Rev. bras. psicoter. 2021; 23(2):35-46
Cerqueira-Santos E, Ramos MM, Gato J. Indicadores de distress entre jovens LGBT+ durante o isolamento social pela COVID-19 no Brasil. Rev. bras. psicoter. 2021;23(2):35-46
Artigo Original
Indicadores de distress entre jovens LGBT+ durante o isolamento social pela COVID-19 no Brasil
Distress Indicators among LGBT+ Youth during Social Isolation by COVID-19 in Brazil
Indicadores de distress entre jóvenes LGBT+ durante el aislamiento social por COVID-19 en Brasil
Elder Cerqueira-Santosa; Mozer de Miranda Ramosa; Jorge Gatob
Resumo
Abstract
Resumen
INTRODUÇÃO
Desde dezembro de 2019, o mundo convive com um novo coronavírus, responsável pela síndrome respiratória aguda grave do coronavírus 2 (SARS-CoV-2)1, identificado como o agente que causa a doença de coronavírus (COVID-19), nome oficialmente adotado pela Organização Mundial da Saúde. A doença caracterizou-se pela rapidez de disseminação, que um ano após a detecção do primeiro caso já havia atingido mais de 96 milhões de casos em todos os continentes do planeta2. No Brasil, o primeiro caso foi confirmado no dia 26 de fevereiro e, no dia 3 de março, havia mais de 500 casos suspeitos. Até dezembro de 2020, o Brasil já contabilizava mais de 190.000 mortes e mais de 7.500.000 casos. Em junho de 2021, já estava se aproximando de 17 milhões de casos e 500.000 mortes3.
Além dos riscos médicos associados à COVID-19, com as altas e rápidas taxas de mortalidade e contaminação, os aspectos psicológicos associados à situação pandêmica são altamente relevantes. Estudos anteriores já relataram associações entre variáveis psicológicas e situações epidêmicas4-5; com ênfase em altas queixas de distress (ansiedade, estresse e depressão)6-7. Um dos primeiros estudos sobre as respostas psicológicas ao coronavírus foi conduzido na China, encontrando uma forte associação com aumento do medo e outras emoções negativas, bem como ansiedade e estresse8. Os pesquisadores também descobriram um aumento no uso de álcool e tabaco durante os primeiros meses da epidemia na China.
Distress é um construto que engloba uma infinidade de sintomas e estados afetivos desconfortáveis, como ansiedade, angústia, aflição, tristeza, depressão ou estresse. Pode ser considerado um indicador negativo de saúde mental mais amplo ou uma medida de sofrimento psicológico geral nos casos em que um diagnóstico específico não está presente.
Vários países adotaram medidas de isolamento e bloqueio social na tentativa de controlar a transmissão do vírus e diminuir a procura pelo sistema de saúde. As medidas de isolamento, embora eficazes no combate à pandemia, também estiveram associadas ao aumento das queixas relacionadas a desordens psicológicas, constituindo um conjunto de sintomas denominado distress9. Além disso, foram relatados efeitos como confusão, raiva e estresse pós-traumático. Outros importantes aspectos relacionados às epidemias são os receios em relação ao vírus ou à infecção, à frustração, à diminuição de rendimentos, à informação inadequada e ao estigma10.
Em um estudo realizado na Espanha, níveis mais elevados de depressão, ansiedade e estresse foram encontrados entre pessoas mais jovens e com doenças crônicas que aderiram ao isolamento social como medida de proteção contra COVID-197. Em Portugal, um estudo com estudantes universitários demonstrou um aumento significativo de depressão, ansiedade e estresse na mesma amostra antes e depois da declaração da pandemia da COVID-1910. Na China, Wang et al.8, em estudo com universitários, relatou que pouco mais da metade deles declarou sentir um impacto emocional muito forte em decorrência da pandemia de COVID-19 e um terço da amostra apresentou sintomas graves de ansiedade durante o isolamento social. Na Itália, resultados semelhantes foram encontrados em uma amostra de adolescentes, com diferenças nos subgrupos por regiões afetadas e variáveis de grupo, como classe social e raça11.
Semelhante ao efeito médico da doença, que varia fortemente entre diferentes grupos sociais (por exemplo, diferentes taxas de mortalidade), os efeitos psicológicos apresentam grande variação dependendo de uma série de variáveis individuais e de grupo12. Acesso a serviços de saúde, a condições para adequado isolamento social, à mídia e ao entretenimento, entre outros fatores, pode levar determinados grupos e indivíduos a situações mais precárias para enfrentar a pandemia13. É fundamental pensar em noções de vulnerabilidade nessa situação. Afinal, as desigualdades e a negação de direitos já existentes no período prépandêmico podem ser maximizadas pela situação de caos imposta na saúde pública e pelas condições de isolamento social precárias14. As minorias sexuais LGBT+, bem como outros grupos que vivem em situação de vulnerabilidade encontram-se especialmente comprometidas nesse contexto15.
