Rev. bras. psicoter. 2021; 23(3):105-119
Dalpiaz G, Scherer JN, Goularte JF, Serafim SD, Caldieraro MA, Rosa AR. O impacto da primeira onda da pandemia de Covid-19 na saúde mental de estudantes brasileiros. Rev. bras. psicoter. 2021;23(3):105-119
Artigo Original
O impacto da primeira onda da pandemia de Covid-19 na saúde mental de estudantes brasileiros
The impact of the first wave of the Covid-19 pandemic on the mental health of Brazilian students
impacto de la primera ola de la pandemia Covid-19 en la salud mental de los estudiantes brasileños
Giovana Dalpiaza; Juliana Nichterwitz Schererb; Jéferson Ferraz Goulartec; Silvia Dubon Serafimc; Marco Antonio Caldieraroc; Adriane Ribeiro Rosad,e,f
Resumo
Abstract
Resumen
INTRODUÇÃO
A doença coronavírus (Covid-19) iniciada em Wuhan, China, em dezembro de 2019 teve uma rápida progressão devido à alta taxa de transmissibilidade do vírus SARS-Cov-21. A Covid-19 tornou-se uma pandemia em março de 2020, afetando mais de 200 países2. A primeira onda da doença no Brasil iniciou com o primeiro caso confirmado em 26 de fevereiro de 20203, e, posteriormente, espalhou-se para todas as regiões do país4. Com o intuito de controlar a transmissão viral, diversas intervenções de saúde pública foram adotadas pelo Brasil e outros países, como o distanciamento social e fechamento de empresas e escolas5. Essas medidas, entretanto, somadas ao impacto da própria pandemia, parecem estar influenciando negativamente na saúde mental da população e especialmente aqueles mais vulneráveis6,7.
Diversos estudos apontam que a fase de vida que compreende o final da adolescência e o início da vida adulta é um período de alta vulnerabilidade para problemas psicológicos8,9. Neste sentido, grande parte dos alunos de graduação estão em um período de risco no neurodesenvolvimento, pois há uma incompatibilidade entre regiões subcorticais maduras com as regiões corticais ainda em desenvolvimento, as quais regulam o funcionamento emocional das pessoas10. Além disso, o período da faculdade corresponde a um momento de transição e de extrema responsabilidade, e consequentemente problemas de saúde mental são muito comuns entre estudantes universitários9. Uma pesquisa anterior à pandemia, realizada com 274 instituições dos Estados Unidos, relatou que 88% dos estudantes possuíam algum problema psicológico e que a maioria destes transtornos tem seu pico durante a juventude11. No Brasil, uma meta-análise analisou dados de 25 estudos que avaliaram a saúde mental de estudantes de medicina, apontando uma prevalência de 30% para depressão e ressaltando que 89,6% dos alunos tinham indícios de ansiedade, estresse e preocupação12.
Além dos fatores de risco relativos ao próprio processo de desenvolvimento, a interrupção na rotina dos estudantes e a falta de estabilidade e suporte em decorrência da pandemia podem aumentar os sintomas de estresse entre os alunos, ocasionando um impacto negativo na progressão acadêmica13-15. Nesse sentido, os efeitos da pandemia e das medidas restritivas, como o fechamento das escolas e universidades, e o impacto econômico da Covid-19 causaram uma intensa pressão psicológica nos estudantes, afetando a saúde mental dos universitários e gerando preocupação a respeito da carreira acadêmica e profissional dos mesmos15-17. Este impacto pode ser amplo e duradouro, o que não significa que o distanciamento social não deveria ter sido utilizado, mas reforça a necessidade de estudos que avaliem as consequências psicológicas entre os estudantes com o intuito de oferecer estratégias terapêuticas18,19. Diante do exposto, este estudo objetiva investigar os efeitos da primeira onda da pandemia de Covid-19 na saúde mental de estudantes brasileiros. Além disso, pretende-se avaliar se variáveis sociodemográficas, tempo de isolamento social e transtornos psicológicos prévios estão associados à gravidade dos sintomas psicológicos mais prevalentes na amostra.
