ISSN 1516-8530 Versão Impressa
ISSN 2318-0404 Versão Online

Revista Brasileira de Psicoteratia

Submissão Online Revisar Artigo

Rev. bras. psicoter. 2021; 23(3):165-175



Revisão Narrativa

Privacidade e confidencialidade das informações clínicas em saúde mental: velhos desafios em um novo contexto

Privacy and confidentiality of clinical information in mental health: old challenges in a new context

Privacidad y confidencialidad de la información clínica en salud mental: antiguos desafíos en um nuevo contexto

Ana Cristina Tietzmanna; Jane Iandora Heringera; Márcia Santana Fernandesb; José Roberto Goldimb

Resumo

A alta ocorrência de transtornos mentais nas populações, o acesso e qualificação da assistência em saúde mental são prioridades e um grande desafio em saúde pública há décadas. No contexto da pandemia de Covid-19, houve importante aumento das demandas por cuidados em saúde mental. Ao mesmo tempo, foi necessária a migração para atendimentos remotos e a rápida adaptação de pacientes e terapeutas às novas tecnologias da informação e comunicação (TIC). Este cenário traz à tona a importância dos cuidados e responsabilidades com as informações e dados pessoais obtidos na prática clínica. A complexidade aumenta quando levamos em conta os dados pessoais sensíveis e as vulnerabilidades inerentes ao campo da saúde mental, particularmente das psicoterapias. O presente artigo é uma revisão narrativa breve, tomando por base fontes teóricas utilizadas no campo da bioética e um material educativo sobre o uso responsável do prontuário eletrônico na saúde mental, discutindo aspectos relevantes para o momento atual. Apesar dos novos contextos e tecnologias, os direitos, deveres e valores envolvidos na relação terapêutica precisam continuar sendo observados e adequados à nova realidade. Como parte de uma reflexão bioética, devem levar em consideração as particularidades de cada caso, o respeito às pessoas e à sua vulnerabilidade, o respeito à autonomia dos pacientes para seu melhor benefício e precisa estar presente no cotidiano dos profissionais de saúde mental. A mudança da legislação, com a entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) torna esta reflexão ainda mais necessária.

Descritores: Privacidade; Confidencialidade; Saúde mental; Registros eletrônicos de saúde

Abstract

The high occurrence of mental disorders in populations, the access and the qualification of mental health care have been considered priorities and major challenges in public health for decades. In the context of the Covid-19 pandemic, there was an increase of demands for mental health care and, at the same time, a great need for remote care and an accelerated adaptation of patients and therapists to new digital communication technologies. This scenario highlights the importance of care and responsibilities with personal information and data obtained in clinical practice. The complexity increases when we take in consideration the sensitive personal data and vulnerabilities in the field of mental health, particularly psychotherapies. This work is a narrative review, based on theoretical sources used in the field of bioethics and educational material, discussing relevant aspects to the current moment. Despite the new context and technologies, the rights, ethical duties and values involved in the therapeutic relationship must be observed. As part of a bioethical reflection, must take in consideration the particularities of each case, respect people and their vulnerability, respect patients autonomy for their best benefit, as well as all the precautions related to security of different information. Those must always be daily present in the mental health professionals routine, mainly under the Brazilian General Data Protection Law (LGPD).

