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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2021; 23(2):27-34



Comunicaçao breve

Saúde Mental dos Acadêmicos de Medicina na Quarentena - isolamento e enfrentamentos individuais

Mental Health of Medical Students in Quarantine - isolation and individual confrontations

Salud mental de los estudiantes de medicina en cuarentena: aislamiento y enfrentamientos individuales

Manuela Rodrigues Müllera,b; Gabriela de Albuquerque e Albuquerquea; Giovana Rosa Monnerata

Resumo

O isolamento domiciliar e o distanciamento social têm sido sugeridos como estratégias a serem adotadas em estágios mais avançados de pandemias. Até recentemente tais medidas, geralmente, eram aplicadas somente para grupos de risco e/ou para contactantes de pessoas infectadas. A pandemia atual é a primeira experiência de implementação deste tipo de medida em larga escala. É fundamental avaliarmos as diferentes consequências que tanto a pandemia, como suas medidas de enfrentamento (isolamento domiciliar e distanciamento social), podem vir a ocasionar em territórios e estratos sociais distintos. Nesse estudo, buscou-se observar os efeitos da quarentena na saúde mental dos estudantes de medicina de uma faculdade particular, os fatores que influenciam, os recursos utilizados para lidar com essas dificuldades e quais as especificidades de ser estudante de medicina na quarentena. Para tanto, foram aplicados questionários semi-estruturados on-line analisados por meio de análise do conteúdo. Apresenta-se aqui os resultados preliminares e específicos quanto às estratégias utilizadas pelos acadêmicos para lidar com o sofrimento e os contratempos cotidianos. Os estudantes privilegiaram atividades de auto-cuidado e atividades de lazer experimentadas individualmente. Discutimos esses achados, considerando a carga do isolamento e seus efeitos para o processo de socialização dos acadêmicos.

Descritores: Saúde Mental; Estudantes de Medicina; Quarentena; Infecções por Coronavirus

Abstract

Isolation and social distance have been suggested as strategies to be adopted in more advanced stages of pandemics. Until recently, such measures were generally applied only to groups at risk and / or to contact persons infected. The current pandemic is the first experience of implementing this type of measure on a large scale. It is essential to assess the different consequences that both the pandemic and its measures of coping (home isolation and social distance), may have in different territories and social strata. In this study, we sought to observe the effects of quarantine on the mental health of medical students from a particular college, the factors that influence it, the resources used to deal with these difficulties and what are the specifics of being a medical student in quarantine. For that, semi-structured questionnaires were applied online and analyzed through content analysis. Preliminary and specific results regarding the strategies used by academics to deal with daily suffering and setbacks are presented here. Students favored self-care activities and leisure activities experienced individually. We discussed these findings, considering the burden of isolation and its effects on the students socialization process.

Keywords: Mental Health; Students, Medical; Quarantine; Coronavirus Infections

Resumen

Se ha sugerido que el aislamiento del hogar y la distancia social son estrategias a adoptar en las etapas más avanzadas de las pandemias. Hasta hace poco, estas medidas se aplicaban generalmente solo a grupos en riesgo y / o para contactar personas infectadas. La pandemia actual es la primera experiencia de implementación de este tipo de medidas a gran escala. Es fundamental evaluar las diferentes consecuencias que tanto la pandemia como sus medidas de afrontamiento (aislamiento domiciliario y distancia social), pueden tener en diferentes territorios y estratos sociales. En este estudio, buscamos observar los efectos de la cuarentena en la salud mental de los estudiantes de medicina de una universidad en particular, los factores que influyen en ella, los recursos utilizados para hacer frente a estas dificultades y cuáles son las particularidades de ser un estudiante de medicina en cuarentena. Para ello, se aplicaron cuestionarios semiestructurados online y se analizaron mediante análisis de contenido. A continuación se presentan resultados preliminares y específicos sobre las estrategias que utilizan los académicos para afrontar el sufrimiento y los retrocesos cotidianos. Los estudiantes favorecieron las actividades de cuidado personal y las actividades de ocio experimentadas individualmente. Discutimos estos hallazgos, considerando la carga del aislamiento y sus efectos en el proceso de socialización de los estudiantes.

Descriptores: Salud Mental; Estudiantes de Medicina; Cuarentena; Infecciones por Coronavirus

 

 

INTRODUÇÃO

A Organização Mundial de Saúde (OMS) vem se preparando para a possibilidade do enfrentamento de uma pandemia global de gripe desde 19991. Os surtos de Influenza A H5N1 na Ásia em 2003-2004 e de H7N3 no Canadá, também em 2004, levaram à atualização do plano de preparação para pandemia de gripe duas vezes, em 2005 e 20092 e desde 2005, o isolamento domiciliar e o distanciamento social têm sido sugeridos como estratégias a serem adotadas em estágios mais avançados de pandemias. A pandemia atual é a primeira experiência de implementação deste tipo de medida em larga escala.

