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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2021; 23(2):35-46



Artigo Original

Indicadores de distress entre jovens LGBT+ durante o isolamento social pela COVID-19 no Brasil

Distress Indicators among LGBT+ Youth during Social Isolation by COVID-19 in Brazil

Indicadores de distress entre jóvenes LGBT+ durante el aislamiento social por COVID-19 en Brasil

Elder Cerqueira-Santosa; Mozer de Miranda Ramosa; Jorge Gatob

Resumo

O objetivo foi investigar indicadores de distress (sofrimento psicológico) entre jovens LGBT+ durante o isolamento social e seus fatores associados no Brasil. 816 jovens LGBT+ (lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros e pertencentes a outras minorias sexuais e de gênero) brasileiros, entre 18 e 32 anos, foram acessados por meio de formulário eletrônico. Indicadores de distress (depressão, ansiedade, estresse) foram medidos por meio de escalas como DASS21, Identidade LGBT, Suporte Social, Disfuncionalidade Familiar, Neuroticismo e Outness. A regressão linear múltipla apresentou um modelo significativo no qual identidade LGBT negativa, suporte social percebido, disfuncionalidade familiar, neuroticismo, aceitação familiar percebida e gênero desempenharam um papel como preditores do distress.

Descritores: COVID-19; Distress; Minorias sexuais e de gênero; Juventude; Saúde mental

Abstract

The objective was to investigate distress indicators among LGBT+ youth during social isolation and its associated factors in Brazil. 816 young LGBT+ (lesbian, gay, bisexual, transgender people and those belonging to other sexual and gender minorities) Brazilians between the ages of 18 and 32 were accessed through an electronic form. Indicators of distress (depression, anxiety, stress) were measured, using scales such as the DASS21, LGBT Identity, Social Support, Family Dysfunctionality, Neuroticism, and Outness. Multiple linear regression presented a significant model in which negative LGBT identity, perceived social support, family dysfunctionality, neuroticism, perceived family acceptance, and gender played a role as predictors of distress.

Keywords: COVID-19; Distress; Sexual and gender minorities; Youth; Mental health

Resumen

El objetivo era investigar los indicadores de distress (sufrimiento psicológico) entre los jóvenes LGBT + durante el aislamiento social y sus factores asociados en Brasil. Se accedió a 816 brasileños LGBT+ (lesbianas, gays, bisexuales, transgénero y pertenecientes a otras minorías sexuales y de género) brasileños, entre 18 y 32 años, a través de un formulario electrónico. Los indicadores de distress (depresión, ansiedad, estrés) se midieron mediante escalas como DASS21, Identidad LGBT, Apoyo Social, Disfuncionalidad Familiar, Neuroticismo y Outness. La regresión lineal múltiple presentó un modelo significativo en el que la identidad LGBT negativa, el apoyo social percibido, la disfunción familiar, el neuroticismo, la aceptación familiar percibida y el género jugaron un papel como predictores de distress.

Descriptores: COVID-19; Distress; Minorías sexuales y de género; Juventud; Salud mental

 

 

INTRODUÇÃO

Desde dezembro de 2019, o mundo convive com um novo coronavírus, responsável pela síndrome respiratória aguda grave do coronavírus 2 (SARS-CoV-2)1, identificado como o agente que causa a doença de coronavírus (COVID-19), nome oficialmente adotado pela Organização Mundial da Saúde. A doença caracterizou-se pela rapidez de disseminação, que um ano após a detecção do primeiro caso já havia atingido mais de 96 milhões de casos em todos os continentes do planeta2. No Brasil, o primeiro caso foi confirmado no dia 26 de fevereiro e, no dia 3 de março, havia mais de 500 casos suspeitos. Até dezembro de 2020, o Brasil já contabilizava mais de 190.000 mortes e mais de 7.500.000 casos. Em junho de 2021, já estava se aproximando de 17 milhões de casos e 500.000 mortes3.

