Rev. bras. psicoter. 2021; 23(3):47-70
Costa DS, Paula JJ, Serpa ALO, Diaz AP, Rocha MCM, Pinto ALCB, et al. Preditores de sofrimento psicológico e prevalência de transtornos mentais autodeclarados em profissionais de saúde e na população em geral durante a pandemia de Covid-19 no Brasil. Rev. bras. psicoter. 2021;23(3):47-70
Artigo Original
Preditores de sofrimento psicológico e prevalência de transtornos mentais autodeclarados em profissionais de saúde e na população em geral durante a pandemia de Covid-19 no Brasil
Predictors of psychological distress and prevalence of self-reported mental disorders in health care professionals and in the general population during the Covid-19 pandemic in Brazil
Predictores de la angustia psicológica y la prevalencia de los trastornos mentales autodeclarados en los profesionales de la salud y en la población general durante la pandemia de Covid-19 en Brasil
Danielle de Souza Costaa,b; Jonas Jardim de Paulaa,b,c; Alexandre Luiz de Oliveira Serpaa,d; Alexandre Paim Diaza,e; Mariana Castro Marques da Rochaa,b; André Luiz de Carvalho Braule Pintoa,b; Rui Mateus Joaquima,b; Mayra Isabel Correia Pinheirol; Fabiano Franca Loureiroa; Leonardo Baldaçarak; Wagner Meira Juniorf; Antônio Geraldo da Silvaa,g,h; Leandro Fernandes Malloy-Diniza,i; Débora Marques de Mirandaa,j
Resumo
Abstract
Resumen
INTRODUÇÃO
Em dezembro de 2019, o mundo foi apresentado ao SARS-CoV-2, um betacoronavírus recém-descoberto que estaria por trás de uma das maiores pandemias vistas pela humanidade no último século, a pandemia da Doença pelo Coronavírus 2019 (Covid-19)1. A rápida transmissão do SARS-CoV-2 e a incerteza sobre como evitar a propagação da Covid-19 ativaram um modo de alerta global. Sabe-se que situações incertas e perigosas podem induzir respostas de estresse que são adaptativas quando transientes (se duram de minutos a horas), mas o estresse crônico (presente por dias a semanas) afeta negativamente o funcionamento cerebral e o comportamento2. Portanto, não é surpreendente que a saúde mental tenha se tornado um tema crucial durante a pandemia de Covid-19, visto que reservaria ao mundo a experiência de diversos estressores.
Na tentativa de se retardar a propagação da Covid-19, muitos aspectos da nossa rotina mudaram subitamente. Entre as medidas preventivas, várias mudanças de comportamento tiveram que ser adotadas, como o distanciamento social, o trabalho e o estudo remotos, a sanitização constante do ambiente, a frequente limpeza das mãos e o uso de máscaras. No início, o medo de ser infectado era iminente e a atenção aos ainda incertos sintomas da Covid-19 necessária. Se ponderarmos que, em relação a Covid-19, ninguém está realmente seguro até que todos estejam seguros, a situação fica ainda mais complicada. Isso porque não é possível precisar quando a pandemia vai realmente acabar, visto que seu fim depende de uma genuína e coordenada vontade coletiva de fazê-lo e, além disso, o constante debate sobre o impacto econômico das ações de mitigação da Covid-19 aumenta a insegurança das pessoas3.
