Rev. bras. psicoter. 2021; 23(3):121-133
Oleques G, Pereira VG, Halpern SC, Bandinelli LP, Bastos TM, Ornell F. Aspectos do luto em familiares de mortos em decorrência da Covid-19. Rev. bras. psicoter. 2021;23(3):121-133
Artigo Original
Aspectos do luto em familiares de mortos em decorrência da Covid-19
Aspects of grief in family members of the dead as a result of Covid-19
Aspectos del duelo en familiares de muertos como resultado del Covid-19
Geisson Olequesa; Vanessa Gonçalves Pereiraa; Silvia Chwartzmann Halpernb; Lucas Poitevin Bandinellic; Tamires Martins Bastosd; Felipe Ornellb,d
Resumo
Abstract
Resumen
INTRODUÇÃO
A doença do coronavírus 2019 (Covid-19) é uma condição respiratória aguda infecciosa causada por um novo tipo de coronavírus (Sars-CoV-2) identificado no final de 2019 na China. Em março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou o status de pandemia gerando uma comoção mundial que culminou no fechamento de fronteiras e em medidas de distanciamento físico1. Atualmente, é considerada a maior pandemia desde a gripe espanhola. Os infectados pela doença apresentam frequentemente sintomas leves, como coriza, febre, tosse seca, dificuldade para respirar e dor de garganta. Porém, pode haver evolução para quadros graves, nos quais há comprometimento respiratório e de outros sistemas do organismo, gerando a necessidade de suporte em unidade de tratamento intensivo (UTI)2. Apesar da doença não ter um percentual de letalidade alto, a sua transmissibilidade é considerada elevada e o alto índice de pessoas com quadros graves simultaneamente, tem levado ao colapso o sistema de saúde de diversos países3. Além disso, o processo entre o diagnóstico, a internação, até o possível resultado de óbito por Covid-19 pode ser muito rápido4, principalmente no início da pandemia, quando os protocolos para identificação dos casos e fluxos de encaminhamento eram pouco estabelecidos, não havia vacinas e os testes eram insuficientes.
Durante o primeiro ano da pandemia, o Brasil foi um dos principais epicentros da crise, registrando número elevado de infectados e de óbitos. Soma-se a isso, as reverberações políticas, econômicas e os efeitos psicossociais da crise - os quais tem sido alvo de um número crescente de publicações5,6. Para além da questão biológica e dos impactos sociais, em conjunto, estes elementos geram implicações psicológicas importantes, e artigos internacionais ponderaram a possibilidade de uma pandemia paralela à Covid-19, afetando a saúde mental da população. Durante a crise, sentimentos como culpa, medo, incerteza, solidão e ansiedade tem sido frequentes7, e podem estar associados ao surgimento ou agravamento de condições psiquiátricas - transitórias ou persistentes7-9. Isso pode ser especialmente preocupante em pessoas que perderam familiares em decorrência da Covid-19.
Em situações típicas, o luto apresenta características emocionais naturalmente turbulentas e permeadas por processos dolorosos. Quando ocorrem perdas familiares em um contexto de crise (tragédias, desastres e epidemias), tal como as geradas pela Covid-19, o luto pode ser intensificado9. Uma das explicações para isso é que, além de vivenciar sentimentos relacionados às perdas, o enlutado também se depara com sentimentos ambivalentes, incluindo a sensação de alívio e também a culpa por ter sobrevivido10. Além disso, o distanciamento social, proposto como principal ferramenta de enfrentamento para frear a disseminação da Covid-19, dificultou a realização dos ritos de despedida, restringindo o envolvimento comunitário e o suporte social físico e emocional, fatores importantes para a elaboração do luto11. Ademais, esse processo também pode ser atravessado por elementos como crise econômica, questões políticas e má gestão da informação sobre a doença, que também podem ter implicações psicológicas negativas12.
Compreender as particularidades do processo de luto diante da crise ocasionada pela Covid-19 é fundamental para desenvolver estratégias de suporte, porém, até o momento poucas investigações brasileiras avaliaram esse fenômeno complexo, dinâmico e multifatorial. O objetivo desta investigação foi identificar aspectos relacionados à vivência do luto em familiares de mortos pela Covid-19 no período inicial da pandemia.
1 MÉTODO
Trata-se de uma pesquisa documental qualitativa, que utilizou como método a análise de conteúdo de Bardin13, que propõe três fases fundamentais durante a investigação14. Como foram utilizados dados públicos a aprovação prévia do comitê de ética não foi necessária, conforme a legislação vigente (Resolução nº 466 de 2012)15.