Além dos riscos médicos associados à COVID-19, com as altas e rápidas taxas de mortalidade e contaminação, os aspectos psicológicos associados à situação pandêmica são altamente relevantes. Estudos anteriores já relataram associações entre variáveis psicológicas e situações epidêmicas4-5; com ênfase em altas queixas de distress (ansiedade, estresse e depressão)6-7. Um dos primeiros estudos sobre as respostas psicológicas ao coronavírus foi conduzido na China, encontrando uma forte associação com aumento do medo e outras emoções negativas, bem como ansiedade e estresse8. Os pesquisadores também descobriram um aumento no uso de álcool e tabaco durante os primeiros meses da epidemia na China.

Distress é um construto que engloba uma infinidade de sintomas e estados afetivos desconfortáveis, como ansiedade, angústia, aflição, tristeza, depressão ou estresse. Pode ser considerado um indicador negativo de saúde mental mais amplo ou uma medida de sofrimento psicológico geral nos casos em que um diagnóstico específico não está presente.

Vários países adotaram medidas de isolamento e bloqueio social na tentativa de controlar a transmissão do vírus e diminuir a procura pelo sistema de saúde. As medidas de isolamento, embora eficazes no combate à pandemia, também estiveram associadas ao aumento das queixas relacionadas a desordens psicológicas, constituindo um conjunto de sintomas denominado distress9. Além disso, foram relatados efeitos como confusão, raiva e estresse pós-traumático. Outros importantes aspectos relacionados às epidemias são os receios em relação ao vírus ou à infecção, à frustração, à diminuição de rendimentos, à informação inadequada e ao estigma10.

Em um estudo realizado na Espanha, níveis mais elevados de depressão, ansiedade e estresse foram encontrados entre pessoas mais jovens e com doenças crônicas que aderiram ao isolamento social como medida de proteção contra COVID-197. Em Portugal, um estudo com estudantes universitários demonstrou um aumento significativo de depressão, ansiedade e estresse na mesma amostra antes e depois da declaração da pandemia da COVID-1910. Na China, Wang et al.8, em estudo com universitários, relatou que pouco mais da metade deles declarou sentir um impacto emocional muito forte em decorrência da pandemia de COVID-19 e um terço da amostra apresentou sintomas graves de ansiedade durante o isolamento social. Na Itália, resultados semelhantes foram encontrados em uma amostra de adolescentes, com diferenças nos subgrupos por regiões afetadas e variáveis de grupo, como classe social e raça11.

Semelhante ao efeito médico da doença, que varia fortemente entre diferentes grupos sociais (por exemplo, diferentes taxas de mortalidade), os efeitos psicológicos apresentam grande variação dependendo de uma série de variáveis individuais e de grupo12. Acesso a serviços de saúde, a condições para adequado isolamento social, à mídia e ao entretenimento, entre outros fatores, pode levar determinados grupos e indivíduos a situações mais precárias para enfrentar a pandemia13. É fundamental pensar em noções de vulnerabilidade nessa situação. Afinal, as desigualdades e a negação de direitos já existentes no período prépandêmico podem ser maximizadas pela situação de caos imposta na saúde pública e pelas condições de isolamento social precárias14. As minorias sexuais LGBT+, bem como outros grupos que vivem em situação de vulnerabilidade encontram-se especialmente comprometidas nesse contexto15.

Salerno, Williams e Gattamorta16 revisaram os principais argumentos para se pensar no aumento da vulnerabilidade do grupo LGBT+ durante a pandemia e o isolamento social, incluindo maiores taxas de tabagismo, imunossupressão por falta de tratamento para o HIV em determinados grupos, preconceito no acesso ao sistema de saúde, isolamento das redes de apoio social e familiar e maior prevalência de transtornos mentais. Além disso, diversos aspectos sociais relacionados ao preconceito e às diversas formas de violência aumentam o distanciamento desse grupo dos serviços de saúde e proteção17. Silva e Cerqueira-Santos18 destacam que a população LGBT+ tende a vivenciar baixo suporte familiar percebido; relatando, frequentemente, rupturas e situações estressantes na vida doméstica causadas pela orientação sexual e/ou identidade de gênero. E isso, somado ao confinamento familiar, pode potencializar afetos negativos e repercussões indesejáveis na saúde mental desses jovens. Esses efeitos são indicadores gerais de risco, que mesmo os indivíduos não expostos diretamente podem experimentar.