Salerno, Williams e Gattamorta16 revisaram os principais argumentos para se pensar no aumento da vulnerabilidade do grupo LGBT+ durante a pandemia e o isolamento social, incluindo maiores taxas de tabagismo, imunossupressão por falta de tratamento para o HIV em determinados grupos, preconceito no acesso ao sistema de saúde, isolamento das redes de apoio social e familiar e maior prevalência de transtornos mentais. Além disso, diversos aspectos sociais relacionados ao preconceito e às diversas formas de violência aumentam o distanciamento desse grupo dos serviços de saúde e proteção17. Silva e Cerqueira-Santos18 destacam que a população LGBT+ tende a vivenciar baixo suporte familiar percebido; relatando, frequentemente, rupturas e situações estressantes na vida doméstica causadas pela orientação sexual e/ou identidade de gênero. E isso, somado ao confinamento familiar, pode potencializar afetos negativos e repercussões indesejáveis na saúde mental desses jovens. Esses efeitos são indicadores gerais de risco, que mesmo os indivíduos não expostos diretamente podem experimentar.
Considerando o exposto, há uma série de evidências que alertam para a necessidade de compreender as repercussões psicológicas da pandemia de COVID-19 para grupos específicos. Dessa forma, estratégias de prevenção e de atendimento psicológico à população podem ser elaboradas e executadas de forma mais eficiente9. Além disso, devem ser tomadas medidas sociais que respondam às necessidades desses grupos, evitando o aumento da violência e exclusão dos sistemas de proteção e saúde. O objetivo geral deste estudo é investigar indicadores de distress entre jovens LGBT+ durante o isolamento social e seus fatores associados durante a pandemia de COVID-19 no Brasil, levantando indicadores de distress com base em medidas de depressão, ansiedade e estresse. Um objetivo adicional é identificar os fatores associados ao distress nesses jovens, principalmente com relação ao apoio social e familiar. A hipótese é que o isolamento social com a família está associado a variações no distress da amostra.
MÉTODO
Participantes
O critério de inclusão para participação foi autoidentificar-se como jovem LGBT+ e ter entre 18 e 32 anos. Os participantes foram tratados como um único grupo em um estudo com um desenho de pesquisa. Não foi possível realizar um grupo de controle ou outro tipo de comparação devido à situação extraordinária da pandemia, que expôs todos à mesma situação de pesquisa.
Instrumentos
Foi utilizado um conjunto de escalas e questionários dispostos em plataforma online. Os instrumentos foram cuidadosamente selecionados para possibilitar o alcance dos objetivos.
Distress: a Depression Anxiety Stress Scales - 21 (DASS19) foi utilizada, ela contém 21 itens e é respondida em uma escala Likert de 4 pontos. Seus itens tratam dos sintomas de depressão, ansiedade e estresse na semana anterior. O alfa de Cronbach nesta amostra foi de 0,948.
Neuroticismo: o NEO-Five Factor Inventory (NEO-FFI20) foi utilizado. Com base no modelo Big Five, 12 itens avaliados em uma escala Likert de 5 pontos foram usados para avaliar traços de personalidade de neuroticismo. O alfa de Cronbach nesta amostra foi de 0,834.
Disfuncionalidade familiar: a Systemic Clinical Outcome and Routine Evaluation (SCORE-1521) foi utilizada. Composto por 15 itens respondidos em uma escala Likert de 5 pontos, avalia em seus três fatores: Recursos Familiares, Comunicação na Família e Dificuldades Familiares. O alfa de Cronbach nesta amostra foi de 0,915.
Percepção de suporte social: a Multidimensional Scale of Perceived Social Support (MSPSS22) foi usada. Contendo 12 itens distribuídos em três fatores (família, amigos e outros significativos), essa escala é respondida em uma escala Likert de sete pontos, avaliando a percepção subjetiva de suporte social. O alfa de Cronbach nesta amostra foi de 0,895.
Identidade LGBT negativa: dois fatores da Lesbian, Gay, and Bisexual Identity Scale (LGBIS23), adaptados para incluir pessoas trans, insatisfação com a identidade (6 itens; avalia o grau de insatisfação com sua identidade LGBT+) e sensibilidade ao estigma (3 itens; avalia até que ponto os indivíduos experimentam expectativas ansiosas de rejeição com base em sua identidade LGBT+). É respondido em uma escala Likert de sete pontos. O alfa de Cronbach nesta amostra foi de 0,844.