Até o momento, diversos fatores foram relacionados à problemas de saúde mental na Covid-19, incluindo idade, gênero, estado civil, escolaridade, ocupação, renda, local de residência, contato próximo com pessoas com Covid-19, condições de saúde física e mental prévias, medidas pessoais de proteção, risco de contrair a Covid-19, entre outros4. O que se tem esperado é que o já alto custo social decorrente de problemas de saúde mental irá aumentar3,5,6 e um grupo particularmente vulnerável ao estresse psicológico e à deterioração da saúde mental no meio de uma pandemia são os profissionais da saúde, especialmente aqueles trabalhando na linha de frente de enfrentamento7. Nos países de baixa e média renda, por exemplo, restrições econômicas podem levar a um número insuficiente de profissionais médicos treinados, a salários limitados, escassez de aparelhos médicos e atividades descoordenadas8. Sistemas de saúde sobrecarregados pela Covid-19 têm se visto obrigados a discutir e implementar protocolos de triagem gerando um intenso debate sobre aspectos éticos e preocupação sobre inequidades9. O distresse psicológico (p.ex., sintomas de depressão e ansiedade) em profissionais de saúde pode diminuir sua capacidade de agir com segurança em relação a eles mesmos e aos seus pacientes10. Além disso, a falta de consciência sobre os próprios problemas mentais pode levar à falta de reconhecimento e tratamento desses problemas nessa população11. Portanto, estudos que forneçam informação confiável sobre a saúde mental dos profissionais de saúde durante a pandemia de Covid-19 são muito relevantes para guiarem decisões eficientes sobre como evitar a perda desse capital mental justamente num momento em que ele é tão necessário.
Alguns estudos realizados nos primeiros meses da pandemia nos dão uma ideia de como a saúde mental da população geral e dos profissionais de saúde tem sido afetada. Na China, numa amostra de 1.210 indivíduos, 54% consideraram o distresse psicológico associado ao surgimento da pandemia de Covid-19 pelo menos moderado, cerca de um terço deles reportaram sintomas de ansiedade em nível moderado a grave e 17% reportaram sintomas de depressão em nível moderado a grave12. Nos EUA, menos de 9% dos respondentes de um estudo relataram distresse grave durante a epidemia de Influenza em 2018, enquanto 14% das pessoas já reportavam distresse grave nos primeiros meses da pandemia de Covid-1913. Pessoas com um diagnóstico psiquiátrico prévio ou que perderam um amigo ou parente por Covid-19 podem aumentar seu nível de distresse psicológico14. Em relação aos profissionais de saúde, identificou-se sintomas de ansiedade, medo, raiva, irritabilidade e insônia e a persistência de estressores foi associada à sintomas compatíveis com transtornos depressivos, ansiosos e com o transtorno de estresse pós-traumático15-18. Entre 1.257 profissionais de saúde na China, níveis mais altos de distresse foram encontrados entre os profissionais na linha de frente de enfrentamento à Covid-19 de regiões com alta prevalência de infecções17. Um outro estudo conduzido na China comparou as taxas de ansiedade e depressão entre participantes da população geral e profissionais de saúde e não encontrou diferenças significativas, ainda que os autores tenham a expectativa de que o distresse será maior para profissionais de saúde à medida que a pandemia persista no tempo6.
Considerando a relevância dessas informações, neste estudo buscamos conhecer a frequência de diferentes níveis de distresse psicológico, a frequência de transtornos mentais ao longo da vida e fatores psicossociais (p.ex., características demográficas, experiências e pensamentos sobre a Covid-19) associados ao distresse psicológico na população geral e em profissionais de saúde, durante os primeiros meses da pandemia de Covid-19 no Brasil. Embora diversos fatores possam estar relacionados ao distresse psicológico vivido durante a pandemia de Covid-19, raramente esses fatores são explorados num mesmo estudo como aqui.
MATERIAL E MÉTODO
Participantes
Este estudo online foi aprovado pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) em 2 de maio de 2020 (CAAE #: 30823620.6.0000.5149) e está de acordo com o conjunto de princípios éticos da Declaração de Helsinque (1989). A pesquisa foi realizada em dois braços, sendo um com uma amostra da população geral e outro com uma amostra de profissionais de saúde do Sistema Único de Saúde (SUS). Todos os participantes foram informados de que o questionário da pesquisa levaria cerca de 25 minutos para ser preenchido. O termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE) foi apresentado na primeira página do questionário e apenas as pessoas que responderam positivamente participaram do estudo. Para participar do estudo era necessário ter 20 anos ou mais, saber ler e ter acesso à Internet. Nenhum tipo de incentivo foi oferecido aos participantes do estudo.