Considerando o exposto, há uma série de evidências que alertam para a necessidade de compreender as repercussões psicológicas da pandemia de COVID-19 para grupos específicos. Dessa forma, estratégias de prevenção e de atendimento psicológico à população podem ser elaboradas e executadas de forma mais eficiente9. Além disso, devem ser tomadas medidas sociais que respondam às necessidades desses grupos, evitando o aumento da violência e exclusão dos sistemas de proteção e saúde. O objetivo geral deste estudo é investigar indicadores de distress entre jovens LGBT+ durante o isolamento social e seus fatores associados durante a pandemia de COVID-19 no Brasil, levantando indicadores de distress com base em medidas de depressão, ansiedade e estresse. Um objetivo adicional é identificar os fatores associados ao distress nesses jovens, principalmente com relação ao apoio social e familiar. A hipótese é que o isolamento social com a família está associado a variações no distress da amostra.


MÉTODO

Participantes


O critério de inclusão para participação foi autoidentificar-se como jovem LGBT+ e ter entre 18 e 32 anos. Os participantes foram tratados como um único grupo em um estudo com um desenho de pesquisa. Não foi possível realizar um grupo de controle ou outro tipo de comparação devido à situação extraordinária da pandemia, que expôs todos à mesma situação de pesquisa.

Instrumentos

Foi utilizado um conjunto de escalas e questionários dispostos em plataforma online. Os instrumentos foram cuidadosamente selecionados para possibilitar o alcance dos objetivos.

Distress: a Depression Anxiety Stress Scales - 21 (DASS19) foi utilizada, ela contém 21 itens e é respondida em uma escala Likert de 4 pontos. Seus itens tratam dos sintomas de depressão, ansiedade e estresse na semana anterior. O alfa de Cronbach nesta amostra foi de 0,948.

Neuroticismo: o NEO-Five Factor Inventory (NEO-FFI20) foi utilizado. Com base no modelo Big Five, 12 itens avaliados em uma escala Likert de 5 pontos foram usados para avaliar traços de personalidade de neuroticismo. O alfa de Cronbach nesta amostra foi de 0,834.

Disfuncionalidade familiar: a Systemic Clinical Outcome and Routine Evaluation (SCORE-1521) foi utilizada. Composto por 15 itens respondidos em uma escala Likert de 5 pontos, avalia em seus três fatores: Recursos Familiares, Comunicação na Família e Dificuldades Familiares. O alfa de Cronbach nesta amostra foi de 0,915.

Percepção de suporte social: a Multidimensional Scale of Perceived Social Support (MSPSS22) foi usada. Contendo 12 itens distribuídos em três fatores (família, amigos e outros significativos), essa escala é respondida em uma escala Likert de sete pontos, avaliando a percepção subjetiva de suporte social. O alfa de Cronbach nesta amostra foi de 0,895.

Identidade LGBT negativa: dois fatores da Lesbian, Gay, and Bisexual Identity Scale (LGBIS23), adaptados para incluir pessoas trans, insatisfação com a identidade (6 itens; avalia o grau de insatisfação com sua identidade LGBT+) e sensibilidade ao estigma (3 itens; avalia até que ponto os indivíduos experimentam expectativas ansiosas de rejeição com base em sua identidade LGBT+). É respondido em uma escala Likert de sete pontos. O alfa de Cronbach nesta amostra foi de 0,844.

Outness: foi avaliado por meio de um inventário adaptado pelos autores24, que avalia o grau de abertura da orientação sexual em sete contextos (por exemplo, mãe, irmãos, professores etc.). É respondido em uma escala Likert de sete pontos com a opção "não se aplica". O cálculo da pontuação final desconsidera aqueles contextos que não se aplicam ao respondente. O alfa de Cronbach nesta amostra foi de 0,712.

Questionário de socioidentitário: questões desenvolvidas pelos autores para investigar aspectos sociais e identitários dos participantes. Foram utilizadas questões relacionadas à idade, moradia, orientação sexual, identidade de gênero, experiência de isolamento social e aceitação familiar da identidade LGBT+.

