Rev. bras. psicoter. 2021; 23(2):127-139
Macedocouto GS, Dias PRR. Psicoterapia de base fenomenológica-existencial frente ao medo e à angústia como tonalidades afetivas no contexto Pandêmico da Covid-19. Rev. bras. psicoter. 2021;23(2):127-139
Revisão Narrativa
Psicoterapia de base fenomenológica-existencial frente ao medo e à angústia como tonalidades afetivas no contexto Pandêmico da Covid-19
Phenomenological-existential psychotherapy in confronting fear and anguish as affective tones in the Pandemic context of Covid-19
Psicoterapia fenomenológico-existencial frente al miedo y la angustia como tonos afectivos en el contexto pandémico del Covid-19
Graco Silva Macedocouto; Pablo Raphael Ribeiro Dias
Resumo
Abstract
Resumen
INTRODUÇÃO
A pandemia da Covid-19 trouxe, dentre as suas várias consequências, o que se pode denominar de um agravamento do sofrimento existencial, aliada a uma precarização das condições de saúde mental a nível global. Como apontam Faro(2020)1, apesar de não se tratar da primeira pandemia experimentada no séc. XXI, sendo precedida pelos vírus da SARS-1 (Severe Acute Respiratory Syndrome) em 2002, do H1N1 em 2009 e do Ebola entre 2014 e 2016, o vírus SARS-COV-2 (Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavírus 2),este se diferencia por sua alta capacidade de propagação, falta de maior conhecimento a respeito do vírus, acrescido do crescimento exponencial de contágios, o qual se elevou à categoria de Pandemia pela OMS, em abril de 2020.
É exatamente nos períodos de crise social, como guerras e pandemias, que ocorre a possibilidade de uma revisão de práticas culturais e científicas, dentre as quais se insere, também, a psicologia2. Para além dessa constatação, e partindo de uma clínica com bases fenomenológico-existencial que remontam ao pensamento do pensador alemão Martin Heidegger (2018, 2001)3,4, assim como das apropriações de sua analítica existencial por parte da psiquiatria e psicologia, também pode-se pensar, singularmente, os momentos de crise existencial como uma fase de suspensão de um determinado horizonte hermenêutico de sentidos e significados, que permitem ao indivíduo uma revisão de si.
Este artigo pretende discorrer as possibilidades de abordagem das situações de sofrimento desencadeadas a partir da situação pandêmica da COVID-19, tendo como base uma clínica que retorna àquilo que é mais fundamental e originário, ou seja, a própria existência enquanto Ser-aí, tal como explicitada na obra Ser e Tempo, guiando-se pelas tonalidades afetivas fundamentais do medo e da angústia. Pensa-se, então, sobre o horizonte da técnica enquanto restritivo para novas possibilidades de abordar a angústia e a finitude, ressaltando-se a possibilidade de uma clínica que, pelo contrário, abre-se ao caráter incontornável da existência, compreendendo que dores, frustrações, possibilidades não realizadas, assim como a finitude e a morte fazem parte da condição humana5.
Assim é que, a fim de compreendermos como se processa esta clínica, cuida-se, antes, de explicitar o próprio conceito de existência. Faz-se necessário, então, conforme nos relembra Sá e Barreto (2011)6, proceder intelectualmente como a fenomenologia se estabelece desde o pensamento de seu fundador, Edmund Husserl: suspendendo as crenças da atitude natural de que há uma objetividade absoluta para além de um sujeito que a dota de sentido. Desse modo, retornando à nossa experiência mais fundamental, percebemos então a indissociabilidade entre sujeito e objeto, ou como pensa Heidegger (2018)3, ao enunciar a co-originareidade de homem e mundo, somos ser-no-mundo.
Com o intuito de responder à pergunta acerca do sentido do ser, esquecida e encoberta pela metafísica ocidental, em Ser e Tempo, Heidegger (2018)3 escolhe um ente privilegiado que possui a compreensão de ser e que, por tal característica de abertura compreensiva de sentido, jamais pode ser definido a partir de categorias utilizadas para objetos, visto que não está encerrado em si. Dito de outro modo: compreendemos o ser dos entes. Nesta medida, a relação com o ser não é meramente gramatical7, mas nos dota de uma certa segurança ao nos comportarmos com os objetos, utensílios do dia a dia, animais e outros seres humanos. Para evitar a repetição de definições positivas da antropologia, teologia ou psicologia, Heidegger intitula este ente como Ser-aí, que, ao mesmo tempo em que é Ser-no-mundo, forma mundo e por sua relação com o ser pode se relacionar com as coisas como coisas, diferentemente dos animais8.