MÉTODO
Este estudo foi realizado a partir de um projeto guarda-chuva, intitulado "Covid-19 e saúde mental: usando a tecnologia digital para a avaliação das consequências da pandemia", desenvolvido por pesquisadores do Laboratório de Psiquiatria Molecular do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) e Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFGRS).
Delineamento e amostragem
Trata-se de um estudo transversal, com coleta de dados a partir de um levantamento on-line. O recrutamento dos sujeitos de pesquisa se deu através da divulgação dos estudos nas redes sociais, como Instagram e Facebook, tratando-se assim, de uma amostragem por voluntariado. Foram incluídos no estudo guarda-chuva indivíduos brasileiros de ambos os sexos, acima de 18 anos, que deram seu consentimento para a participação. Para o presente estudo, acrescentamos os critérios de ser estudante (verificado através da questão 9 do questionário "Qual é a sua ocupação?") e ter completado o questionário na íntegra. A fim de evitar respostas duplicadas de um mesmo participante, aqueles indivíduos que declararam já ter preenchido o questionário on-line previamente foram excluídos.
Procedimentos e coleta de dados
A coleta de dados do projeto guarda-chuva ocorreu entre 20 de maio e 13 de setembro de 2020, período do primeiro pico de casos da Covid-19 no Brasil. Ao entrar no link de divulgação do estudo, os voluntários eram direcionados ao termo de consentimento livre e esclarecido, que continha as informações referentes aos objetivos e procedimentos do estudo. Após confirmar o consentimento da participação, os voluntários eram direcionados para o questionário de coleta de dados, que continha diversas sessões referentes a perguntas sociodemográficas, questões para avaliar o conhecimento sobre a Covid-19, estado de saúde física e mental, e história de transtorno psiquiátrico anterior, incluindo ansiedade, transtornos do humor e psicose.
Para avaliação geral da saúde mental, usamos a Escala transversal de sintomas de nível 1 autoaplicável do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5). Esta escala avalia 13 domínios de saúde mental importantes através dos diagnósticos psiquiátricos nas duas semanas anteriores: depressão, raiva, mania, ansiedade, sintomas somáticos, problemas de sono, memória, pensamentos e comportamentos repetitivos, dissociação, função da personalidade, ideação suicida, psicose e uso de substâncias. Permite identificar sintomas bem como monitorar mudanças na apresentação das manifestações de um indivíduo a longo prazo. Cada item foi classificado de acordo com a frequência de ocorrência através de uma escala Likert de 5 pontos (0 = nenhum dia; 1 = ligeiramente raro, menos de um ou dois dias; 2 = leve ou vários dias; 3 = moderado ou mais da metade dos dias; e 4 = grave ou quase todos os dias). Uma classificação leve (ou seja, 2) ou superior em qualquer item dentro dos domínios, ou no caso de uso de substância, ideação suicida e psicose, uma classificação leve (ou seja,1) ou maior, indica sintomatologia neste domínio, e direciona para uma avaliação adicional20,21.
A gravidade e os sintomas de depressão foram avaliados pelo instrumento Sistema de informação de medição de resultados relatados pelo paciente (PROMIS) para depressão (PROMIS Short Form v1.0 - Depression 8a), a qual avalia o humor negativo (tristeza, culpa), opiniões sobre si mesmo (autocrítica, inutilidade), cognição social (solidão, alienação interpessoal), diminuição do afeto positivo e envolvimento (perda de interesse, significado e propósito). A gravidade e os sintomas de ansiedade foram avaliados pela PROMIS ansiedade, que avalia o medo autorrelatado (medo, pânico), ansiedade (preocupação, pavor), hiperexcitação (tensão, nervosismo, inquietação) e sintomas somáticos relacionados à excitação (coração acelerado, tontura)22.
