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Revista Brasileira de Psicoteratia

Submissão Online Revisar Artigo

Rev. bras. psicoter. 2021; 23(3):33-46



Artigo Original

Bem-estar como fator moderador de transtornos mentais na pandemia

Well-being as a moderating factor of mental desorders in the pandemic

El bienestar como factor moderador de los transtornos mentales en la pandemia

Manuela Almeida da Silva Santo; Michael de Quadros Duarte; Jaqueline Portella Giordani; Carolina Palmeiro Lima; Lívia Maria Bedin; Clarissa Marceli Trentini

Resumo

Em março de 2020 a Organização Mundial da Saúde declarou a pandemia do novo coronavírus. Além do adoecimento pelo vírus, sabe-se que epidemias e pandemias podem provocar também adoecimento psíquico das populações, devido às mudanças necessárias no perído. O Brasil tem sido vastamente criticado pela gestão ineficiente da pandemia. Atualmente, figura entre os países com maiores índices de infecções e óbitos. O objetivo deste estudo foi avaliar a presença de riscos à saúde mental da população brasileira durante o período da pandemia do coronavírus e qual possível fator mediador para o desenvolvimento de transtornos mentais. Participaram deste estudo 738 pessoas com idade entre 18 e 80 anos (M = 32,9, DP = 10,9), 71,4% mulheres. Foi um estudo transversal e os instrumentos utilizados foram um questionário sociodemográfico, o Self Report Questionnaire-20 e a Personal Wellbeing Index. Para as análises de moderação foi utilizado o pacote PROCESS para SPSS. Os resultados encontrados indicam que o bem-estar tem papel moderador no adoecimento mental, independentemente da presença ou não de diagnóstico prévio de transtorno mental. O bem-estar reduziu significativamente os sinais e sintomas de transtornos mentais nessa amostra, mostrando-se um importante fator de promoção de saúde mental. As limitações do estudo dizem respeito às diferenças culturais entre as regiões do país e à predominância de respondentes gaúchos na amostra. Discute-se a necessidade de investir em intervenções de promoção do bem-estar durante a pandemia para mitigar os riscos de adoecimento mental da população.

Descritores: Coronavirus; Saúde mental; Fatores de proteção

Abstract

In March 2020, the World Health Organization declared a New Coronavirus pandemic. Besides getting sick from the virus, it is known that epidemics and pandemics can also cause psychological illness in the population, due to the necessary changes during the period. Brazil has been widely criticized for its inefficient management of the pandemic. Currently, it ranks among the countries with the highest rates of infections and deaths. The objective of this study was to evaluate the presence of mental health risks of the Brazilian population during the period of the coronavirus pandemic and what possible mediating factor of mental illness. Participated in this study 738 people aged between 18 and 80 years (M = 32.9, SD = 10.9), 71.4% women. It was a cross-sectional study and the instruments used were a sociodemographic questionnaire, the Self Report Questionnaire-20 and Personal Wellbeing Index. The PROCESS package for SPSS was used for the moderation analyses. The results found indicate that well-being has a moderating role in mental illness, regardless of the presence or absence of a previous diagnosis of mental disorder. Well-being significantly reduced the signs and symptoms of mental illness in this sample, proving to be an important factor in promoting mental health. The limitations of the study concern the cultural differences between the regions of the country and the predominance of respondents from Rio Grande do Sul in the sample. The need to invest in wellness promotion interventions during the pandemic to mitigate the risks of mental illness in the population is discussed.