O Ser-aí é o ente que é sempre e a cada vez meu, expressão de sua máxima singularidade e da impossibilidade de estar objetificado sobre determinadas categorias ou de gêneros de entes simplesmente dados, como por exemplo a categoria homem. Possui não só uma relação com o ser em geral, mas uma relação com o seu ser, que se expressa no fato de que seu ser lhe concerne, diferente dos objetos que não podem ser nem diferentes nem indiferentes a si-mesmos. Ao mesmo tempo em que o seu ser está em jogo, não possuindo uma substancialidade apriorística, mas muito mais se decidindo a partir de um mundo de sentidos e significados que lhe são co-originários, é responsável pelo seu ser. Assim, é possível dizer que o Ser-aí é um ente marcado muito mais por uma indeterminação, abertura e possibilidades de ser que uma determinação positiva.
É possível dizer que tal indeterminação não é por nós experimentada, a não ser no despertar da angústia, porque numa primeira aproximação tendemos a interpretar o nosso existir a partir de uma objetificação do mesmo. Desse modo, o existencial Ser-no-mundo não implica uma relação geográfica de encaixe como, por exemplo, um objeto que está dentro de outro, mas sim que já estamos sempre em uma relação de familiaridade para com uma rede de significados e sentidos historicamente sedimentados que nos retira de nossa negatividade originária e nos coloca na condição de projeto lançado, ou seja, ao mesmo tempo que estamos sempre projetando nosso ser para determinadas possibilidades compreensivas que nos engajam nas atividades cotidianas que concernem a cada um de nós, estamos lançados em um determinado horizonte que já nos lega determinados conceitos, visões, e orientações comportamentais prévias. A esta tendência ontológica ao obscurecimento de nossa singularidade que busca o nivelamento de nossas possibilidades com a do outro, nela "todo mundo é o outro e ninguém é si mesmo" sendo, portanto, denominada de impessoal3.
O que devemos pontuar de inovação no modo como o Ser-aí articula esta abertura de sentido que forma e sustenta o mundo, uma vez que este se dá não apenas a partir de uma compreensão intelectual, mas sempre já afinado a partir daquilo que ontologicamente se dá o nome de disposição e, onticamente chamamos de tonalidades afetivas. A tradição metafísica relega os estados-de-ânimo a um segundo plano e dão mais ênfase à razão. A análise fenomenológica revela que já estamos sempre abertos também em uma determinada tonalidade afetiva, ontologicamente possibilitados pela. Assim, a disposição, juntamente com a compreensão e a fala permitem a abertura dos fenômenos que se mostram para nós, pois sustentam a abertura de mundo9.
A partir de diálogos e discussões acerca das tonalidades afetivas e do fazer clínico diante da maior pandemia do século, este trabalho visa tratar de afetos e humores que, em tempos difíceis, nos tomam de assalto e tornam-se a tônica no setting terapêutico. Sua relevância consiste em mais do que meramente descrever as tonalidades afetivas do medo e da angústia. Fundamenta-se, portanto, em olhar para ambos sob uma ótica fenomenológica e suas ressonâncias na clínica psicológica em tempos de pandemia.
Considerando o contexto temático, tem-se como objetivo geral: Apresentar as contribuições da psicoterapia fenomenológica-existencial frente ao medo e a angústia na situação de pandemia. Como objetivo específico: Explicar a tonalidade afetiva do medo baseado na fenomenologia heideggeriana; desde a fenomenologia heideggeriana explanar a tonalidade afetiva da angústia; apontar como a clínica fenomenológicoexistencial pode lidar com tais tonalidades afetivas dentro do contexto de pandemia.
Trata-se de uma pesquisa bibliográfica qualitativa de revisão narrativa, com método utilizado na discussão do estado da arte de uma determinada temática que permite estabelecer relações com produções anteriores e apontar novas perspectivas, entretanto sem estabelecer uma metodologia rigorosa que garanta a replicação dos resultados10. Como critérios de inclusão foram selecionados artigos que pudessem responder aos objetivos do texto e que foram publicados nos últimos quinze anos, em diálogo com a produção bibliográfica do filósofo germano Martin Heidegger assim como publicações brasileiras que versam sobre a prática psicoterápica fenomenológico-existencial.