Ambos os instrumentos PROMIS (depressão e ansiedade) consistem em um questionário com 8 itens, que avaliam a frequência de sintomas ao longo dos últimos sete dias, a partir de uma escala de 5 pontos (1 = nunca; 2 = raramente; 3 = às vezes; 4 = frequentemente; 5 = sempre). Todos os escores PROMIS foram apresentados com escores T calculados pelo serviço de pontuação de medidas de saúde, disponibilizados no site https://www.assessmentcenter.net/ac_scoringservice, por meio da pontuação da soma bruta, usando T-scores da População geral dos Estados Unidos. O T-score é uma pontuação padronizada, com uma médica de 50 e desvio padrão de 10. Para depressão e ansiedade, um T-score menor ou igual a 55 não indica sintomas significativos, superior a 55 a 60 indicam sintomas leves, superior a 60 a 70 indicam sintomas moderados, e superiores a 70 a 84, indicam sintomas graves22.
A qualidade de vida foi mensurada através da EUROhis-QOL, que é uma escala composta por oito itens, e desenvolvida pelo grupo de qualidade de vida da OMS a partir dos instrumentos genéricos WHOQOL-100 e WHOQOL-Bref. Do ponto de vista conceitual, cada um dos domínios (físico, psicológico, das relações sociais e ambiente) encontra-se representado por dois itens. O resultado é um índice global, calculado a partir do somatório dos oito itens, sendo que um valor mais elevado corresponde uma melhor percepção da qualidade de vida.
O desenvolvimento do questionário on-line e a escolha dos instrumentos baseou-se na experiência dos pesquisadores neste tema e em estudos prévios23,24 que avaliaram o impacto psicológico de outros surtos (tais como a SARS e influenza).
Considerações éticas
Este estudo foi aprovado pelo comitê de ética do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (PPG 2020-0162), e o consentimento informado on-line foi obtido dos participantes. A investigação foi realizada de acordo com a última versão da Declaração de Helsinque. Todos os questionários eram anônimos, e as informações fornecidas pelos voluntários foram utilizadas apenas para fins de pesquisa.
Análises estatísticas
Estatística descritivas foram utilizadas para apresentar dados sociodemográficos, medidas de distanciamento social e distúrbios psiquiátricos prévios e atuais. Variáveis categóricas estão representadas por frequências absolutas e relativas, enquanto variáveis numéricas estão representadas por média e desvio padrão. Os sintomas psiquiátricos de acordo com o DSM-5 foram relatados como porcentagens de casos com um rastreio positivo. Os sintomas de ansiedade e depressão tiveram maior prevalência na amostra estudada, e sendo assim, buscamos encontrar quais as variáveis estavam associadas à maior gravidade destes sintomas. Para isso, aplicamos uma regressão linear para identificar associação entre a gravidade dos sintomas de depressão e de ansiedade (mensurados através do T-score da PROMIS depressão e PROMIS ansiedade) com características demográficas, condições psicossociais e duração de distanciamento social (menos de 60 dias/ mais de 60 dias). As análises foram realizadas no SPPS versão 18. Para todas as análises, considerou-se testes bicaudais com um nível de significância de 5%.
RESULTADOS
Características sociodemográficas dos participantes
Um total de 810 estudantes completaram a pesquisa, dentre os quais 83,1% eram do sexo feminino e 15,9% do sexo masculino (Tabela 1). A média de idade dos praticantes foi de 24,1 ± 5,88 anos. A maioria dos entrevistados (42,8%) possuía segundo grau/ensino médio completo como grau de escolaridade. 78,3% dos respondentes residem no estado do Rio Grande do Sul, e 57,2% não moram na capital de seu estado, sendo a maioria da amostra (82,7%) solteiros. Mais de 40% da amostra reportou estar trabalhando de maneira remota durante o período de pandemia. A maioria não teve diagnóstico confirmado de Covid-19 (98,6%), sendo que 97,8% dos respondedores afirmaram ter realizado o distanciamento social, no qual a média de duração foi de 90,63 ± 34,54 dias no momento do envio do questionário, isto é, durante a primeira onda da pandemia no Brasil. Ainda, 86,8% não teve contato com alguém que teve Covid-19 e 95,6% não perdeu alguém próximo pela doença. De modo geral, 52,5% da amostra avaliou seu estado de saúde como bom.
artigo anterior | voltar ao topo | próximo artigo |
Rua Ramiro Barcelos, 2350 - Sala 2218 - Porto Alegre / RS | Telefones (51) 3330.5655 | (51) 3359.8416 | (51) 3388.8165-fone/fax