Outness: foi avaliado por meio de um inventário adaptado pelos autores24, que avalia o grau de abertura da orientação sexual em sete contextos (por exemplo, mãe, irmãos, professores etc.). É respondido em uma escala Likert de sete pontos com a opção "não se aplica". O cálculo da pontuação final desconsidera aqueles contextos que não se aplicam ao respondente. O alfa de Cronbach nesta amostra foi de 0,712.
Questionário de socioidentitário: questões desenvolvidas pelos autores para investigar aspectos sociais e identitários dos participantes. Foram utilizadas questões relacionadas à idade, moradia, orientação sexual, identidade de gênero, experiência de isolamento social e aceitação familiar da identidade LGBT+.
Procedimentos
Esta pesquisa é parte de uma parceria internacional com a Universidade do Porto (Portugal), que contou com o Brasil e mais cinco países da Europa e América Latina. O nome do projeto é "Social Support Networks and Psychological Health among LGBT+ Young People during the COVID-19 Pandemic". As setes Universidades participantes aplicaram um protocolo de pesquisa semelhante através de uma plataforma online durante o período de isolamento social provocado pela pandemia da COVID-19. No Brasil, a produção dos dados ocorreu entre 09 e 22 de maio de 2020, período no qual os óbitos no Brasil por COVID-19 passaram de cerca de 10 mil para mais de 20 mil e os casos passaram de cerca de 155 mil para mais de 330 mil3.
A divulgação da pesquisa ocorreu através de redes sociais (Facebook, Instagram e Twitter) na página de um grupo de pesquisa e de voluntários. Para realização desta pesquisa houve aprovação do CONEP e foram observados os princípios éticos que regulamentam a realização de pesquisa com seres humanos, previstos nas resoluções CNS 466/12 e 512/16. Os participantes foram informados dos procedimentos e objetivos da pesquisa através de um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e só participaram da resolução do questionário online os que declararam concordar com os termos da pesquisa.
Análise de dados
Os questionários respondidos foram transferidos para o software SPSS. Foram realizadas análises estatísticas descritivas e inferenciais: médias, frequências, testes t, correlações e regressão linear. Os testes t realizados avaliaram se existiam diferenças em termos de gênero (masculino e feminino), estar em isolamento social ou não e em isolamento com familiares ou não, em relação às variáveis contínuas selecionadas: distress, percepção de suporte social, disfuncionalidade familiar, neuroticismo, identidade LGBT negativa, outness e aceitação familiar percebida. As correlações envolveram essas mesmas variáveis contínuas. A regressão linear realizada teve como variável dependente o distress e como variáveis independentes: suporte social percebido, disfuncionalidade familiar, neuroticismo, identidade LGBT negativa, outness, percepção de aceitação da família, gênero (dummy, intersexuais foram retirados desta análise), estar em isolamento social (dummy) e ficar em isolamento com a família (dummy). O método de regressão Backward foi usado. A impossibilidade de planejar a coleta de dados em decorrência da situação pandêmica limita as possibilidades de comparação e discussão com base em dados coletados em estudos anteriores.
RESULTADOS
Participaram deste estudo 816 jovens LGBT+ brasileiros entre 18 e 32 anos, a média de idade foi de 23,02 anos (DP = 3,98). Aproximadamente um quarto dos participantes (25,9%) tinha menos de 20 anos na época da pesquisa. A maioria era branca (53,8%), seguida de pardos (27,9%), pretos (15,9%) e outras identificações étnico-raciais (2,3%). Quanto à escolaridade, 52,6% já haviam concluído o ensino médio, enquanto 45,0% possuíam ensino superior completo. Na amostra, 95,5% dos jovens residiam em áreas urbanas de 26 estados brasileiros, mais o Distrito Federal. São Paulo (24,0%) e Sergipe (12,5%) foram os estados mais representados. As regiões com mais respondentes foram Nordeste (41,6%), Sudeste (38,5%) e Sul (12,6%).
Os participantes identificaram-se como homens (46,7%), mulheres (52,1%) ou intersexuais (1,2%). A maioria era cisgênero (91,8%), havendo também transgêneros (3,1%), não-binários (4,7%) e outras identificações (0,5%). Quanto à orientação sexual, distribuíram-se entre homossexuais (59,3%), bissexuais (32,7%), pansexuais (5,6%) e outros (2,3%). Aqueles que declararam estar em isolamento social foram 79,5%. Dos participantes, 70,3% moravam com a família, enquanto 10,0% não moravam, mas voltaram para casa por causa da pandemia e 19,6% não moravam com a família durante o período de isolamento social. A distribuição de frequência e os escores médios calculados para as variáveis de pesquisa são apresentados na Tabela 1.
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