Keywords: Coronavirus; Mental health; Protective factors

Resumen

En marzo de 2020, la Organización Mundial de la Salud declaró una Nueva Pandemia de Coronavirus. Además de la enfermedad por el virus, se sabe que las epidemias y pandemias también pueden causar enfermedades psicológicas en las poblaciones, debido a los cambios necesarios en el periodo de la epidemia. Brasil ha sido ampliamente criticado por su ineficiente gestión de la pandemia. En la actualidad, se encuentra entre los países con mayores tasas de infecciones y muertes. El objetivo de este estudio fue evaluar la presencia de riesgos para la salud mental de la población brasileña durante el período de la pandemia de coronavirus y cuál es el posible factor mediador de la enfermedad mental. Participaron en este estudio 738 personas con edades comprendidas entre los 18 y los 80 años (M = 32,9, DT = 10,9), 71,4% mujeres. Fue un estudio transversal y los instrumentos utilizados fueron un cuestionario sociodemográfico, el Self Report Questionnaire-20 y Personal Wellbeing Index. Para los análisis de moderación se utilizó el paquete PROCESS para SPSS. Los resultados encontrados indican que el bienestar tiene un papel moderador en el deterioro mental, independientemente de la presencia o no de un diagnóstico previo de trastorno mental. El bienestar redujo significativamente los signos y síntomas de la enfermedad mental en esta muestra, demostrando ser un factor importante para la promoción de la salud mental. Las limitaciones del estudio se refieren a las diferencias culturales entre las regiones del país y al predominio de encuestados de Rio Grande do Sul en la muestra. Se discute la necesidad de invertir en intervenciones para promover el bienestar durante la pandemia para mitigar los riesgos de enfermedad mental de la población.

Descriptores: Coronavirus; Salud mental; Factores protectores

 

 

INTRODUÇÃO

O mês de março 2020 foi marcado pelo anúncio da Organização Mundial da Saúde que veio a público declarar a pandemia do novo coronavírus (Covid-19), causada pelo vírus Sars-CoV-2 que já circulava desde dezembro de 20191. Desde então o mundo vem vivenciando mudanças bruscas nas suas rotinas, sendo um exemplo disso medidas como lockdown e o distanciamento social. O registro mais recente de uma situação similar ocorreu somente no surto de Influenza, conhecida como gripe espanhola - embora não tenha sua origem na Espanha - em 19182. Até a primeira quinzena de agosto de 2021, o mundo contava com 205.338.159 casos confirmados da Covid-19 e 4.333.094 mortes nos 223 territórios onde há o registro e controle das infecções por coronavírus3.

Os dados oficiais indicam que Brasil é um dos países que pior tem lidado com a pandemia, ocupando atualmente o terceiro lugar com o maior número de casos e mortes do mundo, com cerca de 573.658 vítimas fatais confirmadas pela doença até a primeira quinzena de agosto de 2021, atrás apenas dos Estados Unidos e Índia que contavam com 644.281 e 433.998 óbitos, respectivamente, no mesmo período3. Seja por razões políticas, onde os líderes de Estado desconsideram as recomendações das organizações internacionais de saúde, ou por problemas de gestão, desde que são colocadas na administração do Ministério da Saúde pessoas despreparadas e incompatíveis com o cargo4, os impactos na saúde mental são extensos.

Para além dos efeitos diretos na saúde da população e as repercussões econômicas negativas causadas pela extensão e proporção da pandemia, são cada vez mais numerosos os estudos que apontam impactos de médio e longo prazo na saúde mental das pessoas5,6,7,8,9. Como exemplo, um estudo realizado nos Estados Unidos, país que chegou a ser o epicentro da pandemia da Covid-19 em 2020, comparou o risco para distúrbios mentais de 2.032 adultos antes e durante a pandemia. Os resultados apontaram que em abril de 2020 a chance era oito vezes maior de preencherem critérios para adoecimento mental grave9. Outro estudo, realizado na Índia, encontrou que o agravamento da saúde mental da população durante a pandemia fez crescer o registro de casos de suicídio no período 10. Os fatores motivadores de suicídio citados pelos autores foram o medo de ser contaminado pela Covid-19, problemas financeiros causados pela pandemia, sentimento de solidão e diagnóstico positivo para Covid-19.