A tonalidade afetiva do medo e a Covid-19
Explicitar as tonalidades afetivas (Stimmung) em uma perspectiva ôntica quer dizer pensá-las além de seu aspecto psicológico para pensá-la como expressão específica da estrutura ontológica da disposição (Befindlichkeit). Para Heidegger (2011)8 a psicologia considera os afetos como possuindo uma substancialidade objetificada e que está dentro de um outro objeto chamado psiquismo. As tonalidades afetivas não seriam aqui uma apenas um "embelezamento" ou empecilho de nossa razão ou de nossa vontade, mas um modo fundamental de ser do Ser-aí enquanto o Ser-aí é. Isto se dá de uma maneira tão fundamental que elas são pensadas aqui (na contramão de outro preconceito da tradição) não como o que há de mais inconstante e fugidio, mas como o que dá consistência a todo o nosso pensar e agir. Segundo Gorner (2010)11 "Tonalidade afetiva (befindlichkeit) significa literalmente "Encontrar-se". Como é que você se encontra?" Ou seja, as tonalidades afetivas são constitutivas fundamentais do nosso ser.
Em sua magna obra Heidegger (2018)3 sustenta que a tonalidade afetiva "já abriu o ser-no-mundo em sua totalidade e só assim tornar possível um direcionar-se para". Borges-Duarte (2015)12 nos apresenta que as tonalidades afetivas são um conceito-chave do pensamento heideggeriano, na medida que possibilita não só a abertura e o direcionamento para as coisas, mas como o existencial responsável por me lançar e me direcionar em relação àquilo que me aparece a partir de pré-compreensão seletiva da realidade, ou seja, só nos deixamos tocar por aquilo que estaríamos pré-dispostos a ver em nosso mundo circundante. Há, então, uma porosidade afetiva, uma permeabilidade do sentir e do sentir-se, que acaba por dar sentido a todas as coisas que vêm ao nosso encontro.
Desse modo, revelam, ao mesmo tempo, não só como alguém "está e se torna"3, mas o seu estar-lançado, expressão que indica ao mesmo tempo o encargo e a responsabilidade que temos pelo nosso ser, como o modo pelo qual nos inserimos em determinados contextos concretos e históricos. E ao mesmo tempo que somos atingidos, de modo que a utilidade, inutilidade, resistência, ameaça podem aparecer por já estarmos, previamente, afinados em uma tonalidade afetiva que nos toca e mostra as coisas a partir de um viés específico. Isto implica dizer que a descoberta primária do mundo se guia onticamente por tais tonalidades de afinação e são essas que permitem mais originariamente o velamento ou desvelamento de determinados fenômenos, papel originariamente atribuído na tradição ocidental, ou seja, a percepção.
Sublinhamos também que há uma mudança do lócus em que comumente se pensa as tonalidades afetivas, que não vêm nem de dentro nem de fora, mas se dão exatamente na relação, crescendo a partir de si-mesma como modo de ser-no-mundo. Mais especificamente Heidegger3,8 irá pensar se tratar de um jeito fundamental de ser que se expressa na convivência cotidiana e que, atmosfericamente, dá um tom às nossas relações. Assim, as traduções buscam se livrar de uma perspectiva psicologizante onde se prefere traduzir o termo Stimmung não por páthos, disposição, afeto, disposição de humor, mas resguardando sua relação etimológica com o termo Stimme, que pode ser traduzido por voz, termo que também é utilizado em linguagem musical, para a "afinação de um instrumento" que não está ligado a um estado de alma, mas à totalidade de um acontecimento8.
Essa proposição abre como consequência espaço para se pensar tais tonalidades e afinações inclusive de determinados eventos ou acontecimentos históricos. Se para Heidegger3,8 a afinação que perpassa a convivência cotidiana do impessoal busca o estabelecimento de uma não surpresa e manutenção do status quo, tendo inclusive maior força as tonalidades que se dão, como se não houvesse nenhuma tonalidade, a pandemia da COVID-19 nos retira a suposta estabilidade e desperta coletivamente o medo. Nas publicações sobre a temática redigidas em meio ao processo pandêmico13,14,15 o medo é um fenômeno preponderante seja nas especificidades de ser infectado por uma doença fatal e desconhecida, medo de morrer, infectar familiares, se afastar ou sofrer abandono nas relações familiares e de amigos, da perda das condições de subsistência, medo de morrer isolado para aqueles que já foram infectados etc.