A primeira fase consistiu na seleção dos documentos submetidos à análise, a formulação de hipóteses e a elaboração de indicadores que fundamentem a interpretação final13. Para isso, foram avaliadas reportagens publicadas entre 17 março e 16 abril de 2020, em cinco mídias de grande circulação nacional: G1, Estadão, Folha de São Paulo, UOL e Zero Hora. O período escolhido corresponde ao mês posterior ao primeiro óbito decorrente do Covid-19 registrado no Brasil, momento no qual os fluxos de atendimento, diagnóstico e tratamento ainda não estavam bem estabelecidos e ainda não existiam vacinas. Inicialmente, ocorreu uma leitura flutuante de todos os materiais, a pré-análise, que foi realizada por dois graduandos de Psicologia que não se comunicaram durante este processo, supervisionados por dois professores.
Na segunda etapa foi realizada a exploração do material, quando os materiais pré-analisados na fase anterior foram organizados sistematicamente. Assim, todas as 79 reportagens sobre óbitos decorrentes da Covid-19 recuperadas previamente foram lidas na íntegra, e a partir disso, foram selecionadas as matérias que envolviam relatos de familiares dos mortos pela Covid-19. Foi estabelecido o critério de saturação e excluídas as reportagens que que não continham falas de familiares. Ao final dessa etapa, 40 publicações foram incluídas na análise.
Desta forma, os achados da pré-análise foram codificados e agrupados em descritores específicos, hipotetizados previamente, baseado em experiência clínica dos pesquisadores: A- Considerações sobre o sistema de saúde quanto às condições da morte; B- Sentimentos relacionados ao enfrentamento; C- Luto e impacto na família; D- Experiência da morte; E- Sentimento de morte precoce; F- Acolhimento e apoio do sistema de saúde; G- experiência com a vivência da doença; H- Experiência com ritual de despedida. Com o intuito de extrair o conteúdo em sua forma mais original, os recortes não foram editados, estando assim em conformidade com a regra da representatividade da amostra proposto por Bardin13. Desta forma, os achados da exploração do material atingiram o conteúdo manifesto pelas categorias, permitindo a sua quantificação em relação a frequência que apareceram nas reportagens. As falas codificadas foram organizadas em planilha para posterior análise de conteúdo. Na terceira e última fase, conforme Bardin13 propõe, foi realizado o tratamento do resultado. Assim, exploramos o material alcançado da pesquisa documental e refletimos sobre os resultados de forma aprofundada.
2 APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DE RESULTADOS
Este é um dos primeiros estudos brasileiros a avaliar o processo de luto em familiares de mortos em decorrência da Covid-19. Nossos resultados apontam para a existências de diversas particularidades na vivência do luto no momento inicial da pandemia. A partir da análise do conteúdo do discurso dos familiares evidenciamos que os principais fatores envolvidos no processo de luto foram: a) Desafios de uma experiência nova e urgente, b) Preconceito decorrente do contato com doentes, c) Ritos funerais, d) Sentimentos, e) Formas de enfrentamento. Estas categorias de análise serão discutidas na sequência.
a) Desafios de uma experiência nova e urgente
Nesta categoria foram incluídos os recortes que demonstram como a trajetória de uma epidemia pode ser marcada por diversos fatores, principalmente quando se trata de algo inicialmente incompreendido por especialistas e pela população em geral, conforme os relatos a seguir:
"Fiquem em casa e se protejam. A falta de diagnóstico matou meu filho e vai matar outros." (informação verbal)i
"O hospital não a tratou como um caso confirmado do vírus, isso porque tudo demora tanto." (informação verbal)ii
"É uma burocracia tremenda. O tempo levado para o resultado do teste é importante." (informação verbal)iii
"A minha mãe ainda está internada e ela não pode abraçar a gente, ela não pode ter ninguém abraçando ela, nem um enfermeiro pode abraçar ela." (informação verbal)iv
É preciso considerar que, no período entre final de fevereiro e início de março de 2020, os fatores que determinavam o curso e o prognóstico da doença ainda estavam sendo investigados, gerando muitas incertezas e projeções de um cenário caótico, levando governantes, a comunidade científica e a população a um estado de alerta16. As notícias sobre a Covid-19 assustaram a população no mundo inteiro e relatos de sua velocidade e letalidade eram divulgados frequentemente. Além disso, no Brasil, a crise política parece ter limitado o desenvolvimento e implementação de diretrizes nacionais bem definidas17. Situações como demora no estabelecimento de fluxos para atendimento de pacientes, atraso na confirmação da doença, múltiplos encaminhamentos, troca de corpos nos hospitais, falta de preparo e de treinamento dos profissionais da saúde, além da falta de testagem para todos, foram reflexos diante de um fenômeno novo e de protocolos desconhecidos, para a qual o Brasil não estava preparado. Administrar uma situação de tal magnitude exige uma reação rápida para organizar insumos, preparo profissional e um fluxo organizado de trabalho. É, por si só, um processo complexo, que parece ter sido dificultado pela situação política do país18.