A nível nacional, há registro no Conselho Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), o qual é ligado ao Conselho Nacional de Saúde11, mais de 180 pesquisas que investigam os impactos da pandemia na saúde mental. Os resultados apontados nos estudos publicados não são diferentes do restante do mundo, indicando um aumento significativo nos níveis de adoecimento mental e risco para o desenvolvimento de transtornos mentais menores12,13,7,14.

Um desses estudos foi realizado no sul do país e tinha como objetivo investigar os principais fatores de risco para o adoecimento mental da população durante a pandemia da Covid-19, utilizando um questionário sociodemográfico e o Self Report Questionnaire (SRQ-20). Os resultados indicaram que quase metade dos respondentes (40,9%) apresentavam risco para o desenvolvimento de transtornos mentais menores, como estresse, ansiedade e depressão12. Entre os fatores de risco, ter a renda diminuída durante a pandemia aumentava 1,4 vezes a chance de adoecimento, ser do grupo de risco 1,6 vezes, ter diagnóstico prévio duas vezes e ser mulher três vezes a chance de desenvolver algum transtorno mental. Dentre a população investigada, os jovens tinham 6% mais chance de adoecimento mental do que a população adulta ou idosa12.

Diferentes métodos de pesquisa e análises têm sido realizados durante o período da pandemia da Covid-19, com o objetivo de identificar fatores protetivos e de risco para o adoecimento mental, verificam-se desde estudos documentais que investigam maior incidência de determinado adoecimento ou evento ligado à saúde mental, como suicídios10, até a formulação de modelos explicativos para identificar quais os grupos mais vulneráveis ao adoecimento mental durante a pandemia12,9,13,7,14. Também se tem avançado em análises mais complexas que investigam variáveis mediadoras do risco de adoecimento mental, ou seja, aquelas que contribuem, em parte, e que ampliam o risco para adoecimento mental. Ainda, tem-se investigado variáveis moderadoras, que mitigam o grau de comprometimento ou de risco para o desenvolvimento de transtornos mentais menores15,16. Entre esses fatores, o sofrimento psíquico estava relacionado com menores índices de bem-estar. Durante a pandemia, identificou-se que a percepção de bem-estar das pessoas diminuiu significativamente, estando associada tanto à perda de renda quanto ao adoecimento mental17. Nesse sentido, o bem-estar pode ser considerado um fator importante para a promoção da saúde mental e diminuição de sofrimento e sintomas, mesmo com o diagnóstico de transtornos mentais18, e, portanto, a compreensão de seu papel na proteção da saúde mental é essencial.

Assim, o objetivo desse estudo foi avaliar os indicadores de saúde mental da população brasileira durante o período da pandemia da Covid-19, bem como, identificar os fatores protetivos e moderadores do adoecimento mental, ou seja, aqueles que diminuem as chances de desenvolvimento de transtornos mentais menores. Este estudo tem a intenção de investigar esses fatores de forma que as instituições e organizações voltadas à saúde no país possam direcionar esforços e recursos, já tão escassos, a intervenções mais assertivas e efetivas. Dessa forma, pode-se buscar mitigar os impactos da pandemia na saúde mental da população brasileira a médio e longo prazo, fornecendo dados que auxiliem em políticas públicas. A figura 1 representa o diagrama conceitual da hipótese do modelo de moderação deste estudo, que pressupõe que o bem-estar tem papel mediador no risco do adoecimento mental, independentemente de possuir ou não diagnóstico prévio em algum momento da vida.


Figura 01. Diagrama conceitual da hipótese das relações do modelo de moderação. H1: Presume-se que o bem-estar (W) tenha efeito moderador direto na relação entre possuir um diagnóstico prévio de transtorno mental (X) e risco para o adoecimento mental no presente (Y).



MÉTODO

Participantes

Participaram deste estudo 738 pessoas entre 18 e 80 anos (M = 32,9, DP = 10,9). Os participantes eram, em sua maioria, mulheres (71,4%) e eram advindos das regiões sul, sudeste, centro-oeste, norte e nordeste do Brasil, sendo que a maior parte era residente do estado do Rio Grande do Sul (90,2%).