Duas formas de recrutamento foram usadas. Os profissionais de saúde foram convidados por e-mail por meio da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (SGTES) do Ministério da Saúde (MS) do Brasil. Do pessoal de nível superior ou técnico da rede assistencial brasileira no SUS, 223.866 acessaram a página com o termo de consentimento e 2.416 (1.1%) a pularam. Consentiram com sua participação no estudo 205.591 pessoas (i.e., 92,8% dos indivíduos que passaram pelo TCLE). Uma amostra não-probabilística da população geral foi auto selecionada para o estudo através de um link de acesso exclusivo através de ações de comunicação de captação implementadas pelo departamento de marketing da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), em todo o território nacional. Da amostra da população geral, 8.436 pessoas acessaram a página com o termo de consentimento e 83 (1,0%) a pularam. Consentiram com sua participação no estudo 8.314 pessoas (i.e., 98,5% dos indivíduos que passaram pelo TCLE).
Os dados de 58.978 participantes foram excluídos por ausência completa ou de 20% ou mais dos itens do Inventário Breve de Sintomas (BSI), instrumento de avaliação do distresse psicológico no estudo. Foram ainda excluídos do estudo os dados de 330 participantes com menos de 20 anos e de 497 participantes cujas respostas foram dadas depois de junho de 2020. Da amostra de profissionais de saúde, dados de 1.370 pessoas foram excluídos por elas se declararem como não sendo profissionais de saúde. As variáveis faltantes em outras áreas do questionário não foram tratadas, mas, caso presentes, a variação no tamanho da amostra foi reportada. Os dados que compõem a amostra final foram coletados de 9 de maio a 30 de junho de 2020. Foram incluídos dados de 164.881 profissionais de saúde recrutados pela SGTES (MS) (80,19% dos questionários iniciais) e de 5.635 participantes da população geral (67,77% dos questionários iniciais).
Medidas
Desenvolvimento do questionário online (E-survey) e Pré-teste. O questionário da pesquisa foi desenvolvido e a coleta de dados realizada através da plataforma SurveyMonkey@. Todos os pesquisadores da pesquisa e outros colaboradores testaram a usabilidade e a funcionalidade técnica do questionário eletrônico antes de ele ser liberado para a coleta de dados em ambas as amostras do estudo. O questionário apresentava 61 questões em ordem fixa dispostas em 13 páginas.
Características sociodemográficas. O questionário apresentava questões para a identificação do sexo, idade, escolaridade, estado civil, etnia, número de pessoas que moram no mesmo domicílio e região do país onde reside atualmente dos participantes.
Para classificação econômica usamos o Critério de Classificação Econômica Brasil (CCEB) de 201919, instrumento que avalia o poder de compra de grupos de consumidores com base em aspectos como estrutura física da residência, bens de consumo e escolaridade do chefe da família. O escore no CCEB pode variar de 0 a 100 que é classificado em um de seis estratos socioeconômicos com renda domiciliar mensal estimada: A (renda média de R$ 25.554,33; representaria 2,5% da população brasileira), B1 (renda média de R$ 11.279,14; representaria 4,4% da população brasileira), B2 (renda média de R$ 5.641,64; representaria 16,5% da população brasileira), C1 (renda média de R$ 3.085,48; representaria 21,5% da população brasileira), C2 (renda média de R$ 1.748,59; representaria 26,8% da população brasileira) e DE (renda média de R$ 719,8; representaria 28,3% da população brasileira). Neste estudo, agrupamos as classes B1 e B2 em classe B e as classes C1 e C2 em classe C.
Quanto a ocupação, os participantes foram classificados como desempregado, profissional de saúde de nível superior, profissional de saúde de nível técnico ou profissional fora da área de saúde.