b) Preconceito decorrente do contato com doentes
Nesta categoria, destacamos trechos que demonstram experiências, nas quais, além da doença, os familiares também tiveram que lidar com expressões de preconceito da comunidade:
"Estamos sofrendo preconceito com os vizinhos. Estamos trancados no apartamento sem apoio da área da saúde." (informação verbal)v
"Além do luto, ainda tive que enfrentar comentários maldosos de pessoas da comunidade em redes sociais, que diziam que havia sido irresponsável e estava espalhando a doença pela cidade." (informação verbal)vi
Conforme pontuado anteriormente, a pandemia no Brasil sofreu com aspectos particulares do nosso momento político e social. Esses atravessamentos parecem ter impactado negativamente no enfrentamento da pandemia. A insegurança e angústia podem ter contribuído para a difusão de fenômenos como a disseminação de notícias falsas (Fake News) crescentes durante a pandemia, conforme sinalizado por estudos prévios19. Esses fatores podem ter tido implicações na busca por tratamento, adoção de medidas de prevenção e relacionamento com pessoas infectadas e seus familiares20.
Cabe ressaltar que o posicionamento das autoridades parece ter influência na polarização da opinião pública em relação a doença, pois aspectos sociais e econômicos são fatores que se relacionam com a experiência de perder alguém para uma doença nova e desconhecida. Essas características impactam na forma de vivenciar a doença e o luto, tal como o preconceito experienciado pelas famílias enlutadas21.
c) Ritos funerais
Nesta categoria, os trechos com as falas representam as experiências familiares nos rituais de despedida dos seus entes, em meio às restrições da pandemia e seus protocolos de segurança. As falas selecionadas, que demonstram essa experiência em relação ao luto, funeral e protocolos são:
"Como eu já tive a doença, fui o único da família a ver minha mãe no caixão lacrado, sem ninguém por perto para abraçar." (informação verbal)vii
"Minha sogra era muito conhecida, religiosa e merecia um velório com reza do terço, mas o que teve foi uma coisa fechada." (informação verbal)viii
"(O corpo) já vai diretamente para o túmulo, enterra, faz uma oração e acabou. Não teve nenhum tipo de ritual." (informação verbal)ix
"Não ritualizar essa passagem é doloroso e desumano. Não recebi fisicamente os abraços dos meus amigos e parentes queridos." (informação verbal)x
O luto é uma experiência complexa e geralmente o sofrimento e a angústia precedem sua elaboração. Conforme abordado previamente, o luto decorrente da Covid-19 pode ser agravado por diversos acontecimentos que não estão relacionados apenas pela morte do indivíduo. Durante a pandemia, o processo de luto pode ter sido intensificado por dificuldades que iniciaram ainda no sistema hospitalar, como a falta de comunicação com o enfermo, dificuldade de obter informações e a solidão vivenciada neste processo, tanto pela pessoa doente quanto pelos familiares envolvidos. Relatos também indicam que a velocidade do curso da doença até o desfecho da morte é assustadora9.
Após o desfecho da morte, familiares enfrentam um novo e doloroso processo que é potencializado pela dificuldade de enterrar e velar seus entes queridos. As dificuldades apontam desde a dificuldade da liberação e até troca de corpos nos hospitais, bem como a impossibilidade de abraçar seus amigos e familiares para se despedir apropriadamente. Estas experiências são agravadas pela falta de apoio do sistema de saúde no pós-morte, devido à falta de fluxos para condução e orientação às famílias. Além disso, sabe-se que rituais de despedida fazem parte do processo de elaboração do luto, porém, no contexto da pandemia os mesmos foram suprimidos ou restringidos devido o risco de contaminação9. O Brasil possui um tamanho continental e existem particularidades socioeconômicas, culturais e regionais que dificultam um entendimento global dos seus rituais de despedida. Com isso, ressalta-se, que a análise do material utilizado neste estudo nos permitiu verificar que, na maioria das vezes, preconiza-se um ritual de despedida tal como um velório com envolvimento comunitário.