É fundamental avaliarmos as diferentes consequências que tanto a pandemia, como suas medidas de enfrentamento (isolamento domiciliar e distanciamento social), podem vir a ocasionar em territórios e estratos sociais distintos. Enquanto alguns têm possibilidade de se isolar em casa e lançar mão de estratégias, tais como o "home office" (trabalho remoto) e utilização de equipamentos de proteção individual, outros, sobretudo os trabalhadores informais e profissionais de saúde, são atingidos diretamente, seja pela instabilidade econômica advindas do momento, seja pelos compromissos com o cuidado ofertado à população.

A experiência de epidemias e confinamento devido a quarentenas repercutem sobre o bem-estar e saúde mental das pessoas acometidas3. Estimativas indicam que entre um terço e metade da população exposta a uma epidemia pode apresentar alguma manifestação psicopatológica, se não houver intervenções de cuidado específicas para as reações e os sintomas e que considerem a magnitude da epidemia e o grau de vulnerabilidade da pessoa no momento3.

No caso dos profissionais de saúde, embora sentir-se pressionado possa ser uma experiência comum, é possível que estresse nesse momento de pandemia estejam aumentados4. Ao mesmo tempo, em que se espera que ajudem e cuidem das outras pessoas, estão expostos ao risco de adoecimento e podem estar preocupados com a saúde de suas famílias e colegas de trabalho. Mais ainda, a necessidade de deliberar sobre intervenções em presença de dilemas morais em um ambiente de trabalho em rápida transformação pode resultar em raiva, ansiedade e estresse3,5.

É fundamental entender as fontes específicas de ansiedade e medo para o desenvolvimento das abordagens de apoio aos profissionais de saúde. Em vez de propor abordagens genéricas para redução do estresse ou resiliência, o foco principal dos esforços de suporte deve ser a detecção e enfrentamento dessas preocupações5.

A experiência recente de acadêmicos, internos e residentes médicos também foi investigada6. A alta probabilidade de exposição no hospital para estudantes de medicina e a necessidade de economizar equipamento de proteção pessoal (EPI) superaram os benefícios educacionais da participação nos cenários de prática6. Estudantes se sentem ansiosos e vulneráveis em contexto de isolamento social, especialmente pelas mudanças nas condições de ensino, recomendações de saúde e pelo reconhecimento das implicações de suas decisões para familiares e outras pessoas. Concomitantemente, tais vivências disputam o desejo e o compromisso de cuidar dos pacientes6. Acompanhar como os alunos são afetados e quais estratégias são empregadas para elaborar os efeitos da pandemia e isolamento social são medidas importantes. A prática da medicina é um empreendimento inerentemente moral, cujo sucesso depende muito da integridade dos profissionais, pois enfrentam os deveres que o cuidar implica6.

Considerando os efeitos sobre a saúde mental na quarentena entre estudantes de profissões da saúde, esse trabalho teve como objetivo investigar quais recursos foram utilizados pelos estudantes de medicina da Faculdade XX - Rio de Janeiro. Espera-se que os resultados permitam conhecer melhor a realidade vivida na quarentena e possam informar as medidas de orientação, acolhimento e suporte aos alunos de medicina.


METODOLOGIA

Esse estudo se trata de um recorte de uma investigação maior a respeito dos efeitos da quarentena sobre a saúde mental dos acadêmicos. Realizou-se um estudo exploratório, observacional, com análise qualitativa, realizada com estudantes de medicina, do primeiro ao sexto ano, de uma faculdade de medicina do Rio Janeiro-RJ (privada).

A pesquisa foi divulgada por meio dos representantes de turma, redes sociais da monitoria de Psicologia Médica e coordenação da faculdade. E o recrutamento da amostra foi realizado por meio de disponibilização de questionário on-line (plataforma Google-forms), através dos endereços eletrônicos das turmas. Os questionários online foram enviados em agosto de 2020. 80 questionários foram devolvidos para análise. Considerou-se número suficiente para finalização do campo, dada a identificação de repetição e saturação das respostas apresentadas.

Os critérios de inclusão foram alunos cursando medicina no campus Presidente Vargas (Faculdade de Medicina Estácio de Sá), regularmente matriculados, entre o 1º e o 12º períodos. Os critérios de exclusão foram não concordar em participar da pesquisa e/ou não estar regularmente matriculado.