Procedimentos

Esta pesquisa é parte de uma parceria internacional com a Universidade do Porto (Portugal), que contou com o Brasil e mais cinco países da Europa e América Latina. O nome do projeto é "Social Support Networks and Psychological Health among LGBT+ Young People during the COVID-19 Pandemic". As setes Universidades participantes aplicaram um protocolo de pesquisa semelhante através de uma plataforma online durante o período de isolamento social provocado pela pandemia da COVID-19. No Brasil, a produção dos dados ocorreu entre 09 e 22 de maio de 2020, período no qual os óbitos no Brasil por COVID-19 passaram de cerca de 10 mil para mais de 20 mil e os casos passaram de cerca de 155 mil para mais de 330 mil3.

A divulgação da pesquisa ocorreu através de redes sociais (Facebook, Instagram e Twitter) na página de um grupo de pesquisa e de voluntários. Para realização desta pesquisa houve aprovação do CONEP e foram observados os princípios éticos que regulamentam a realização de pesquisa com seres humanos, previstos nas resoluções CNS 466/12 e 512/16. Os participantes foram informados dos procedimentos e objetivos da pesquisa através de um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e só participaram da resolução do questionário online os que declararam concordar com os termos da pesquisa.

Análise de dados

Os questionários respondidos foram transferidos para o software SPSS. Foram realizadas análises estatísticas descritivas e inferenciais: médias, frequências, testes t, correlações e regressão linear. Os testes t realizados avaliaram se existiam diferenças em termos de gênero (masculino e feminino), estar em isolamento social ou não e em isolamento com familiares ou não, em relação às variáveis contínuas selecionadas: distress, percepção de suporte social, disfuncionalidade familiar, neuroticismo, identidade LGBT negativa, outness e aceitação familiar percebida. As correlações envolveram essas mesmas variáveis contínuas. A regressão linear realizada teve como variável dependente o distress e como variáveis independentes: suporte social percebido, disfuncionalidade familiar, neuroticismo, identidade LGBT negativa, outness, percepção de aceitação da família, gênero (dummy, intersexuais foram retirados desta análise), estar em isolamento social (dummy) e ficar em isolamento com a família (dummy). O método de regressão Backward foi usado. A impossibilidade de planejar a coleta de dados em decorrência da situação pandêmica limita as possibilidades de comparação e discussão com base em dados coletados em estudos anteriores.


RESULTADOS

Participaram deste estudo 816 jovens LGBT+ brasileiros entre 18 e 32 anos, a média de idade foi de 23,02 anos (DP = 3,98). Aproximadamente um quarto dos participantes (25,9%) tinha menos de 20 anos na época da pesquisa. A maioria era branca (53,8%), seguida de pardos (27,9%), pretos (15,9%) e outras identificações étnico-raciais (2,3%). Quanto à escolaridade, 52,6% já haviam concluído o ensino médio, enquanto 45,0% possuíam ensino superior completo. Na amostra, 95,5% dos jovens residiam em áreas urbanas de 26 estados brasileiros, mais o Distrito Federal. São Paulo (24,0%) e Sergipe (12,5%) foram os estados mais representados. As regiões com mais respondentes foram Nordeste (41,6%), Sudeste (38,5%) e Sul (12,6%).

Os participantes identificaram-se como homens (46,7%), mulheres (52,1%) ou intersexuais (1,2%). A maioria era cisgênero (91,8%), havendo também transgêneros (3,1%), não-binários (4,7%) e outras identificações (0,5%). Quanto à orientação sexual, distribuíram-se entre homossexuais (59,3%), bissexuais (32,7%), pansexuais (5,6%) e outros (2,3%). Aqueles que declararam estar em isolamento social foram 79,5%. Dos participantes, 70,3% moravam com a família, enquanto 10,0% não moravam, mas voltaram para casa por causa da pandemia e 19,6% não moravam com a família durante o período de isolamento social. A distribuição de frequência e os escores médios calculados para as variáveis de pesquisa são apresentados na Tabela 1.