Observa-se que as consequências de um luto mal elaborado, no contexto da pandemia de Covid-19, são atualmente imprevisíveis e só poderão ser entendidas futuramente22. Sabe-se que o luto contempla, geralmente, algumas fases mais ou menos definidas, tais como a negação (negação de fatos que evidenciam a morte), raiva (sentimentos hostis de raiva em relação a perda), negociação (barganha subjetiva para lidar com a perda de forma menos injusta), depressão (a intensidade da perda é sentida e pode levar a um estado depressivo) e aceitação (aceitação do que aconteceu e contemplação de continuidade da sua vida.)23. E esses processos poderão ser intensificados diante de situações de mortes inesperadas, o que no caso da Covid-19, ainda é potencializado pelos fatores políticos e sociais expostos anteriormente. Assim como pela experiência de uma doença nova e potencialmente assustadora que impõe protocolos de enfrentamento, como o isolamento físico, que impede um funeral tradicional. Relatos de caixão fechado e ausência de rituais compatíveis com as crenças de cada um acarretam redução na rede de suporte social 24.
d) Sentimentos
Este tópico expõe os sentimentos manifestados pelos familiares enlutados através de seus relatos sobre enfrentamento durante a pandemia. A seguir, expomos alguns trechos que demonstram alguns desses sentimentos:
"Nunca pensei que esse vírus pudesse derrubar ele. Hoje tenho medo! Medo de sair na rua e trazer esse vírus para dentro de casa e contaminar minha família." (informação verbal)xi
"Quando me deram a notícia, foi um choque. Eu fiquei louco dentro daquela UPA. Dizia 'vocês mataram minha esposa, ela chegou aqui bem." (informação verbal)xii
"Meu pai foi sozinho reconhecer o corpo no hospital, sozinho até o cemitério e sozinho acompanhá-lo ao crematório. É tudo muito sozinho." (informação verbal)xiii
"Foi muito rápido. Chocante a rapidez que doença levou meu irmão." (informação verbal)xiv
"Destruiu com a nossa família em menos de uma semana." (informação verbal)xv
"Um absurdo, um absurdo. Um erro muito grande [troca de corpos]. Como isso pode acontecer?", criticou Ingrid. (informação verbal)xvi
"É muito chocante. A gente fica perdidinho, completamente perdido. Eu só falava: 'não pode ser'" [troca de corpos]. (informação verbal)xvii
"A gente está anestesiada, não consegue entender" [troca de corpos]. (informação verbal)xviii
Fatores vistos anteriormente, tais como o enfrentamento de uma doença desconhecida e assustadora, os encaminhamentos, por vezes, controversos das governanças e os impactos psicossociais que agem na experiência de morte e luto vivenciado por familiares, podem evocar uma série de sentimentos nos familiares envolvidos. Dentre as expressões mais relatadas nos materiais, aparecem os sentimentos de choque, impotência, raiva, cansaço, sofrimento, indignação, medo, surpresa, desrespeito, frustração. 25, apontam que indivíduos que são colocados na condição de distanciamento físico tem maior risco de desenvolver um transtorno mental e intenso sofrimento psíquico tais como estresse, ansiedade e depressão. 26 Também fazem alusão aos sentimentos de solidão e vulnerabilidade expressos pelos pacientes e familiares, acrescentando que esses sentimentos podem ser vivenciados coletivamente.
Embora relativamente recente, a pandemia de Covid-19 já conta com uma expressiva quantidade de estudos publicados retratando os impactos da crise nas características do luto das famílias. Apesar do Brasil ainda não ter dados publicados sobre a quantidade de enlutados por morte, nos Estados Unidos estima-se que cada morte por Covid-19 deixará aproximadamente nove enlutados27.