Keywords: Privacy; Confidentiality; Mental health; Electronic health records

Resumen

La alta ocurrencia de trastornos mentales en la población, el acceso y la calificación de la atención en salud mental se han considerado como prioridades y grandes desafíos en la salud pública. En el contexto de la pandemia Covid-19, se produjo un aumento de las demandas de atención en salud mental y, al mismo tiempo, una gran necesidad de atención remota y la adaptación acelerada de pacientes y terapeutas a las nuevas tecnologías de comunicación digital. Este escenario destaca la importancia del cuidado y las responsabilidades con la información y personales datos obtenidos en la práctica clínica. La complejidad aumenta cuando tenemos en cuenta los datos personales sensibles y las vulnerabilidades inherentes al campo de la salud mental, particularmente las psicoterapias. Este trabajo es una breve revisión narrativa, basada en fuentes teóricas utilizadas en el campo de la bioética y material educativo sobre el uso responsable de la historia clínica electrónica en salud mental, y discute aspectos relevantes para el momento actual. A pesar de los nuevos contextos y tecnologías, se deben respetar los derechos, deberes éticos y valores involucrados en la relación terapéutica. Como parte de una reflexión bioética, deben tener en cuenta las particularidades de cada caso, el respeto a las personas y su vulnerabilidad, el respeto a la autonomía de los pacientes para su mejor beneficio, así como todas las precauciones relacionadas con la seguridad de las distintas informaciones, deben estar siempre presentes en la jornada cotidiana de los profesionales de salud mental. Especialmente bajo la Ley General de Protección de Datos de Brasil (LGPD).

Descriptores: Privacidad; Confidencialidad; Salud mental; Registros electrónicos de salud

 

 

INTRODUÇÃO

A alta ocorrência de transtornos mentais nas populações, o acesso e a qualificação da assistência em saúde mental são considerados prioridades e desafios para a saúde pública há décadas1. No Brasil, diferentes estratégias têm sido utilizadas para levar estes cuidados às comunidades, com avanços e retrocessos. A cidade de Porto Alegre tem realizado este processo de reorganização da assistência em saúde mental nas últimas décadas2. Sendo um reconhecido centro formador de profissionais de saúde mental e de profissionais da Atenção Primária em Saúde, tem buscado desenvolver uma rede assistencial pública com equipes de atenção básica e equipes multidisciplinares especializadas distribuídas nas diferentes regiões da cidade, além da assistência psiquiátrica hospitalar, ainda altamente necessária3 , constituindo uma rede balanceada, preconizada na legislação e diretrizes internacionais4.

Para integrar e regular esta rede de serviços, houve a informatização dos registros no sistema público de saúde, no âmbito do município de Porto Alegre, o que trouxe novos desafios para os profissionais e gestores. A preocupação com a forma de registro nos prontuários eletrônicos dos dados referentes aos atendimentos psicoterápicos e clínicos, envolvendo pacientes vulneráveis atendidos nos serviços de saúde mental, motivou a criação de um material educativo sobre os cuidados e responsabilidades que devem envolver a proteção de informações pessoais sensíveis, que foi disponibilizado no site da Secretaria Municipal de Saúde5.

Ao longo de 2020 e 2021, no contexto da pandemia da Covid-19, os desafios envolvidos na proteção de dados pessoais e dados pessoais sensíveis foram alargados6. Além disso, no que concerne à saúde mental das populações, tem sido crescente o número de estudos avaliando tanto os efeitos neuropsiquiátricos diretos da infecção pelo SARS-Cov-2 quanto às consequências indiretas da pandemia sobre a saúde mental das pessoas, sejam idosos, adultos, crianças ou jovens. O desenvolvimento de transtornos mentais como Depressão e Transtorno de Estresse Pós-traumático (TEPT) em pacientes afetados pela Covid-19, a piora de doenças mentais pré-existentes, o aumento importante de sintomas ansiosos, depressivos e auto- lesivos, o aumento dos casos de violências domésticas e maus-tratos às crianças, em função do isolamento social, são exemplos das situações que aumentam as demandas por atenção à saúde mental7 .

Paralelamente, profissionais de saúde e pacientes foram obrigados a adaptarem-se à realidade, imposta a todos, na tentativa de manter tratamentos e dar assistência às pessoas afetadas. Tratamentos psicoterápicos no formato virtual, via telemedicina - que já vinham sendo testados com a utilização da internet e de tecnologias da informação e comunicação8 - ganharam mais espaço para a disseminação de intervenções em saúde mental.9,10 Além disso, novas pesquisas nesse campo estão sendo realizadas para a coleta de dados científicos sobre os possíveis impactos dos tratamentos psicoterápicos, no formato virtual, na saúde física e mental das pessoas. Tais estudos são relevantes para compreender a aplicação e o aprendizado adequado desse novo formato.11

Nas diferentes situações que podem surgir na clínica psiquiátrica e psicoterápica, além das questões deontológicas, é importante também realizar uma reflexão bioética sobre os casos e situações. A Bioética, percebida como um campo interdisciplinar, permite que diferentes disciplinas se conectem, e múltiplos referenciais éticos, morais e legais possam ser utilizados de forma coerente, visando uma decisão mais adequada para cada situação ou problema em particular, mas mantendo uma coerência global, de acordo com o referencial teórico utilizado no presente texto, o Modelo de Bioética Complexa12.