Foram encontradas diferenças significativas entre indivíduos masculinos e femininos em várias das medidas utilizadas: disfuncionalidade familiar [Mmasculina = 41,52 (DP = 10,83); Mfeminina = 44,61 (DP = 12,34); t = 3,786; p < 0,001; d de Cohen = 0,26]; neuroticismo [Mmasculina = 30,46 (DP = 8,29); Mfeminina = 33,71 (DP = 7,75); t = 5,751; p < 0,001; d de Cohen = 0,40]; outness [Mmasculina = 4,63 (DP = 1,35); Mfeminina = 4,14 (DP = 1,49); t = -4,842; p < 0,001; d de Cohen = 0,34]; distress [Mmasculina = 25,65 (DP = 14,54); Mfeminina = 32,37 (DP = 15,15); t = 6,407; p < 0,001; d de Cohen = 0, 45]; percepção da aceitação familiar [Mmasculina = 6,67 (DP = 3,29); Mfeminina = 5,82 (DP = 3,59); t = -3,503; p < 0,001; d de Cohen = 0,24]. Só não foram entradas diferenças com relação à percepção do suporte social e identidade LGBT negativa.

Avaliando todos os respondentes, com relação aos grupos que estão e não estão em isolamento social, só foram encontradas diferenças significativas com relação à percepção da aceitação familiar [Msim= 6,07 (DP = 3,52); Mnão = 6,74 (DP = 3,24); t = -2,221; p = 0,027; d de Cohen = 0,19]. Já com relação aos grupos que estão e não estão em isolamento com a família, só não foram encontradas diferenças significativas com relação ao distress. Os resultados foram significativos em: identidade LGBT negativa [Msim = 27,28 (DP = 10,77); Mnão = 25,28 (DP = 10,88); t = 2,108; p = 0,035; d de Cohen = 0,12]; disfuncionalidade familiar [Msim = 44,16 (DP = 11,46); Mnão = 39,40 (DP = 12,16); t = 4,655; p < 0,001; d de Cohen = 0,40]; neuroticismo [Msim = 32,63 (DP = 8,01); Mnão = 30,30 (DP = 8,41); t = 3,266; p = 0,001; d de Cohen = 0,28]; outness [Msim = 4,28 (DP = 1,43); Mnão = 4,76 (DP = 1,45); t = -3,778; p < 0,001; d de Cohen = 0,33]; percepção de suporte social [Msim = 60,39 (DP = 13,72); Mnão = 65,20 (DP = 12,63); t = -4,034; p < 0,001; d de Cohen = 0,36]; percepção da aceitação familiar [Msim = 5,71 (DP = 3,48); Mnão = 8,24 (DP = 2,61); t = -10,212; p < 0,001; d de Cohen = 0,71].

As correlações geradas entre as variáveis contínuas foram significativas e obtiveram magnitudes que variaram entre pequenas e moderadas. Esses dados estão disponíveis na Tabela 2. As maiores magnitudes encontradas foram entre os pares neuroticismo/distress e percepção do suporte social/disfuncionalidade familiar.




Por fim, a regressão linear múltipla realizada apresentou um modelo final significativo [F(6,799) = 114,14; p < 0,001; r2 = 0,462]; sendo o neuroticismo (β = 0,514; t = 17,191; p < 0,001); a percepção da aceitação familiar (β = 0,068; t = 2,247; p = 0,025); a disfuncionalidade familiar (β = 0,147; t = 4,472; p < 0,001); a percepção do suporte social (β = -0,110; t =-3,507; p < 0,001); o gênero (β = 0,108; t = 4,004; p < 0,001) e a identidade LGBT negativa (β = 0,078; t = 2,718; p = 0,007) os preditores do distress. Foram realizados quatro passos pelo software pelo método Backward, assim foram progressivamente excluídas do modelo as variáveis que não contribuíam para ele: outness, a classificação se está ou não em isolamento social e a classificação se está ou não em isolamento junto à família.


DISCUSSÃO

A taxa de isolamento social relatada nessa pesquisa (79,5%) foi bem acima da que vem sendo praticada no Brasil durante a pandemia da COVID-19, que teve seu pico em abril com pouco mais de 60%, mantendo-se em média no patamar dos 40%25. uma taxa de isolamento elevada também foi encontrada em outras amostras de homens não-heterossexuais, no Brasil e em Portugal 26. Isso pode estar relacionado à alta escolaridade da amostra, à faixa etária e às especificidades do grupo. Ademais, cerca de 7 de cada 10 jovens dessa amostra moravam com suas famílias e cerca de 1 a cada 10 retornou para o convívio familiar durante o período de isolamento social. Isso impõe outras dinâmicas no comportamento desse grupo.

