto. As bases de dados pesquisadas foram a Bireme e a Dialnet. Os seguintes descritores de busca foram utilizados: (tw:(histeria)) AND (tw:(trauma infantil)) AND (tw:(transtorno mental)). A pesquisa foi realizada no mês de dezembro de 2019.
RESULTADOS
Na busca realizada nas bases de dados, foram encontrados 106 estudos (37 estudos da base Bireme e 69 estudos da base Dialnet). Foram incluídos no estudo 12 artigos, após revisão do texto completo. Verificamos inicialmente a prevalência dos trabalhos sobre o tema no período pesquisado; nota-se uma diminuição dos artigos publicados sobre o tema nos últimos três anos. Em 2019, apenas duas publicações foram encontradas com esses descritores. A Figura 1 apresenta a distribuição anual dos artigos no período de pesquisa.
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