Rev. bras. psicoter. 2021; 23(3):85-104
Bonow AJ, Henn TA, Gastaud MB, Narvaez JCM. Filhos da quarentena: Percepção de mães sobre o seu processo de maternagem e o desenvolvimento de seus filhos durante a pandemia. Rev. bras. psicoter. 2021;23(3):85-104
Artigo Original
Filhos da quarentena: Percepção de mães sobre o seu processo de maternagem e o desenvolvimento de seus filhos durante a pandemia
Child of quarantine: Mother's perception of their mothering process and their children's development during the pandemic
Niños en cuarentena: percepción de las madres sobre su proceso de maternidad y el desarrollo de sus hijos durante la pandemia
Andrezza Julie Bonowa; Tainá Aquino Henna; Marina Bento Gastaudb,c; Joana Corrêa de Magalhães Narvaeza
Resumo
Abstract
Resumen
INTRODUÇÃO
A modernidade redesenha a visão da maternidade, estado de ser mãe, através de uma mulher presente e afetuosa com os filhos e junto com esse arquétipo se instala pressão social que insiste em delimitar o modo como mães, desde sua incipiência, como gestantes e puérperas devem enfrentar esse momento1. A gestação e puerpério são fases por si só sensíveis e de transformações internas e externas para a mulher, podendo ser sinônimo de culpa, angústias e receios. O modo como a mulher irá se constituir mãe e desenvolver sua maternagem, o vínculo e a conexão necessária para atender as necessidades físicas e psíquicas do bebê2 é passível de influenciar no desenvolvimento da criança. Isso por que a relação mãe-bebê é o primeiro contato da criança com o mundo e é através dele que a base da sua constituição psíquica irá se estabelecer3.
Nos primeiros meses de vida o bebê é um ser totalmente dependente da ambiência que o circunda e de seus cuidadores. Para Winnicott4, esse estado de dependência absoluta com o ambiente (mãe ou substituta) faz menção ao estado mais primitivo dos bebês. Esse ambiente, para oferecer cuidados suficientemente bons, precisa ser capaz de reconhecer as necessidades sentidas pelo indivíduo dependente - capacidade chamada de confiabilidade por Winnicott - além de ter uma característica de previsibilidade, com o intuito de auxiliar o bebê a passar de um estado de não integração para um estado de identidade unitária5,6. Isso significa que em um estágio inicial de maturidade, o ser humano não possui a capacidade de se reconhecer como um eu separado do outro, amadurecimento que se torna possível através das interações com o ambiente. Para Piera Aulagnier7, a constituição do Eu é o saber do Eu sobre o Eu, ou seja, a finalidade é a de forjar uma imagem da realidade, do mundo que o cerca e da existência própria coerente com sua própria estrutura. Nesse sentido, o objetivo do bebê no caminho da sua estruturação psíquica é de construir um saber e uma imagem sobre si.
A literatura prévia nos impulsiona a supor o impacto que o ambiente tem sobre a maternidade e sobre os complexos processos de formação psíquica do bebê. As mulheres que vivenciaram o processo de maternagem no ano de 2020 no Brasil tiveram outro fator acrescentado aos seus desafios, a pandemia causada pela Covid-19. Desde março de 2020, medidas de controle sanitário visando conter a doença foram implementadas, dentre elas um estímulo ao isolamento ou distanciamento social, chamado coloquialmente no Brasil de "quarentena", embora, de forma geral, não se tenha aderido a uma restrição total. Devido à velocidade dos acontecimentos e a falta de conhecimento prévio das consequências da doença da Covid-19, a repercussão do isolamento socioafetivo na saúde mental da população tornou-se um fator de risco. Com o objetivo de minimizar possíveis efeitos negativos, pesquisadores começam a realizar estudos em busca de entendimento dos possíveis impactos desse cenário de saúde. Apesar de todos os esforços, os resultados ainda são escassos, principalmente em relação ao sutil e constituinte processo do puerpério.
A incipiente literatura indica que as mulheres são as mais afetadas psicologicamente pela pandemia, evidenciando maior frequência de sentimentos de depressão/tristeza, ansiedade/nervosismo, além de problemas de sono8. Além disso, a quarentena intensificou o trabalho diário da população feminina em casa com tarefas domésticas, cuidados com os filhos e uma parcela teve seu trabalho efetivo transposto para maneira remota. Os espaços extrafamiliares de cuidado e educação infantil se veem reduzidos, e restrição ao lar fica demandada de um desafio adicional frente aos sintomas incrementados pela pandemia. Especialistas apontam para mudanças no comportamento de crianças durante o isolamento, tais como demandar atenção constante, incremento da ansiedade, tristeza, choro, agressividade, agitação psicomotora, atitudes regressivas, além de alterações no sono e apetite9. Em crianças pequenas o principal impacto se dá pelo fato de não terem experiências para além do ambiente de casa e se privarem de adquirir um reservatório mnêmico mais amplo. Na tentativa de mitigar estes efeitos, Cartilhas de orientações e dicas para os pais foram lançadas como suporte para o melhor enfrentamento desse momento, como as realizadas pela Fundação Oswaldo Cruz10, pela Força tarefa PsiCOVIDa11, além de manuscritos científicos, como o artigo de Almeida et al.12 que visa oferecer um guia prático para promover a saúde mental de crianças e adolescentes.