O instrumento utilizado para colher as informações foi um questionário semi-estruturado dividido em 4 seções (vide quadro 1). Pretendeu-se investigar como os alunos estavam vivenciando a quarentena, a influência sobre hábitos de estudo e atividades práticas, e, finalmente, a percepção de sofrimento psíquico e suas medidas de enfrentamento. Em relação a experiência de sofrimento psíquico, questionou-se se percebiam alterações que pudessem sugerir a presença de sintomas dos transtornos mentais comuns.




A análise das respostas foi realizada seguindo o método de análise de conteúdo7. Desenvolveu-se em 3 fases. As entrevistas foram todas lidas de modo flutuante para exploração inicial do conjunto e posterior discussão das impressões pelas pesquisadoras. Em seguida, retomou-se o material para delimitar a forma de categorização das falas, considerando cada entrevista individualmente e a totalidade do material. Finalmente, procedeu-se com demarcação estatística e interpretação fundamentada pela sociologia médica.

Quanto aos aspectos éticos, o preenchimento do questionário foi precedido pela leitura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE, também online), para que os sujeitos da pesquisa pudessem conhecer os objetivos e a metodologia da pesquisa, consentindo, ou não, em participar e ter garantidos sigilo, privacidade e encaminhamento de suas demandas. Todos os participantes formalizaram o aceite por meio da assinatura do TCLE. Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da universidade de origem do projeto (CAAE 33032620.5.0000.5284).


RESULTADOS E DISCUSSÃO

Entre os 80 questionários respondidos, houve maioria de respondentes mulheres (80%), brancos (80%) seguidos por pardos (15%), pretos (3,75%) e amarelo (1,25%). Alunos dos 1º ao 10º período responderam, com cerca de 08 respondentes por período.

Os sintomas mais frequentes foram ansiedade, seguidos por dificuldade para se concentrar, desânimo, cansaço, alteração do apetite e do sono. Angústia, tristeza e tensão muscular foram os menos relatados. A maioria dos alunos relatou 5 queixas ou mais (78%), e entre esses estudantes, 42% já se sentiam assim antes da quarentena. Entre os alunos com mais sintomas, somente metade buscou avaliação e acompanhamento em saúde mental ao longo da vida.

As categorias encontradas na seção enfrentamento da pandemia apareceram sobrepostas entre si e foram: "cuidado de si", "atividade artística", "interação social", "atividade acadêmica", "contato com a natureza" e "uso de substâncias". A maioria (70%) adotou atividades individuais para o cuidado de si - atividades físicas; hobbies (por exemplo praticar culinária); atividades de relaxamento (meditação e yoga). Como se observa nos seguintes depoimentos:


"Correr ao ar livre, ver filmes, ler livros".

"Gosto de tomar um sol de vez em quando, ler um livro ou ver séries. Tenho me dedicado a aprender violão."


Na amostra total, poucos alunos (10%) referiram psicoterapia como uma das estratégias para lidar com o sofrimento e, muitas vezes associada ao uso de medicação como se nota a seguir:


"Só a terapia e o remédio. Sem ânimo para mais nada."


Poucos respondentes (8%) admitiram uso de bebidas alcoólicas ou outras substâncias (inclusive medicação psicotrópica) para lidar com a quarentena. Alguns alunos referiram buscar conforto em práticas religiosas (cultos espíritas, preces) e alguns relataram não fazer nada para se sentir melhor (8%).

A opção por atividades artísticas ocorreu em seguida (47%), predominantemente, por atividades de lazer (leitura, ver filmes/séries). Interação social (virtual ou presencial) curiosamente, foi a terceira categoria mais adotada (22%), sugerindo a potencialidade de adaptação através dos encontros:


"Conversando e bebendo online com os meus amigos, é o que me faz melhor, inclusive psicologicamente."

"Cuidar e curtir meu filho."


As limitações relacionadas a aplicação de questionários online, impedindo o aprofundamento de questões específicas, e no início da pandemia, quando novas rotinas de cuidado ainda estavam se estabelecendo, podem ter interferido com os resultados. Ainda assim, algumas questões se colocam.

A começar, pelo nível de sofrimento mental dos alunos. A literatura menciona que até 30% dos acadêmicos de medicina no Brasil apresentam alguma síndrome ou transtorno mental8 e esse sofrimento estaria relacionado a perda de qualidade de vida, dificuldades nas relações sociais, nas atividades acadêmicas e profissionais empobrecendo a prática assistencial e o cuidado com os pacientes8. É importante criar estratégias de reconhecimento desse sofrimento, não só individualmente, mas institucionalmente. A estrutura curricular fragmentada e excesso de competição ao longo da formação e prática médicas estão entre os fatores associados a esse fenômeno8,9.