O objetivo deste trabalho foi realizar uma breve revisão narrativa sobre os cuidados e deveres relativos à proteção de informações clínicas e sensíveis no campo da saúde mental, considerando aspectos peculiares no contexto da pandemia de Covid-19. Foram buscadas também outras fontes teóricas do campo da bioética e o material educativo previamente desenvolvido pelos autores sobre o assunto5.


O NOVO CONTEXTO DO ENCONTRO TERAPEUTA/PACIENTE

No Brasil, com o avanço da pandemia, a fim de viabilizar o acesso aos tratamentos de saúde pela população e garantir a segurança de pacientes e profissionais, houve a necessidade de rediscutir as ações de Telemedicina, em março de 2020. O Conselho Federal de Medicina (CFM) não autorizava esta possibilidade de atendimento por meio da Resolução CFM nº 1643 /2002. Por outro lado, o Conselho Federal de Psicologia já havia liberado esta prática em 2012, pela sua Resolução CFP nº11/2012.

O Ministério da Saúde questionou o CFM sobre a possibilidade de liberar este tipo de atendimento durante a pandemia da Covid-19. O CFM se manifestou, por meio do Ofício CFM nº 1756/2020 - COJUR, no sentido de permitir, em caráter excepcional a utilização da Telemedicina na atual situação sanitária.

Com base nesta liberação excepcional do CFM, o Ministério da Saúde do Brasil operacionalizou esta possibilidade na Portaria MS nº 467/2020. Este documento abordou a Telemedicina quanto a interação, mediada por tecnologia, entre médico e paciente durante esta Emergência em Saúde Pública.

A Portaria MS nº 467/2020 do Ministério da Saúde estabeleceu os tipos de ações de saúde permitidas, as formas de registro e as regras para emissão de prescrição e atestados eletrônicos. Enfatiza que deve haver registro em prontuário das TICs utilizadas e que elas devem garantir a integridade, a segurança e o sigilo das informações. Também deve constar nos registros que o paciente foi esclarecido sobre a modalidade de atendimento e deu seu consentimento verbal, na impossibilidade de dar o seu consentimento por escrito para a realização do atendimento remoto. É importante lembrar que as consultas remotas são atos profissionais e, como tais, regidos pelos códigos de ética vigentes de cada categoria profissional e pela legislação dos vários níveis federativos13.

Complementarmente a Portaria MS nº 467/2020, já havia a Resolução CFM 1.821/2007 estabelecido nove regras que devem ser observados nos sistemas de prontuário eletrônico: 1) garantir a integridade da informação e qualidade do serviço; 2) garantir a privacidade e a confidencialidade dos dados e informações armazenadas; 3) organizar bancos de dados seguros e confiáveis; 4) garantir a autenticidade dos dados e informações, na medida possibilidade; 5) auditar o sistema de segurança; 6) garantir a transmissão de dados e informações em segurança; 7) utilizar software certificado; 8) exigir digitalização de prontuários existentes em meio físico e 9) fazer cópia de segurança na medida da possibilidade14,15.

Os critérios estabelecidos pela Resolução CFM 1.821/2007, por sua vez, foram reforçados em nível legal, pela Lei 13.787/2018. A Lei, em seu artigo 2º, determina que o prontuário digitalizado deve assegurar a integridade, a autenticidade e a confidencialidade e, para tanto, o sistema deve obedecer a requisitos previstos em regulamento específico (§3º) e deve ser certificado por padrões legalmente aceitos (§2º). O PEP tem valor probatório para fins de direito, assim como os prontuário físicos, desde que respeitadas as normas legais (artigo 5º). Quanto ao tempo de guarda dos prontuários físicos ou microfilmados, após digitalização, deve ser de 20 anos (artigo 6º), a não ser quando diferente prazo for previsto em regulamento; por exemplo para fins de estudo e pesquisa (artigo 6º, §1º)14,15.