O medo, como indicativo de "como eu me encontro", aponta para uma relação com aquilo que é do mundo. Ou seja, aquilo que se encontra como ameaçador me toma de assalto. O que se teme possui o caráter de ameaça3. Em tempos de pandemia a tonalidade afetiva do temor se transfigura como adoecimento, contágio, perda de parentes etc. Somos coagidos por uma aurea que coloca qualquer possibilidade prática do cotidiano como ameaçadora. Vale salientar que o temor não é uma "Resposta ao Estímulo" como se poderia pensar. Não se trata de estar com medo porque a pandemia surgiu, mas é porque o ser-ai pode temer que o temível surge. "É temendo que o temor pode ter claro para si o temível, "Esclarecendo-o". A circunvisão vê o temível por já estar na disposição do temor3. Ou seja, o medo como relação mundana diante da COVID-19 não pertence, necessariamente, à doença específica, mas, ao mundo que toma uma aura "Medrosa" em que tal adoecimento perpassa todo meu ser.
Este caráter ameaçador do que tememos toma a configuração de ameaça iminente, ou seja, de um "pode chegar, mas por fim não"3, esta possibilidade daquilo que ameaça não vir a ocorrer não diminui a pungência do medo, pelo contrário, a constitui. Aquilo que ameaça é sempre um ente, seja um objeto, coisa, entidade biológica (vírus) ou outro Ser-aí e aquele que é ameaçado, ou seja, que teme, sempre é o Ser-aí. Essa aura "medrosa" abre o ente cujo seu ser está em jogo e o mundo numa totalidade de perigos que nos ameaçam de modo que, mesmo se temo, por exemplo, pela perda de minhas condições de subsistência ou pela perda de um ente querido, ainda é o Ser-aí que é atingido. Isso se dá porque já sempre nos compreendemos compreendendo e nos identificamos a partir de um estar junto aos entes como, por exemplo, junto a uma determinada ocupação profissional. Também o temer pelo outro não se dá necessariamente como um compartilhamento do temor, mas sim, pela possível perda de modos de ser-com o outro que podem ser suprimidos.
Para Heidegger (2018)3 o medo revela o Ser-aí de um modo privativo, fazendo-o "perder a cabeça", sendo necessário até se "recompor" após a passagem do perigo. Mais à frente no mesmo tratado, esse caráter privativo é melhor explicitado como um esquecimento de si em um direcionamento que busca o escape do que se teme. Todas as possibilidades possíveis e impossíveis aparecem e não nos detemos em nenhuma delas em um não reconhecimento de si mesmo e de nossas possibilidades mais próprias. O filósofo germano usa como exemplo didático o caso de um habitante de uma casa em chamas que acaba por "salvar" as coisas mais indiferentes, por estarem mais acessíveis e sem necessariamente acessar o sentido do porquê salvar as mesmas.
A tonalidade afetiva da angústia
Após discorrer em Ser e Tempo sobre o mundo e como ele nos absorve fazendo com que eu possa me compreender a partir de possibilidades dadas pelo mundo, a partir de uma familiaridade com o mesmo, Heidegger trata de pensar como é possível que o mundo perca seu caráter de "ditadura". Ou seja, como é possível pensar um modo em que o mundo não apareça como dominante, como determinante? A resposta inicial é angústia.
Vale salientar que; "A angústia, particularmente, é uma "tonalidade afetiva" (Stimmung). Uma tal tonalidade, ao lado de outras tantas possíveis ao ser-no-mundo "18. Tal como alegria, tristeza, felicidade, por exemplo. Mas, o que caracteriza a angústia e seu valor fundamental para pensar o Ser-aí, é que, diferente das outras tonalidades afetivas apontadas aqui, inclusive o medo, ela nos retira do cotidiano mundano e nos coloca diante de nós mesmos.
O Ser-aí enquanto mundano é decadente; isso significa "De-cair no mundo indica o empenho na convivência, na medida em que esta é conduzida pelo falatório, curiosidade e ambiguidade"3. Fala-se como todo mundo fala, sente-se medo como mundo sente, alegra-se como todo mundo se alegra. Portanto, a decadência é uma fuga de si mesmo, compreendendo-se e interpretando-se como todo mundo.