A aparente dissociação entre a gravidade das queixas e as medidas de enfrentamento tomadas para enfrentá-las parece corroborar a literatura a respeito do processo de socialização médica. O gerenciamento de situações hostis e obstáculos nos cenários de aprendizado e prática se dá individualmente, com resignação silenciosa, de modo a preservar uma imagem de auto-suficiência9. A preferência por atividades individuais de cuidado de si parece reforçar essa tendência.

Ademais, a baixa preferência por medidas de cuidado interativas (psicoterapia, relações sociais, atividades religiosas) e ausência de menções a ações solidárias entre os estudantes, ou voltadas para populações vulneráveis, como medidas que atenuem as dificuldades entre pares e para parcelas mais fragilizadas pela pandemia, refletiria uma forma particular de lidar com o fenômeno saúde-doença. Problemas e soluções estariam situados no nível individual e, assim, dissociados da dimensão relacional mais ampla em que estão imersos. Tal redução à esfera individual, do auto-cuidado, pode estimular a medicalização10, um empobrecimento das possibilidades de investigação e manejo do sofrimento mental, além de um afastamento do espaço público que não são desejáveis entre profissionais de saúde.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesse artigo, investigou-se as estratégias utilizadas por alunos de medicina para gerenciar o sofrimento desencadeado pela quarentena. Observou-se preferência por medidas de auto-cuidado, realizadas individualmente, aparentemente desproporcionais ao sofrimento relatado. Embora esse modo de enfrentamento seja comum entre estudantes de medicina, não é desejável por acentuar o isolamento e limitar suas possibilidades de enfrentamento do sofrimento mental. Por fim, defende-se que a investigação das dinâmicas complexas que modulam as respostas às adversidades pode se beneficiar de leitura que articule aspectos subjetivos e sociais e, assim, se desdobrar no planejamento e construção de práticas de cuidado abrangentes e inclusivas.

Declaração de conflito de interesses

As autoras declaram não haver conflito de interesses.


AGRADECIMENTOS

As autoras gostariam de agradecer ao editor e aos revisores anônimos pelos comentários detalhados e úteis nas versões anteriores deste artigo, bem como ao Programa Institucional de Iniciação Científica UNESA/CNPq e a Profa. Fátima Geovanini pelo apoio ao projeto de pesquisa.


REFERÊNCIAS

1. WHO et al. PLAN, Influenza Pandemic. The role of WHO and guidelines for national and regional planning. World Health Organization, Geneva, Switzerland April, 1999.

2. WHO et al. Pandemic influenza preparedness and response: a WHO guidance document. Geneva: World Health Organization, 2009.

3. Huremovic D. Mental Health of Quarantine and Isolation. In: HUREMOVIĆ D. Psychiatry of Pandemics. Springer, Cham, 2019. p. 95-118.

4. WHO et al. Mental health and psychosocial considerations during the COVID-19 outbreak, 18 March 2020. World Health Organization, 2020.

5. Shanafelt T, Ripp J, & Trockel M. Understanding and addressing sources of anxiety among health care professionals during the COVID-19 pandemic. Jama, 2020, 323(21), 2133-2134.

6. Gallagher TH, & Schleyer AM. “We signed up for this!”-Student and trainee responses to the Covid-19 pandemic. New England Journal of Medicine, 2020, 382(25), e96.

7. Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011.

8. Pacheco JP, Giacomin HT, TamWW, Ribeiro TB, Arab C, Bezerra IM, & Pinasco, GC. Mental health problems among medical students in Brazil: a systematic review and meta-analysis. Brazilian Journal of Psychiatry, 2017, 39(4), 369-378.

9. Weiss GL, Lonnquist LE. Medical education and the socialization of physicians. In: WEISS G L. Sociology of health, healing, and illness. Routledge, 2015.

10. Crawford R. Healthism and the medicalization of everyday life. International journal of health services, v. 10, n. 3, p. 365-388, 1980.










aUniversidade Estácio de Sá, Faculdade de Medicina, Rio de Janeiro/RJ - Brasil
bUniversidade Estadual do Rio de Janeiro,Faculdade de Ciências Médicas, Rio de Janeiro/RJ - Brasil

Correspondência

Manuela Rodrigues Müller
muller.manuela@gmail.com

Submetido em: 10/02/2021
Aceito em: 15/07/2021

Contribuições: Manuela Rodrigues Müller - Conceitualização, Metodologia, Redação - Preparação do original, Redação - Revisão e Edição, Supervisão; Gabriela Albuquerque e Albuquerque - Coleta de Dados, Investigação, Redação - Preparação do original; Giovana Rosa Monnerat - Coleta de Dados, Investigação, Redação - Preparação do original.

 

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