Definiu-se como critério de inclusão possuir 18 anos ou mais, ser alfabetizado e morar no Brasil durante o período da pandemia. Não foram definidos critérios de exclusão para esse estudo.

Procedimentos éticos

Esse estudo é resultado de projeto de pesquisa submetido à Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), sendo aprovado sob o número do CAAE: 30114520.1.0000.5334 e Parecer: 3.959.863. Os participantes concordaram em participar da pesquisa através do aceite a um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Foram seguidas todas as diretrizes da Resolução 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde19.

Coleta de dados

O questionário foi respondido via survey online entre maio e dezembro de 2020. Foram realizados posts em redes sociais e da Universidade, bem como, envio da pesquisa a contatos dos pesquisadores para a coleta de dados, cuja amostra se deu por conveniência. Um e-mail de contato com os pesquisadores foi fornecido previamente e ao final do questionário caso os participantes se sentissem desconfortáveis com alguma questão do questionário. Nesses casos, foram fornecidos pelos pesquisadores alguns contatos de serviços de saúde mental, na rede pública, do respectivo município/região do participante. Além disso, ao final do questionário os participantes receberam cards ilustrados com dicas práticas de autocuidado em saúde mental, os quais foram produzidos pelos próprios pesquisadores dessa pesquisa.

Instrumentos

Questionário Sociodemográfico

Os participantes responderam a um Questionário Sociodemográfico, com 18 itens de autorrelato sobre seu perfil sociodemográfico, seu estado de isolamento social, fonte e exposição à informações sobre a pandemia e sobre métodos de evitação de contágio.

Self-Report Questionnaire (SRQ-20)

Instrumento desenvolvido pela OMS que tem sido amplamente utilizado para mensurar indicadores de possíveis transtornos mentais e comportamentais. Ele funciona como um instrumento de screening para a detecção de sintomas, sugerindo o nível de suspeição (presença/ausência) de transtornos mentais menores como depressão, ansiedade e estresse. Na adaptação para o contexto brasileiro do SRQ-2020, o instrumento mostrou-se adequado para uso em estudos nacionais, apresentando índice de sensibilidade de 68% e de especificidade de 70,7%. O valor preditivo positivo foi de 73,9%.

Personal Wellbeing Index (PWI)

Este instrumento contém 10 itens com afirmativas que têm a intenção de mensurar a percepção de bem-estar através de autorrelato21. As respostas a estes itens são do tipo Likert e variam de 0 (Totalmente insatisfeito/a) a 10 (Totalmente satisfeito/a). As análises de adequabilidade para o contexto brasileiro dessa escala foram realizadas22, demonstrando boas propriedades psicométricas (α = 0,79; X2 = 17,402; gl = 10; CFI = 0,99, RMSEA (90 % CI) = 0,03 [0,001-0,65]).

Análise de dados

Inicialmente foram realizadas análises descritivas, de normalidade e adequação da amostra para a análise a ser empregada. Também foram conduzidas análises de correlação bivariadas para verificar a correlação das variáveis analisadas. Foram analisados o cumprimento dos pressupostos para a realização das análises de moderação23,24. Entende-se como pressupostos mínimos para moderação: (a) linearidade entre as variáveis, ou seja, a variável independente (X), assim como a variável dependente (Y) devem estar correlacionadas; (b) Normalidade; (c) Homocedasticidade; (d) Baixa multicolinearidade; (e) medidas escalares e ausência de outliers extremos23,24. Após o cumprimento desses pressupostos, foi realizada análise de moderação com o pacote PROCESS para o Statistical Package for the Social Sciences (SPSS), versão 20.0. A análise de moderação foi utilizada para verificar o quanto a variável independente bem-estar modera ou regula o desfecho da relação entre a variável independente diagnóstico prévio na variável dependente risco para adoecimento mental24.