Assim, a angústia impede a fuga do Ser-aí para o ente, e, nessa disposição afetiva o Ser-aí é banido do fluxo da impessoalidade e da decadência. Nela, encontra-se a leveza em si, estranha por não ter onde se ancorar. As coisas, os outros, o mundo; nada é como é para todo mundo. Nota-se que a leveza estranha que a angústia se abra abre e nos devolva o mundo de forma diferente. "O angustiar-se abre, de maneira originária e direta, o mundo como mundo3.
Heidegger nos mostra uma sutil, porém fundamental diferença entre medo e angústia "a angústia não vê um aqui e um ali determinado, de onde o ameaçador se aproxima. O que caracteriza o referente da angústia é o fato do ameaçador não se encontrar em lugar nenhum."3. Ou seja, enquanto no medo meu mundo se abre para aquilo que me é próximo como em nossos tempos da COVID-19, por exemplo; na angústia em lugar algum se encontra esse referente. Encontro-me só, empurrado para mim mesmo. O mundo se abre como ele mesmo é "Horizonte de sentido e significado" e não se escondendo em determinantes mundanos travestidos de coisas, afazeres, doenças etc.
Logo, por não ter um ente do qual se possa se referir ou que possamos nos direcionar, a angústia está tão próxima que "sufoca a respiração e, no entanto, encontra-se em lugar nenhum" (HEIDEGGER, 2018)3, dado que aquilo com que a angústia se angustia não é um ente qualquer, mas é o próprio Ser-aí. Tal tonalidade afetiva é essencial para a nossa singularização, dado que, por também se tratar de uma antecipação da morte, permite que nos livremos de possibilidades nulas e nos direcionemos para o nosso caráter mais próprio. É preciso ressaltar que propriedade não se dá aqui como uma identidade substancializada, que poderia ser traduzida como ser mais "a si mesmo". Pelo contrário, a angústia rompe com as evidências que temos de nós mesmos e o que aparece mais propriamente é o nosso caráter de abertura, indeterminação e finitude17.
Na angústia, ocorre então uma recapitulação do todo de nosso existir ao deixar-se iluminar pela possibilidade da morte18. Isso não implica dizer que o que se propõe é uma constante reflexão sobre a morte8, pelo contrário, tal possibilidade invalidaria a própria vida cotidiana. Trata-se, sim, de assumir a finitude como um fenômeno existencial, dado que ela pode se anunciar apenas para aqueles que existem como ser-aí, e depois de termos morrido, esta não pode mais se anunciar. Apesar disso, a própria morte do outro que experimentamos, indiretamente, nos retira das ocupações cotidianas de modo importuno e nos faz experienciar que também somos ser-para-a-morte.
Para Heidegger3 medo e angústia possuiriam, apesar de suas diferenças centrais, um parentesco fenomenal, pois, muitas vezes, chamamos medo o que é angústia e vice-versa. Medo seria uma espécie de angústia imprópria que, ao invés de trazer o Ser-aí para o seu ser, salta em direção a um determinado ente ameaçador. Também é possível que a angústia seja "condicionada" fisiologicamente, mas, tanto o medo, como aquilo que se entende por sentimentos corporais de angústia só são possíveis porque o Ser-aí é mais originariamente angústia, indeterminação e não familiaridade.
Ressalta-se aqui como que uma clínica de base fenomenológico-existencial por retomar aquilo que é mais essencial que é o campo da existência, não patologiza o medo, a angústia e a morte. Isso não implica dizer que tais fenômenos não possam fazer parte da tessitura de uma etiologia psiquiátrica, mas a possibilidade de olhá-los a partir de si mesmos enquanto fenômenos que possuem sua fundamentação ontológica, e da forma como se apresentam dentro de um determinado campo de sentidos concernente a cada existência concreta4.
Buscando este horizonte mais fundamental Dantas, Sá e Carreteiro19 nos mostram como para além de uma tendência ontológica já apontada por Heidegger para o encobrimento cotidiano e impessoal da angústia, há todo um horizonte histórico, fundamentado num projeto moderno de controle e dominação da natureza, onde a experiência de angústia é refratária às respostas de planejamento técnico da vida. Por essa via, a angústia pode ser vista como mero transtorno neuroquímico a ser sanado pela intervenção técnica do cientista e não como condição ontológica fundamental. Adentram nesse campo não só a medicalização dos nossos sofrimentos, as indústrias de saúde como também a negação e a assepsia frente à morte e aos doentes terminais.