e) Formas de enfrentamento
Neste tópico, ilustraremos as diferentes formas que as famílias enlutadas encontraram para enfrentar as consequências da pandemia. Abaixo, trechos que demonstram essa experiência de enfrentamento:
"Muitos acreditam no perigo e nem abrem a porta de casa, mas tem pessoas que não estão ligando, não." (informação verbal)xix
"Sem poder ir vê-las no hospital, sem poder ficar com pai e minha irmã que estavam isolados na casa deles. Então foi bem difícil e o problema é você ainda está sozinho, é um grande desafio." (informação verbal)xx
"Quase 20 outros parentes da matriarca estão fazendo quarentena em suas casas, orando em solidão, sem poder chorar juntos as perdas profundas que sofreram coletivamente." (informação verbal)xxi
As formas de enfrentamento do luto durante os primeiros meses de distanciamento físico foram diversas e, inerentes de uma nova crise pandêmica. Os relatos de experiências negativas foram devido a inúmeros fatores como, a desinformação, disseminação de notícias falsas, direcionamento políticos que ilustrava um cenário com potencial catastrófico e ansiogênico, a necessidade de protocolos restritos para enterros, entre outros28. Entretanto, as formas de enfrentamento parecem ter se adaptado ao contexto pandêmico. O apoio social, religioso e contato com familiares foram migrando para o formato online, possibilitando velórios virtuais e rituais de despedida de forma remota 29.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
É possível que a experiência do luto tenha sido intensificada diante das peculiaridades que permearam o processo de morte decorrente da Covid-19. Sobretudo nos primeiros meses da pandemia, sentimentos como medo, incerteza, solidão, rapidez dos acontecimentos e indignação pelos encaminhamentos estratégicos do sistema de saúde e pelas declarações dos governantes são relatos frequentes, podendo ser potencializados pela impossibilidade de realização dos ritos funerais. Os efeitos da crise podem ter reverberações tardias na saúde mental da população, que eventualmente podem ser mais longos que a própria crise sanitária 7,30. A Covid-19 aumentou em 15% os óbitos apenas em 2020, segundo o IBGE, atualmente são mais de 600 mil mortes. Previamente, estimou-se que cada óbito deixa pelo menos nove enlutados31, se 10% desenvolverem luto prolongado (que dura mais de seis meses), serão mais de 500 mil pessoas em sofrimento. O luto prolongado, que será incluído na 11a Edição da Classificação Internacional de Doenças é associado a diversos desfechos clínicos (cardíacos, por exemplo) e psiquiátricos (abuso de substâncias e a depressão)32. Assim, é fundamental que medidas de suporte sejam desenvolvidas. Dessa forma, apesar deste estudo trazer um recorte temporal específico, os resultados fornecem insights importantes para a compreensão desse fenômeno dinâmico e complexo.
Este estudo possui algumas limitações que devem ser consideradas na interpretação dos resultados. Inicialmente ressalta-se que se trata de uma pesquisa documental na qual foram analisadas reportagens publicadas na grande mídia, e desta forma, as falas analisadas podem ter sido disponibilizadas de forma recortada pelos próprios meios de comunicação. Sabe-se que trabalhos qualitativos preveem análise de falas e discursos de sujeitos de forma direta e neste caso, como são notícias de jornal, o discurso veiculado está mediado por um terceiro e não se tem acesso às falas originais, o que configura um viés importante. Ainda assim, entendemos que o próprio ângulo que emerge na imprensa é um elemento representativo da sociedade brasileira, por ser um veículo de informação mais comumente utilizado pela população e que transmite informações de grande abrangência nacional. Contudo, embora aspectos macros, tal como a condução política brasileira, possam estar relacionados com a experiência de luto, o material analisado não traduz rigorosamente dados que possam afirmar essa proposição. É também importante destacar que, é notória a existência de atritos entre os veículos da imprensa selecionados neste estudo e o chefe de estado do Brasil, o que deve ser levado em consideração ao avaliarmos o potencial de viés. Ainda, é necessário considerar que o recorte temporal desta investigação foi no início da pandemia. Tendo em vista que o processo foi dinâmico, é possível que as contingências relacionadas ao processo de luto tenham se modificado ao longo da crise. Apesar destes elementos, acredita-se que a realização de pesquisa documental foi a forma mais adequada e segura para retratar o fenômeno do luto no início da pandemia, ao passo que uma abordagem individualizada de entrevistar familiares enlutados, e com abrangência nacional implicaria em questões éticas e seriam sanitariamente inapropriadas.