RESULTADOS

Dos 738 respondentes, mais de um quarto deles (28,9%) estavam desempregados, sendo que mais de um terço deles (35,6%) teve redução da renda após a pandemia. Quando perguntados sobre estar em algum acompanhamento de saúde mental (psicológico ou psiquiátrico), 249 (33,7%) responderam que sim, sendo que do total de respondentes 216 (29,3%) já haviam recebido algum diagnóstico de transtorno mental. A maior parte dos respondentes declarou estar cumprindo o isolamento/distanciamento social (74,8%) e não possuir filhos (69,6%). A tabela 1 apresenta um resumo dos dados e também as médias e desvios-padrão das variáveis analisadas.




Como um dos principais pressupostos da análise de moderação é a correlação, foram analisadas as correlações existentes entre as variáveis e os dados sociodemográficos como, sexo e idade. Os resultados corroboram o que já é apresentado na literatura da área25 que apontam relação proporcionalmente inversa entre o bem-estar e adoecimento mental, que nessa amostra específica apresentou uma correlação negativa forte (r = - 0,64). Ao contrário do que se encontra em alguns estudos, embora a prevalência de adoecimento mental seja significativamente maior entre as mulheres, nessa amostra não apresentou correlação significativa (r = 0,07). Já a idade apresentou correlações fracas com bem-estar e transtorno mental, sendo quanto mais velha a pessoa, há uma relação muito pequena com o aumento do bem-estar e a redução de sinais e sintomas de transtornos mentais. Nesse sentido é importante lembrar que isso ocorre com essa amostra específica, que varia entre 22 e 42 anos. Dentre os participantes que tinham em algum momento da vida tido algum diagnóstico de transtorno mental, tendiam a ser mais velhas, apresentavam menores índices de bem-estar e mais sinais e sintomas de adoecimento mental. O detalhamento dos dados encontra-se na tabela 2.




ANÁLISE DE MODERAÇÃO

Para verificar a hipótese de que o bem-estar é um moderador significativo na relação entre possuir ou não diagnóstico anterior de transtorno mental e risco para adoecimento mental, foi realizada a análise de moderação usando a macro PROCESS para SPSS, sendo utilizado o método bootstrap com 5.000 amostras24. Foi escolhido o modelo 1 para realizar essa análise, que é o modelo indicado pelo autor para a realização de análises de moderação simples24. O modelo testado foi significativo, explicando 45% da variância dos dados (R2 = 0,45; p<0,001). A análise confirma a hipótese de que o bem-estar diminui significativamente o efeito de possuir diagnóstico prévio e o aumento no risco do adoecimento mental durante a pandemia. Os resultados são apresentados na tabela 3.




O efeito condicional do moderador foi de 1,86 (PWI = 25), 2,47 (PWI = 40) e 3,12 (PWI = 56) na relação entre as variáveis. O teste de Johnson-Neyman nos permite identificar em quais condições o moderador tem impacto no desfecho analisado, encontrando nessa análise uma grande região de significância da variável moderadora no controle da variável desfecho, que é o risco para o adoecimento mental (PWI = 12,13; [abaixo = 4,52%, acima = 95,47%])26. Isso indica que escores de bem-estar (PWI) a partir desse valor já tem efeito moderador para o adoecimento mental (SRQ-20). O gráfico abaixo representa as interações entre as variáveis analisadas.

A figura 2 apresenta o gráfico com as interações entre as variáveis de bem-estar, ter um transtorno mental diagnosticado anteriormente e pontuações no SRQ-20. Especificamente, os respondentes que apresentaram escores mais altos na escala de bem-estar tinham uma inclinação mais íngreme que os demais: isso pode significar que, quanto maiores forem os níveis de bem-estar da amostra, menos o seu histórico de saúde mental (no caso, já ter recebido um diagnóstico prévio), irá afetar nos seus resultados atuais do SRQ-20.