O homem do projeto moderno de controle da natureza é aquele que tem como ilusão o controle, a previsão e a administração impessoal da angústia. Assiste-se então a um processo de psicologização da angústia, que é como geralmente está tonalidade afetiva se manifesta no impessoal. Para Rodrigues (2019)20 é possível fazer uma diferenciação entre a angústia que comparece no impessoal e nos movimenta, já escolhendo de antemão aquilo que vamos nos preocupar, nos conduzindo, por exemplo, a produzir mais e a manter as estruturações de sentido, como já anteriormente dadas e uma angústia psicologizada onde "o "sofrimento" em si não decorre da angústia propriamente dita, mas, sim daquele que é por ela interpelado, que não a aceitando estabelece mecanismos de contenção daquilo que se abre". A partir dos elementos aqui delineados se faz importante então falar como é possível sustentar uma clínica não tecnocrática que atenta para o desvelamento de novas possibilidades de sentido, a partir da emergência das situações de medo, angústia, anúncio da finitude e morte.
Clínica fenomenológico-existencial e psicoterapia não tecnocrática: serenidade e pensamento meditativo como possibilidades de acolhimento do sofrimento existencial
Em consonância com a possibilidade de pensar uma clínica que não corresponda à tentativa de supressão e assepsia da angústia ou da finitude, dado estes serem fenômenos eminentemente existenciais, é preciso pensar como nosso horizonte histórico pode delimitar o aparecimento de tais recortes. Para Casanova21, após a publicação de Ser e Tempo e a partir das próprias problemáticas internas da obra, Heidegger começa a dar maior ênfase aos envios historiais do ser, de modo que não é mais o Ser-aí que desvela o ser dos entes, mas apenas corresponde ao envio do próprio ser, naquilo que chama de acontecimento apropriativo (Ereignis). Este conceito diz respeito a uma medida ontológica que dá sustentação a um determinado projeto de mundo, ou seja, aquilo que funda a possibilidade de que os fenômenos apareçam como aparecem em uma determinada época.
Heidegger (2007)22 no texto A questão da técnica irá questionar qual a essência da técnica moderna para além de sua definição antropológica de ser "um meio para um fim". Fica latente que técnica (tékne) é um modo de desvelamento da verdade (aletheia) que ganha uma configuração bastante específica na contemporaneidade: o desvelar no modo do desafio da natureza enquanto energia passível de ser extraída e armazenada. A natureza é então representada como um complexo de forças passíveis de cálculo, previsão e posta à vontade do Ser-aí. Não se trata, aqui, como muitos críticos pensam, de uma demonização da técnica, mas de um apontamento para uma restrição de sentidos que se opera no modo como se desvela a realidade, que são frutos do próprio esquecimento do ser.
Logo, se este é um horizonte mais amplo de aparecimento dos fenômenos, na clínica psicológica não é diferente. Para Mattar e Sá23 as demandas de sofrimento existencial que comparecem na clínica estão cada vez mais relacionadas ao horizonte de cálculo, exploração e consumo da natureza. A vida cotidiana é então atravessada pelos critérios de provocação da natureza, funcionalidade, serventia e produtividade. Mais especificamente na psicoterapia a atuação do psicólogo nasce permeada pela ideia de interioridade, verdade, correção, poder pastoral, funcionalidade, superação5. O psicólogo, sintonizado de modo acrítico ao mundo da técnica, agiria aqui como aquele que desafia, utiliza a técnica correta para extrair um potencial "internalizado" prévio do cliente de modo a poder agir de forma normatizada àquilo que o mundo da técnica pede. Para Feijoo5:
"Torna-se pertinente ressaltar que a clínica psicológica em uma inspiração existencial vai se estabelecer muito mais em uma negatividade do que propriamente a partir de uma identidade positiva. A positividade na clínica diz respeito a uma orientação que indica caminhos que conduzem à conscientização, a superação e a conquista da autorrealização. A negatividade na clínica consiste a deixar que transpareça ao analisando o caráter de indeterminação e de incompletude da existência. Isso quer dizer que a clínica nesses termos vai deixar transparecer que percalços, dores e frustrações também são próprios do existir humano" (p. 99-100).
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