ANTIGOS CONCEITOS: SIGILO, SEGREDO, PRIVACIDADE E CONFIDENCIALIDADE

As questões relativas à preservação de informações estão presentes na história da Medicina, desde a antiguidade. Ao longo do tempo, a sua abordagem moral, ou seja, mais prescritiva, foi sendo enriquecida com justificativas para o seu cumprimento, com a inclusão de aspectos éticos às normas de conduta profissional. Atualmente, a preservação de informações é considerada como uma característica central de todas as profissões da saúde16.

Apesar disso, existem confusões e ambiguidades a respeito deste tema, especialmente em relação ao uso de palavras associadas. Sigilo, segredo, privacidade e confidencialidade, muitas vezes, são utilizados como sinônimos, mas guardam importantes diferenças entre si.

Sigilo e segredo, que são utilizados na maioria dos Códigos de Ética Profissional para designar a importância da preservação da privacidade, se referem a não compartilhamento das informações recebidas pelo profissional. Implicam em reconhecer uma relação apenas entre duas pessoas: paciente e terapeuta. Na atual configuração dos atendimentos de saúde, os pacientes são atendidos por inúmeros profissionais, que realizam o registro das informações vinculadas aos atendimentos em um mesmo prontuário. Mesmo nas situações de atendimentos realizados em consultório, podem ocorrer compartilhamentos em supervisões ou discussão de casos entre profissionais. A rigor, sigilo ou segredo é aquilo que a ninguém deve ser revelado17.

O conceito de sigilo, ou segredo, evoluiu com o passar do tempo. A partir do caso Tarasoff, surgiu a necessidade de discutir as questões da privacidade e da confidencialidade no âmbito da atuação profissional18. É a partir deste caso, ocorrido nos Estados Unidos, que são estabelecidos critérios para o compartilhamento de informações sobre pacientes, quando existe grave risco de danos físicos e/ou morte de terceiros.

A confidencialidade é o dever dos profissionais e das instituições de proteger as informações dadas em confiança e não autorizada a sua revelação, neste caso, dentro do contexto de atenção em saúde19. A confidencialidade é um dever prima facie, ou seja, é aquele que deve ser cumprido a não ser que exista outro dever de igual ou maior porte conflitante20. O sigilo ou o segredo são obrigações que não admitem exceções, porém a confidencialidade admite que informações sejam compartilhadas entre profissionais de uma equipe, mantendo-se toda a garantia de proteção adequada. Este compartilhamento deve cumprir a exigência de atender aos melhores interesses do próprio paciente21.

A privacidade deve ser entendida como um direito fundamental e da personalidade que tem como pressuposto o princípio da autodeterminação informativa, isso é o direito/poder da pessoa, efetivamente, gerir, limitar, autorizar o acesso ou qualquer outra forma de tratamento de seus dados e informações pessoais, bem como o acesso à sua própria pessoa e/ou de seu corpo e intimidade22. A privacidade, desta forma, pode ser entendida como sendo física e informacional. A privacidade física pode ser entendida na perspectiva do pudor, dos limites que a pessoa impõe ao acesso ao seu corpo e à sua imagem. Já a privacidade informacional diz respeito a tudo que está relacionado a biografia da pessoa e a sua vida em sociedade23,24.

Desde o ponto de vista legal, o Brasil já conta com uma legislação de proteção às informações desde a década de 1940. Neste conjunto podem ser incluídos a Constituição da República Federativa do Brasil, o Código Penal, o Código Civil e a Lei Geral de Proteção de Dados, além de inúmeras outras normas.

A Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB), Artigo 5º, inciso X, proíbe a violação desse direito, sob pena de indenização por perdas e danos; integrando o suporte fático deste inciso à intimidade e à honra. Esse mesmo artigo inclui a imagem da pessoa como sendo inviolável. O Artigo 5º garante o espaço da casa como asilo inviolável do indivíduo (inciso XI); proíbe a interceptação de comunicações telefônicas, telegráficas ou de dados e manifestação escrita (inciso XII); e protege os direitos autorais (incisos XXVII e XXVIII). A CFRB estabelece a ação de habeas data (Art. 5º, inciso LXXII), como remédio e forma de garantir o acesso e a retificação de dados pessoais25.

O Código Civil (Lei 10.406/2002) regula, em sua Parte Geral, capítulo II, artigos 11 a 21, em particular, o direito à privacidade, que é considerado um núcleo essencial aos direitos da personalidade e está positivado no Artigo 21: A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma26.

O Código Penal (Decreto-Lei 2.848/1940) e suas atualizações, prevê a preservação de segredo; a invasão de dispositivos de informática; e a violação de sigilo profissional. Novamente se verifica a utilização de conceitos ambíguos na redação deste documento. A revelação de informações que uma pessoa teve acesso em função do exercício profissional, tipificado no Art. 325, é claramente aplicável aos profissionais de saúde27.

Quanto ao Direito Digital28, a legislação brasileira com ênfase na internet, com a Lei no 12.965/2014, apelidada de Marco Civil da Internet e se consolida com a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), Lei 13.709/2018. Os fundamentos da LGPD, atuam em prol da necessária proteção dos dados pessoais como um direito fundamental e pelo direito geral de personalidade humana e pelo princípio do pleno desenvolvimento de personalidade. A LGPD, em sete incisos do Artigo 2º, contempla: o respeito à privacidade (Inciso I); a autodeterminação informativa (Inciso II); a liberdade de expressão, de informação, de comunicação e de opinião (Inciso III); a inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem (Inciso IV); o desenvolvimento econômico, tecnológico e de inovação (Inciso V); a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor; e preconiza o respeito aos direitos humanos, ao livre desenvolvimento da personalidade, à dignidade e ao exercício da cidadania pelas pessoas naturais (Inciso VII)29.

Uma questão importante a ser considerada é a que diz respeito às comunicações compulsórias de informações envolvendo pacientes. As primeiras notificações deste tipo surgiram com a finalidade de proteger a sociedade em situações envolvendo o diagnóstico de doenças transmissíveis.

O Ministério da Saúde estabeleceu um conjunto de doenças que podem afetar toda a população e que devem ser comunicadas à autoridade sanitária. Posteriormente, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990), o Estatuto do Idoso (Lei 10.741/2003) e as modificações realizadas na Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), introduziram a compulsoriedade da comunicação de situações de risco, vinculadas à própria pessoa do paciente. Esta comunicação envolve outras estruturas fora do âmbito da saúde, tais como as vinculadas à área jurídica ou de segurança pública. Em todas estas situações, a autoridade responsável tem o dever de proteção associado a estas comunicações, podendo agir apenas no melhor interesse da própria pessoa envolvida. É recomendável que estas comunicações sejam precedidas de discussões entre profissionais. Nas instituições que contem com um Comitê de Bioética esta pode ser uma alternativa de reflexão compartilhada30.


PRONTUÁRIO E REGISTRO DE INFORMAÇÕES

Um dos pontos mais fundamentais de proteção de dados na área da saúde é o registro em prontuário. A proteção e a preservação das informações do prontuário, seja ele eletrônico ou físico, são responsabilidade de todos: das instituições, dos profissionais, dos funcionários, além de outras pessoas que a eles poderão vir a ter acesso. Somente devem ter acesso a estas informações as pessoas que efetivamente necessitem saber para o adequado manejo do caso e no melhor interesse do paciente.

O prontuário é o conjunto de documentos, físicos e eletrônicos, que armazena as informações relativas aos atendimentos, exames e procedimentos realizados pelo paciente. Os dados do prontuário têm o objetivo de fazer um registro histórico e permitir uma troca entre os profissionais envolvidos, com a finalidade de qualificar o cuidado. As informações registradas devem servir para embasar as condutas e o processo de tomada de decisão para o cuidado de saúde. O registro em prontuário é a melhor forma de documentar a adequação dos atendimentos prestados ao paciente14,15.