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aInstituto Brasileiro de Gestão de Negócios (IBGEN), Porto Alegre/RS - Brasil
bHospital de Clínicas de Porto Alegre / Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Centro de Pesquisa em Álcool e Drogas - Porto Alegre/RS - Brasil
cPontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Postgraduate Program in Psychology - Porto alegre/ RS - Brasil
dUniversidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Laboratório de Psiquiatria Psicodinâmica, Hospital de Clínicas de Porto Alegre - Porto alegre/RS - Brasil
Autor correspondente
Felipe Ornell
fornell@hcpa.edu.br
Submetido em: 11/08/2021
Aceito em: 29/11/2021
Contribuições: Geisson Oleques - Coleta de Dados, Conceitualização, Metodologia, Redação - Preparação do original, Redação - Revisão e Edição; Vanessa Gonçalves Pereira - Coleta de Dados, Redação - Preparação do original; Silvia Chwartzmann Halpern - Redação - Preparação do original, Visualização; Lucas Poitevin Bandinelli - Redação - Preparação do original, Visualização; Tamires Martins Bastos - Redação - Preparação do original, Visualização; Felipe Ornell - Conceitualização, Redação - Preparação do original, Supervisão
iFala extraída da reportagem do G1 "'Jovens, fiquem em casa', pede mãe de homem de 26 anos morto com suspeita do novo coronavírus no Rio" publicada em 24/03/2020
iiFala extraída da reportagem da Folha de São Paulo "Coronavírus ataca sete membros de uma mesma família e mata quatro deles" publicada em 19/04/2020
iiiFala extraída da reportagem da Folha de São Paulo "Coronavírus ataca sete membros de uma mesma família e mata quatro deles" publicada em 19/04/2020
ivFala extraída da reportagem do G1 "Coronavírus: a dor de quem perdeu um familiar ou um amigo" publicada em 27/03/2020
vFala extraída da reportagem do UOL "Meu pai morreu porque é pobre, diz filho de 1º morto em AL por coronavírus" publicada em 01/04/2020
viFala extraída da reportagem do UOL "Covid-19 interrompe sonho de maternidade de professora na Bahia" publicada em 04/04/2020
viiFala extraída da reportagem da Folha de São Paulo "Depois de ter Covid-19, médico deixa quarentena para sepultar a mãe, vítima do coronavírus" publicada em 02/04/2020
viiiFala extraída da reportagem do Estadão "Covid-19 interrompe sonho de maternidade de professora na Bahia" publicada em 25/03/2020
ixFala extraída da reportagem do Estadão "Três irmãos morrem em 3 dias com suspeita de coronavírus na Grande-SP" publicada em 07/04/2020
xFala extraída da reportagem do UOL ""Senhor presidente, suas condolências são falsas, eu não as aceito", diz filho de vítima da Covid-19" publicada em 12/04/2020
xiFala extraída da reportagem da Folha de São Paulo "Vítima de Covid-19 era autoridade econômica, viajava muito e levava vida saudável" publicada em 27/03/2020
xiiFala extraída da reportagem do UOL "Covid-19 interrompe sonho de maternidade de professora na Bahia" publicada em 04/04/2020
xiiiFala extraída da reportagem da Folha de São Paulo "Coronavírus priva famílias de importantes rituais do luto" publicada em 14/04/2020
xivFala extraída da reportagem do UOL "Covid-19 interrompe sonho de maternidade de professora na Bahia" publicada em 04/04/2020
xvFala extraída da reportagem do G1 "Destruiu com a nossa família em menos de uma semana, diz filha de morador de Canoas que morreu por coronavírus" publicada em 11/04/2020
xviFala extraída da reportagem do G1 "Chocante' e 'absurdo', dizem famílias que tiveram corpos de parentes suspeitos de Covid-19 trocados em hospital no ABC" publicada em 09/04/2020
xviiFala extraída da reportagem do G1 "'Chocante' e 'absurdo', dizem famílias que tiveram corpos de parentes suspeitos de Covid-19 trocados em hospital no ABC" publicada em 09/04/2020
xviiiFala extraída da reportagem do G1 "'Chocante' e 'absurdo', dizem famílias que tiveram corpos de parentes suspeitos de Covid-19 trocados em hospital no ABC" publicada em 09/04/2020
xixFala extraída da reportagem da Folha de São Paulo "Manaus registra enterros simultâneos, aglomeração e coveiro sem proteção" publicada em 16/04/2020
xxFala extraída da reportagem do G1 "Conheça um pouco da história de quem foi vítima do coronavírus em SP" publicada em 30/03/2020
xxiFala extraída da reportagem da Folha de São Paulo "Coronavírus ataca sete membros de uma mesma família e mata quatro deles" publicada em 19/04/2020
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