Figura 02. Interação entre as variáveis



DISCUSSÃO

Os resultados desse estudo demonstraram que ter recebido diagnóstico de algum transtorno mental anterior à pandemia correlaciona-se positivamente com resultados atuais no SRQ-20 - ou seja, com a presença de sintomas de risco para transtornos mentais menores nesse momento pandêmico. Entretanto, viu-se que a presença de maiores níveis de bem-estar é capaz de moderar essa relação. Por conseguinte, viu-se que o diagnóstico de algum transtorno mental antes da pandemia não possui significância nos escores do SRQ-20 caso os índices de bem-estar estejam elevados nessa população.

A literatura vem apontando as principais ameaças à saúde emocional e bem-estar da população durante a pandemia14. Existem evidências de que o grau de ameaça da Covid-19 percebido pelo indivíduo teria um efeito negativo indireto no bem-estar mental subjetivo, mediado por um efeito positivo da ansiedade futura27. Contudo, esse processo seria moderado pelo nível de resiliência do indivíduo, medido como traço de personalidade27. No presente estudo, também foi possível avaliar aspectos relacionados com a saúde emocional e a pandemia, sendo que os indivíduos com maior número de sinais e sintomas de transtornos mentais menores (rastreado pelo SRQ-20), haviam pontuado mais baixo na escala de bem-estar (PWI).

Entretanto, estudos recentes têm reportado variáveis positivas que apresentam efeitos mediadores relevantes para o bem-estar, como sentido da vida, otimismo e flexibilidade cognitiva28. Além disso, o senso de pertencimento, a autocompaixão e bem-estar espiritual também são variáveis apontadas como potenciais fatores protetivos para transtornos mentais29. Um estudo realizado na China, com mais de 11 mil indivíduos, revelou que pessoas que percebiam a si mesmas como tendo mais conhecimento sobre a doença e o vírus (independentemente do real conhecimento) foram capazes de experimentar mais experiências de felicidade durante o período avaliado30. Assim, entendeu-se que os maiores níveis de percepção de conhecimento sobre a Covid-19 poderiam ocasionar maior senso de controle, o qual protegeria o bem-estar emocional30. Nas análises de correlação deste estudo, também foi possível avaliar possíveis fatores de proteção ao transtorno mental. Apresentar menor número de sinais e sintomas no SRQ-20 mostrou-se ligeiramente correlacionado com estar em algum acompanhamento de saúde mental durante a pandemia. Assim, pode-se entender que o atendimento especializado em saúde mental pode prover experiências emocionais mais positivas às pessoas, apesar do contexto social e sanitário em que elas se encontram18.

Dessa forma, reforça-se a importância de intervenções que possam mitigar o efeito do estresse causado pela pandemia nos níveis de bem-estar, contribuindo dessa forma para a diminuição do risco de transtornos mentais para aqueles que se mostram mais suscetíveis a isso28. Os grupos em maior vulnerabilidade para o adoecimento mental durante o período da pandemia já foram identificados em diversos estudos31,29, sendo que no Brasil também já foram encontrados resultados parecidos com o de outros lugares o mundo14. Mulheres, adultos jovens, pessoas com transtornos mentais pré-existentes e em vulnerabilidade socioeconômica estão entre os protagonistas desse cenário32. Nesse sentido, é possível supor que grupos diferentes exigem medidas de bem-estar diferentes.

Além disso, outras variáveis também parecem interferir no bem-estar experienciado durante a pandemia. Um estudo no Reino Unido realizado durante as primeiras 6 semanas de lockdown do país, identificou que o os níveis de bem-estar foram aumentando ao longo das semanas, ao passo que sintomas de ansiedade diminuíram - indicando uma relação entre essas variáveis32. De acordo com os resultados do presente estudo, o fato de um indivíduo já ter recebido ao longo da sua vida algum tipo de diagnóstico de transtorno mental não é suficiente para apontar um risco maior de adoecimento mental durante a pandemia, especialmente para aqueles indivíduos com índices satisfatórios de bem-estar. Nesse sentido, entende-se que não é apenas o histórico de saúde mental da população que impacta na sua qualidade emocional nesse momento: é preciso considerar variáveis contextuais, temporais, ambientais e culturais para se determinar o curso da saúde mental de uma população32 .