Nas instituições de saúde, que também desenvolvam atividades educacionais, estes cuidados devem ser redobrados. Todos os alunos e profissionais que estão sendo capacitados devem ser formalmente informados pela instituição sobre os deveres associados ao acesso a qualquer dado referente a pacientes. Este acesso é única e exclusivamente facultado para fins de educação - e em respeito aos princípios da necessidade e finalidade da LGPD estes acessos devem ser justificados. Devem ser tomadas precauções para a preservação da identidade dos pacientes. O dever de confidencialidade pode ser formalizado por meio de um Termo de Confidencialidade, assinado individualmente.

A pandemia da COVID 19 potencializou a realização de aulas e eventos remotos. Nestas situações o cuidado com a preservação de dados de pacientes, e outras pessoas, deve merecer proteção adicional, especialmente em relação à compartilhamentos e gravações.

O compartilhamento de informações entre profissionais por meio de aplicativos ou redes sociais devem estar associados a cuidados especiais. É importante mencionar que a LGPD não veda o compartilhamento ou outra forma de tratamento de dados para fins de assistência à saúde ou para uso acadêmico ou mesmo para realização de pesquisa, esta realizada por órgão de pesquisa (conforme artigos 7o e 11 da LGPD), entretanto em qualquer uma dessas situações deve haver o respeito à dignidade da pessoa humana, aqui expressa no resguardo e uso adequado de dados pessoais e informações de identificação e de saúde dos pacientes, evitando a circulação de informações que permitam a identificação dos pacientes, realizando o compartilhamento de forma pseudonimizada ou anonimizada. E quando a anonimização não for possível, o compartilhamento deve ser feito por meios apropriados e seguros, como por exemplo a pseudonimização ou criptografia, asseverando, sempre que possível, o prévio consentimento dos pacientes ou de seus representantes legais. Por sua vez, nas situações em que o consentimento não seja possível, a impossibilidade deve ser justificada e a necessidade demonstrada.

O compartilhamento de imagens deve merecer especial resguardo, visando não expor o paciente e outras pessoas incluídas nesses arquivos. Todas as fotos compartilhadas devem ter sido autorizadas previamente pelos seus titulares, sejam pacientes e/ou outros profissionais.

A interação com pacientes e/ou com seus familiares por meio de chamadas de áudio ou vídeo podem ser gravadas, sem o conhecimento de todos os envolvidos. Por esta razão, se recomenda que o diálogo ocorra de forma profissional e com linguagem adequada. Da mesma forma, devem ser tomadas medidas para conformar a identidade do receptor da chamada, ou seja, confirmar se a pessoa com quem se fala é aquela desejada. O ambiente virtual não deve alterar os cuidados profissionais à confidencialidade, ao resguardo de informações e demais condutas deontologicamente exigidas do profissional. Da mesma forma, o compartilhamento de dados e informações devem estar restritos às pessoas interessadas e autorizadas30.

Estudos recentes avaliando os desafios na telemedicina, enfatizam a importância da privacidade dos dados pessoais e a necessidade de treinamento profissional a fim de evitar má prática. São aspectos que devem ser trabalhados a fim de que se possa avançar nos benefícios que a telemedicina pode trazer para as pessoas que necessitam31,32.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta revisão não pretende ser exaustiva, mas tem como finalidade alertar os profissionais de saúde mental sobre aspectos importantes na prática clínica, sejam nas consultas remotas ou presenciais, ou nos compartilhamentos de informações entre profissionais. Apesar dos novos contextos e tecnologias, os direitos, deveres éticos e valores envolvidos na relação terapêutica devem continuar a ser respeitados. São aspectos que compõem a reflexão bioética, devendo levar em consideração as particularidades de cada caso, o respeito às pessoas e à sua vulnerabilidade, o respeito à autonomia dos pacientes e ao seu melhor benefício, bem como todos os cuidados relativos à segurança das diferentes informações. Essa reflexão precisa estar presente no dia a dia dos profissionais de saúde mental.