Entretanto, o isolamento e a maior convivência com os familiares não trouxeram apenas aspectos negativos. Pesquisas apontam que o momento permitiu um maior conhecimento dos membros da família e a possibilidade de uma maior interação9,10. Demarca-se que as dificuldades comuns de uma família em quarentena possuem associação com sua estruturação definida anteriormente à pandemia. No que tange a famílias que enfrentam novas configurações internas, por exemplo, com novos membros chegando durante esse processo em que o contexto externo também se apresenta configurado de forma distinta, o cotidiano pode se estabelecer de forma ainda mais incerta, o que pode afetar diretamente o processo de maternagem de uma mãe com seu bebê recém-nascido.
Frente a essa realidade, e ao fato de que a produção na área é incipiente e se forma na medida em que o fenômeno transcorre, apesar de encontrarmos artigos nas plataformas de busca que abordassem as consequências e impactos do isolamento social (seja por Covid-19 ou por outras epidemias e catástrofes prévias) em relação à maternidade e o processo de desenvolvimento dos bebês, as produções ainda são mais escassas. Logo, demarca-se a necessidade de um aprofundamento em relação aos impactos causados pelo distanciamento social durante o processo de maternagem. Portanto, esse estudo tem como objetivo investigar a percepção de mulheres acerca do processo inicial de maternagem e do desenvolvimento de seus bebês nascidos no contexto de isolamento social devido a Covid-19.
MATERIAL E MÉTODO
Delineamento
Trata-se de um estudo qualitativo, de caráter exploratório, o qual foi devidamente aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), CAAE: 38883920.0.0000.5345 além de obedecer às determinações das Resoluções 196 e 466 do Conselho Nacional de Saúde, que dispõem sobre a pesquisa com seres humanos, e da Resolução 510 do Conselho Nacional de Saúde, que dispõe sobre a pesquisa em Ciências Humanas e Sociais.
Participantes
Participaram da pesquisa oito mulheres, as quais correspondiam ao critério de inclusão de serem mães de bebês nascidos no período de isolamento social no Brasil (entre janeiro e novembro de 2020). Não houve nenhuma restrição quanto a outro critério sociodemográfico que pudesse ser de exclusão. O método de acesso aos participantes foi pela técnica bola de neve, que se qualifica como uma forma de amostra não probabilística que utiliza cadeias de referência para a sua composição13, a partir da indicação de sujeitos da rede dos participantes. Nesta pesquisa, a participante inicial foi escolhida através da rede de contatos das pesquisadoras, tendo em vista seus envolvimentos em grupos de estudos e de suporte em relação à maternidade. Justifica-se o uso da bola de neve por tratar-se de um método pertinente para contatar determinados grupos de difícil acesso13, ainda mais em um contexto pandêmico e de natural reclusão como o puerpério. Foram considerados critérios de exclusão mulheres com psicose ou puerperal ou qualquer condição psíquica mais grave atribuída ou não a gestação, como por exemplo sintomas agudos de Transtorno de Humor no momento da pesquisa, que inviabilizasse responder as questões estabelecidas. O número de participantes foi definido por meio do critério de saturação teórica14, não sendo incluídas mais entrevistas, visto a repetição dos dados. As participantes foram identificadas como P01, P02, P03, P04, P05, P06, P07 e P08.
Coleta de dados e instrumento
Inicialmente, foi feito contato por telefone com as sujeitas para a marcação de uma vídeo chamada via plataforma criptografada do google com a participante em potencial, no qual foi lido o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) especificando objetivos e etapas da pesquisa, e requisitado o consentimento verbal da participante, gravado e online, visto que o recolhimento da assinatura não era viável em respeito ao isolamento físico e proteção das participantes devido a pandemia do Covid-19. Foi enviada uma via do TCLE assinada pelas pesquisadoras, por e-mail para as sujeitas.
Em sequência, aquelas mães que consentiram a participação na pesquisa foram entrevistadas individualmente pela equipe de pesquisa. A entrevista era composta por perguntas abertas e previamente estipuladas (entrevista semiestruturada) que se deu igualmente online por vídeo em plataforma criptografada com duração média de 1 hora. A chamada foi gravada e transcrita para análise. Visando acolher possíveis demandas emocionais advindas dessa entrevista, as participantes foram convidadas a compor um grupo de escuta online em plataforma criptografada para trocarem experiências e vivências. Este espaço teve um intuito ético e não foi utilizado como um instrumento adicional da pesquisa. O grupo foi conduzido pelas pesquisadoras, estudantes de psicologia e uma psicóloga com formação na área clínica e especialidade na infância.
A entrevista semi-estruturada era foi composta por perguntas amplas desenvolvidas pelas pesquisadoras inserindo os assuntos considerados relevantes para investigação:
1. Como está sendo vivenciar o isolamento social com um bebê pequeno?
2. Considera que suas expectativas em relação à maternidade foram alteradas com a quarentena?
3. Quais os maiores prejuízos que tu sentes por estar vivendo este momento na quarentena? Quais os maiores ganhos?
4. Qual sua percepção sobre o desenvolvimento do seu bebê (considerando desenvolvimento social, afetivo, interação e motor)?
5. Percebe mudanças no desenvolvimento de seu filho diferentes das «esperadas/normais» às quais atribui a vivência de isolamento social?
6. Ser mãe está sendo como você esperava? Se não, a quarentena pode estar relacionada com isso? E como?
7. Você já foi mãe anteriormente? Se sim, quais diferenças percebe em relação a sua maternagem e ao desenvolvimento do seu bebê neste contexto de pandemia em comparação ao processo vivido em um tempo prévio?
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