Com base nos resultados desse estudo, faz-se necessário pensar em estratégias possíveis de serem aplicadas na população que possam aumentar os escores de bem-estar e diminuir a experiência de emoções negativas relacionadas à pandemia. Tempo ao ar livre, prática de exercícios físicos e de hobbies, regularidade no sono, jardinagem e cuidado com as crianças, por exemplo, são atividades já relatadas que propiciaram benefícios emocionais para algumas pessoas durante a pandemia33,34.

O presente estudo apresentou limitações que devem ser apontadas. Primeiramente, como o Brasil é um país com tantas diferenças socioculturais e apresenta particularidades no modo como cada estado realiza a gestão da crise de saúde pública, é necessário que se tenha cuidado na generalização dos resultados encontrados nesse estudo, já que a amostra foi constituída em sua maioria por pessoas residentes na região sul do Brasil. Nessa investigação, considerou-se a variável de diagnóstico prévio de transtorno mental a partir do autorrelato dos participantes, o que pode tornar essa uma medida menos precisa - uma vez que a escala de rastreio (SRQ-20) não possui caráter retrospectivo. Ainda, na análise de moderação, pode-se considerar, inicialmente, que ter uma psicopatologia prévia é uma variável que se sobrepõe no escore do SRQ-20. Entretanto, ressalta-se que essas duas medidas são distintas, visto que ocorreram em momento diferentes na vida do indivíduo (uma ocorreu anterior à pandemia e a outra está ocorrendo no momento presente). Além disso, o escore do SRQ-20 foi avaliado de maneira contínua - e não dicotômica - o que permite analisar com maior nível de variância as pontuações de sinais e sintomas de transtornos mentais menores. Ainda, acredita-se que estudos futuros podem utilizar variáveis mediadoras para averiguar se o efeito moderador do bem-estar, encontrado nesse estudo, se mantém em outras amostras e com outras análises. Finalmente, ressalta-se a importância dos achados deste estudo para subsidiar ações de promoção de saúde mental e prevenção de agravos. Faz-se necessário um preparo dos serviços e políticas públicas de saúde para realizar ações de promoção do bem-estar, de modo a atenuar os danos de adoecimento psíquico da população durante e após a pandemia.


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Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, Instituto de Psicologia - Porto Alegre/RS - Brasil

Autor correspondente

Manuela Almeida da Silva Santo
manuelassanto@gmail.com

Submetido em: 03/06/2021
Aceito em: 21/08/2021

Contribuições: Manuela Almeida da Silva Santo - Análise estatístisca, Coleta de Dados, Conceitualização, Gerenciamento do Projeto, Investigação, Metodologia, Redação - Preparação do original, Redação - Revisão e Edição, Visualização; Michael de Quadros Duarte - Análise estatística, Coleta de Dados, Conceitualização, Gerenciamento do Projeto, Investigação, Metodologia, Redação - Preparação do original, Redação - Revisão e Edição, Software, Visualização; Jaqueline Portella Giordani - Análise estatística, Coleta de Dados, Conceitualização, Gerenciamento do Projeto, Investigação, Metodologia, Redação - Preparação do original, Redação - Revisão e Edição, Visualização; Carolina Palmeiro Lima - Análise estatística, Coleta de Dados, Conceitualização, Gerenciamento do Projeto, Investigação, Metodologia, Redação - Preparação do original, Redação - Revisão e Edição, Visualização; Lívia Maria Bedin Tomasi - Análise estatística, Gerenciamento do Projeto, Metodologia, Redação - Revisão e Edição, Software, Supervisão, Validação, Visualização; Clarissa Marceli Trentini - Análise estatística, Conceitualização, Gerenciamento do Projeto, Investigação, Metodologia, Redação - Preparação do original, Redação - Revisão e Edição, Supervisão, Validação, Visualização.

 

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