Rev. bras. psicoter. 2021; 23(2):201-214
Nunes MM, Serbena CA. Noções de infância na psicologia analítica e possíveis convergências. Rev. bras. psicoter. 2021;23(2):201-214
Revisão Narrativa
Noções de infância na psicologia analítica e possíveis convergências
Childhood notions in analytical psychology and possible convergences
Nociones de infancia en psicología analítica y posibles convergencias
Maíra Meira Nunes; Carlos Augusto Serbena
Resumo
Abstract
Resumen
INTRODUÇÃO
A psicologia analítica, em suas múltiplas contribuições, propõe compreensões sobre o desenvolvimento humano, tanto no que diz respeito ao aprofundamento do pensamento e das ideias de C. G. Jung sobre a psique e suas legítimas expressões desde os primórdios da humanidade, como em sua aplicabilidade na prática psicológica contemporânea.
Embora as diferentes tendências pós-junguianas não sejam reconhecidas como escolas específicas de modo oficial, frutificaram correntes de pensamento que enfocam aspectos particulares das vastas contribuições de Jung. Samuels1 propõe um sistema de referências que possibilita a classificação das principais forças que ele observou: a Escola Clássica, a Escola do Desenvolvimento e a Escola Arquetípica. Essa classificação leva em conta as ênfases que se diferenciam nas escolas em gradações, sendo as seguintes, respectivamente: o self e seu papel no processo de individuação; o desenvolvimento da personalidade; as imagens arquetípicas.
Abordaremos no presente artigo algumas noções das escolas Clássica e do Desenvolvimento por possibilitarem a compreensão da criança em suas especificidades. Discutiremos acerca da perspectiva de Jung sobre a infância e o arquétipo da criança. De modo complementar, analisaremos as contribuições de autores pós-junguianos consagrados: Michael Fordham (Escola do Desenvolvimento) e Erich Neumann (Escola Clássica). Por fim, abordaremos algumas possíveis correlações entre as referidas contribuições e as pesquisas empíricas recentes com crianças realizadas por Daniel Stern e discutidas por Jacoby. A partir dessa correspondência, torna-se possível compreender a importância do fator relacional na infância, assim como da dinâmica psíquica atuante nessa fase.
Ressalta-se que a compreensão psicodinâmica da infância apresenta algumas dificuldades atreladas às limitações de autodescrição da criança muito pequena, consistindo em um desafio para profissionais que atuem com este público. O propósito deste artigo, portanto, é o de salientar as especificidades dessa fase do desenvolvimento a partir das contribuições que a psicologia analítica apresenta. Dessa maneira, buscou-se ressaltar as principais contribuições da área quanto à referida questão e suas possíveis convergências, visando o favorecimento da compreensão dos aspectos psicológicos da criança. Indica-se ainda que as contribuições de Jung não foram robustas quanto à temática e o devido reconhecimento da matéria por outros autores da abordagem não é tão difundido no contexto brasileiro.
As concepções de Jung sobre a infância e o arquétipo da criança
Embora o tema da infância não tenha lugar substancial na perspectiva de Jung após seus primeiros escritos, ele não renegou suas ideias sobre o tema publicadas até 1910. É possível dizer que, quanto a essa temática, a sua ênfase, mesmo numa fase de influência psicanalítica, esteve mais voltada aos processos simbólicos e ao mundo interior da criança, como no caso específico de Aninha, o que posteriormente se ampliará nas discussões sobre símbolo e inconsciente coletivo. Essa ênfase inclusive sinaliza para um distanciamento da teoria psicanalítica, por um dos fatores de divergência mais importantes de Jung a Freud: a oposição de Jung ao fator da sexualidade enquanto totalidade da energia psíquica e as diferenças que ele menciona sobre a sexualidade na infância e na vida adulta - com base numa ênfase maior dos instintos de nutrição e sexual respectivamente em cada fase2.
Para Fordham2, o trabalho de Jung sobre a individuação - processo psicológico cujo objetivo é a o alcance da totalidade ou realização do self de forma integrada a partir da particularização do ser como distinto da coletividade, mas após ter-seadaptado a ela- podetê-lo afastado das investigações sobre análisede criança,já que ele precisava de uma progressão maior de suas ideias do desenvolvimento adulto. O fato de a individuação requerer um período anterior - geralmente presente nas primeiras fases de vida, até, em geral, a meia idade -, de adaptação coletiva, o foco da pessoa no período da infância corresponderia ao de desenvolvimento do ego - reconhecido na psicologia analítica como o centro da consciência e complexo de identidade - tendo os pais e o contexto o papel "ideal" de evitar possíveis regressões. A individuação, para Jung, torna-se um processo evidenciado mais significativamente, portanto, no período de maior maturidade, em geral associado a faixas etárias mais avançadas; nesse sentido, os objetivos da criança em comparação aos da pessoa de meia idade, tendem a seguir direções opostas: o desenvolvimento do ego e a adaptação coletiva em contraste à retirada das projeções pessoais transferidas ao mundo externo e o reconhecimento dos aspectos inconscientes coletivos.
Main3 apresenta uma visão complementar à hipótese de Fordham quanto às lacunas de escritos de Jung sobre a infância. Ele aponta que as ideias junguianas sobre a criança real não poderiam estar associadas à conotação de total dependência de seu desenvolvimento psicológico de acordo às funções paternas e maternas de cuidado, já que ele sugere haver uma individualidade da criança. Sinaliza ainda para o fato de Jung, discutir a sugestão, de os pais estarem em terapia, pois as dificuldades infantis podem estar diretamente associadas a questões não resolvidas dos pais. Esse seria um fator relativo aos aspectos disfuncionais evidenciados pela patologia da criança, por exemplo, e não estaria restrito à sua subjetividade.
Nessa direção, torna-se pertinente circunscrever o emprego da terminologia "criança" por Jung, já que algumas vezes ele se refere ao arquétipo da criança, e não à criança propriamente ou à infância - distinção que nem sempre fica bem estabelecida; assim, a conotação da "criança" enquanto arquétipo está vinculada à noção simbólica, e não como correspondente à realidade externa à psique3. Como o arquétipo não é acessado diretamente, a consciência pode ter contato e conhecimento das suas derivações, que se apresentam, a partir da dinâmica psíquica, através de expressões simbólicas.
Quando Jung se refere à "criança", essa terminologia geralmente está associada ao arquétipo da criança, que pode ser acessado apenas indiretamente, através de suas manifestações simbólicas, como em contos de fadas, sonhos, fantasias, dentre outras expressões do inconsciente3. Jung4 esclarece que o arquétipo da "criança" costuma estar atrelado ao porvir, ao "futuro em potencial" e que sua expressão simbólica apresenta múltiplos alcances, mas seu embasamento é de origem comum:
[...] a ideia mitológica da criança é, decididamente, não uma cópia da criança empírica, mas um símbolo claramente identificável enquanto tal: é uma criança-maravilha, uma criança divina, concebida, nascida e criada nas circunstâncias mais extraordinárias, e não - essa é a questão - uma criança humana.4
A concepção [do self] aplicada à criança trata-a como uma entidade em si mesma, da qual se podem derivar os processos maturativos. Ela não inclui mãe nem família. A significação do postulado de uma unidade primária [...] é concebida como a base sobre a qual repousa a noção de identidade pessoal e da qual procede a individuação.2
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