REFERÊNCIAS

1. Prince M, Patel V, Saxena S, Maj M, Maselko J, Phillips MR, et al. No heal thwithout mental health. 859 Glob Ment Heal [Internet]. 2007;8. Available from: www.thelancet.com

2. Goldberg D, Thornicroft G, Abbasinejad M, Amaddeo F, Andrews G, Ballester D, et al. Mental Health Care in 11 Major Cities Over Two Decades. In: https://doi.org/101007/978-981-10-0752-1.2017.

3. Salum GA, Leite L dos S, dos Santos SJE, Mazzini G, Baeza FLC, Spanemberg L, et al. Prevalence and trends of mental disorders requiring inpatient care in the city of Porto Alegre: a citywide study including all inpatient admissions due to mental disorders in the public system from 2013-2017. Trends Psychiatry Psychother. 2020 Mar;42(1).

4. Thornicroft G, Alem A, Dos Santos Ra, Barley E, Drake Re, Gregorio G, et al. WPA guidance on steps, obstacles and mistakes to avoid in the implementation of community mental health care. World Psychiatry. 2010 Jun;9(2).

5. Comitê de Bioética Clínica do Hospital Materno-Infantil Presidente Vargas/HMIPV, Coordenação de Atenção à Saúde Mental/ Diretoria Geral de Atenção Primária à Saúde. ORIENTAÇÕES PARA O USO RESPONSÁVEL DO PRONTUÁRIO ELETRÔNICO NA SAÚDE MENTAL https://sites.google.com/view/bvsapspoa/especialidades/saúde-mentalPortoAlegre:SecretariaMunicipaldeSaúde-BibliotecaVirtualdaAtençãoPrimária/BVAPS https://sites.google.com/view/bvsapspoa/especialidades/saúdemental;2019.

6. Fernandes M.S, Goldim, J.R. Personal Data and Covid-19. In: Woesler M, Sass H-M, editors. Medicine and Ethics in Times of Corona. Zurich: Lit Verlang; 2020.

7. Vindegaard N, Benros ME. Covid-19 pandemic and mental health consequences: Systematic review of the current evidence. Vol. 89, Brain, Behavior, and Immunity. Academic Press Inc.; 2020. p. 531-42.

8. Duffy D, Enrique A, Connell S, Connolly C, Richards D. Internet- Delivered Cognitive Behavior Therapy as a Prequel to Face-To-Face Therapy for Depression and Anxiety: A Naturalistic Observation. Front Psychiatry. 2020 Jan 9;10.

9. Graeff-Martins AS, Flament MF, Fayyad J, Tyano S, Jensen P, Rohde LA. Diffusion of efficacious interventions for children and adolescents with mental health problems. J Child Psychol Psychiatry. 2008 Mar;49(3).

10. Torok M, Han J, Baker S, Werner-Seidler A, Wong I, Larsen ME, et al. Suicide prevention using self-guided digital interventions: a systematic review and meta-analysis of randomised controlled trials. Lancet Digit Heal. 2020 Jan 1;2(1):e25-36.

11. Holmes EA, O'Connor RC, Perry VH, Tracey I, Wessely S, Arseneault L, et al. Multidisciplinary research priorities for the Covid-19 pandemic: a call for action for mental health science. Vol. 7, The Lancet Psychiatry. Elsevier Ltd; 2020. p. 547-60.

12. Goldim JR. Bioética complexa: uma abordagem abrangente para o processo de tomada de decisão. Rev da AMRIGS. 2009;53(1):58-63.

13. Schmitz CAA, Gonçalves MR, Umpierre RN, et al. Ética, estética e etiqueta. In: Schmitz CAA, Gonçalves MR, Umpierre RN, et al. Consulta Remota Fundamentos e Prática. 2021.

14. Brasil, Lei 13.787, de 27 de dezembro de 2018.

15. Fernandes M.S. Prontuário eletrônico e a Lei Geral de Proteção de Dados. Migalhas de Proteção de Dados. Publicado em 12 de fevereiro de 2021. Disponível em https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-deprotecao-de-dados/340202/prontuario-eletronico-e-a-lei-geral-de-protecao-de-dados. Acessado em 11 de agosto de 2021.