Distresse psicológico. O Inventário Breve de Sintomas (BSI)20,21 foi usado para medir o distresse psicológico (i.e., nível de estresse que causa sofrimento psicológico) dos participantes. O BSI é um instrumento de autorrelato que possui 53 itens que medem sintomas relacionados à 9 dimensões comportamentais: somatização, obsessão-compulsão, sensibilidade interpessoal, depressão, ansiedade, hostilidade, ansiedade fóbica, ideação paranoide e psicoticismo. Cada item do BSI é classificado numa escala likert de cinco pontos (0 a 4). Para a análise dos dados, calculamos o Índice de Gravidade Global (GSI) do BSI, composto pela pontuação média de todos os itens respondidos. Para fins descritivos, a pontuação dos participantes foi classificada em intervalos de percentis de acordo com as normas brasileiras22. Quanto maior a pontuação e o percentil no BSI, maior o sofrimento psicológico. A confiabilidade do GSI na versão brasileira do BSI é alta (ω = 0,98; ωH = 0,95)22.
História de Transtornos Mentais. Os participantes foram apresentados às opções "sim" ou "não" para a pergunta "Algum(a) médico(a) ou outro(a) profissional da saúde já lhe diagnosticou como tendo algum transtorno mental (depressão, ansiedade, TDAH etc.)?". Se a resposta fosse "sim", uma lista de diagnósticos psiquiátricos com base na nomenclatura do DSM-523 era apresentada no formato de caixas de seleção. Portanto, a presença de um diagnóstico psiquiátrico ao longo da vida foi autorrelatada.
Questões relacionadas ao surto de Covid-19. Frases relacionadas ao surto de Covid-19 foram apresentadas no formato de caixas de seleção. Os participantes foram instruídos a selecionar apenas as experiências que se aplicassem à sua vivência, nos últimos 14 dias. A maior parte das frases do questionário foi baseada numa adaptação para o Português do Brasil das experiências relacionadas ao surto de Covid-19 investigadas no primeiro estudo publicado sobre os impactos psicológicos da pandemia de Covid-19, que foi realizado na China por Wang e colaboradores12. Além disso, foram propostas perguntas que os pesquisadores do estudo acharam apropriadas para o contexto brasileiro da pandemia, em abril de 2020. O questionário abrange as seguintes áreas: (1) Estado da saúde física nos últimos 14 dias, (2) História de contato com a Covid-19 nos últimos 14 dias, (3) Percepções e preocupações sobre a Covid-19 nos últimos 14 dias (4) e medidas preventivas adotadas contra a infecção nos últimos 14 dias.
As afirmações do questionário foram apresentadas na Tabela 1. A instrução do questionário foi a seguinte: "A seguir, temos várias afirmações sobre possíveis experiências que você possa ter tido ou tenha em decorrência da Infecção Humana pelo novo coronavírus, a Covid-19. Selecione apenas as experiências que você tenha ou tem vivido, nos últimos 14 dias. Marque quantas experiências se aplicarem à sua vivência, nos últimos 14 dias." Digno de nota, o primeiro item da tabela 1, sobre a presença de doenças crônicas, foi apresentado no formato de lista para seleção. Foram apresentadas 17 opções de condições de saúde relacionadas ao estresse e/ou a condições crônicas de saúde: colesterol alto (gordura no sangue), diabetes (açúcar no sangue), infarto do miocárdio (ataque do coração), angina (isquemia, má circulação no coração), acidente vascular cerebral (derrame), asma (bronquite asmática), enfisema ou bronquite crônica, cálculo (pedra) no rim, cálculo (pedra) na vesícula, úlcera no estômago ou duodeno, gastrite, ler (lesão por reforço repetitivo, tendinite/sinovite), artrose (artrite, reumatismo), hérnia de disco, hipertireoidismo (tireoide acelerada), hipotireoidismo e tuberculose. Se pelo menos uma condição fosse selecionada, a variável "doença crônica" foi categorizada como presente.
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