16. Fernandes M.S, Goldim J.R. A sistematização de dados e informações em saúde em um contexto de big data e blockchain. In: Lucca N, Pereira de Lima CR, Simão A, Maciel RM, (Org). Direito e Internet. São Paulo: Quartier Latin; 2019.

17. Houaiss A, Villar M de S, Franco FM de M. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. 1st ed. Rio de Janeiro: Objetiva; 2001. 2922 p.

18. Tarasoff vs. Regents of the University of California. California Supreme Court. 1976;(17 California Reports, 3rd series, 425. Decided July, 1, 1976).

19. Winslade WJ. Confidentiality. In: Post SG, editor. Enciclopedia of Bioethics. 3rd ed. Detroid: Gale; 2005.

20. Ross WD. The right and the good. Oxford: Clarendon; 1930.

21. Francisconi CFM, Goldim JR. Aspectos Bioéticos da Confidencialidade e da Privacidade. In: Costa SIF, Garrafa V, Oselka GW, editors. Iniciação a Bioética. Brasilia: CFM; 1998.

22. Kennedy Institute of Ethics. Bioethics Thesaurus. [privacy]. Washington (DC): KIE; 1995. 23. Allen A. Privacy. In: Post SG, editor. Enciclopedia of Bioethics. 3rd ed. Detroid: Gale; 2003. p. 2120-30.

24. Fernandes M.S. Privacidade, sociedade da informação e Big Data. In: Giovana Benetti, André Rodrigues Corrêa, Márcia Santana Fernandes, Guilherme Monteiro Nitschke, Mariana Pargendler, Laura Beck Varela, et al., editors. Direito, Cultura e Método - Leituras da obra de Judith Martins-Costa. 1st ed. Rio de Janeiro: GZ Editora; 2019. p. 182-210.

25. Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasil; 1988.

26. Brasil. Lei no 10.406. Código Civil Brasil: https://presrepublica.jusbrasil.com.br/legislacao/91577/codigocivil-lei-10406-02; Jan10, 2002.

27. Brasil. Código Penal. Decreto-lei 2848/40. 1940.

28. Hoffmann- Riem W. Teoria Geral do Direito Digital - Transformação Digital, desafios para o Direito Editora Forense, 2020. In Rio de Janeiro: Editora Forense; 2020.

29. Brasil. Lei Geral de Proteção de Dados Lei 13709/2018. 2018.

30. Tietzmann A, Goldim J, Protas J. Psicoterapias e bioética. In: Cordioli AV, Grevet EH. Psicoterapias: abordagens atuais. 4a. Porto Alegre: Artmed; 2019. p. 151-68.

31. Nittari G, Khuman R, Baldoni S, Pallotta G, Battineni G, Sirignano A, et al. Telemedicine Practice: Review of the Current Ethical and Legal Challenges. Telemed e-Health. 2020 Dec 1;26(12).

32. Botrugno C. Information technologies in healthcare: Enhancing or dehumanisin doctor patient interaction? Heal An Interdiscip J Soc Study Heal Illn Med. 2019 Dec 18.










aHospital Materno-Infantil Presidente Vargas/HMIPV, Comitê de Bioética Clínica - Porto Alegre/RS - Brasil
bHospital de Clínicas de Porto Alegre/HCPA, Serviço de Bioética - Porto Alegre/RS - Brasil

Autor correspondente

Ana Cristina Tietzmann
actietzmann@gmail.com

Submetido em: 10/02/2021
Aceito em: 13/08/2021

Contribuições: Ana Cristina Tietzmann - Conceitualização, Redação - Preparação do original, Redação - Revisão e Edição; Jane Iandora Heringer - Conceitualização, Redação - Preparação do original, Redação - Revisão e Edição; Márcia Santana Fernandes - Conceitualização, Redação - Revisão e Edição; José Roberto Goldim - Conceitualização, Redação - Revisão e Edição.

 

artigo anterior voltar ao topo próximo artigo
     
artigo anterior voltar ao topo próximo artigo