As mulheres apresentaram maiores indicativos de disfuncionalidade familiar, neuroticismo e distress, enquanto os homens de maior outness e de percepção do suporte social. Isso pode representar risco para esse grupo, visto que mulheres lésbicas e (algumas mulheres transexuais), além de acumular estigmas referentes ao gênero, também carregam estigmas referentes à orientação sexual. Como encontrado também neste estudo, mulheres apresentam indicadores negativos de saúde mental, como o distress, mais elevados27-28. Além disso, há vários componentes de risco que podem ajudar a tornar esse quadro mais dramático e duradouro: o menor índice de outness e de percepção do suporte social, o que costuma estar associado ao distress29; a maior pontuação em disfuncionalidade familiar, que compromete o suporte social e as possibilidades de desenvolvimento de uma relação saudável e aberta que inclua a identidade LGBT+30, e; maiores índices de neuroticismo, que é associado na literatura a baixo coping e sintomas psiquiátricos31.

Os participantes que não estavam em isolamento social apresentavam uma menor percepção de aceitação familiar, o que está de acordo com os achados de Silva e Cerqueira-Santos18 acerca do clima familiar negativo para pessoas LGBT no Brasil. A não aceitação da família pode ter como consequência um afastamento desse grupo na tentativa de evitar conflitos. Os efeitos do afastamento familiar são revisados por Katz-Wise, Rosario e Tsappis32 que alertam para consequências em termos da própria identidade LGBT e problemas de saúde mental.

Um dos dados mais importantes desta pesquisa é que, ao contrário do que foi levantado como hipótese e do que outra pesquisa mostrou, nesta amostra brasileira estar ou não em isolamento social com a família não esteve associado aos níveis de distress desses jovens. Essa variável também não foi significativa no modelo preditivo de distress aplicado neste estudo. Porém, estar em isolamento social com a família pode estar indiretamente associado ao distress, pois os participantes nessa condição apresentaram escores mais elevados na identidade LGBT negativa, fortemente influenciada pelas relações íntimas do sujeito e pela concepção cultural de seu núcleo social30; na disfuncionalidade familiar; e em neuroticismo31. Esses fatores podem ser considerados de risco para a saúde mental27. Além disso, apresentaram escores mais baixos em elementos que podem ser considerados protetores, como outness, percepção de suporte social e percepção de aceitação da família. Assim, embora o presente estudo não tenha encontrado relações diretas entre isolamento social com a família e níveis de outness, isso esteve relacionado a fatores de risco e menos presente em fatores considerados protetores, o que poderia indicar relação indireta.

O distress esteve moderadamente e positivamente associado ao neuroticismo e à disfuncionalidade familiar. Essa última associou-se moderadamente e negativamente à percepção do suporte social e da aceitação familiar. Estudos apontam os efeitos negativos do baixo suporte social e de aceitação familiar em jovens LGBT+, comprometendo seu processo identitário, sua saúde mental e a exposição a riscos e outras formas de violência32. A correlação moderada e negativa entre outness e percepção da aceitação familiar reforça a hipótese apresentada anteriormente no que concerne à relação da família com a identidade LGBT+. A tendência de que quanto maior o outness a percepção da aceitação familiar seja menor pode estar relacionada a experiências negativas já vivenciadas por esses jovens por conta do seu processo de outness.

Apesar disso, o outness não foi uma variável significativa no modelo de predição do distress. Elas foram: a identidade LGBT negativa, a percepção do suporte social e da aceitação familiar, a disfuncionalidade familiar e o gênero. O modelo encontrado indica para variáveis que já são preditoras de distress para a população LGBT mesmo no período pré-pandemia, conforme apontado em diversos estudos33-34. Elementos que podem ter sido potencializados pela situação de isolamento social9, 11.

O distress deve ser interpretado como um importante indicador de sofrimento psíquico para esses jovens, podendo representar possíveis diagnósticos de distúrbios psicológicos como ansiedade e depressão. A única associação levantada pela regressão que foge um pouco do esperado é a associação positiva entre aceitação familiar percebida e distress, ao contrário da correlação, que indicou associação negativa entre os construtos. Porém, é preciso lembrar que na regressão as associações são realizadas em conjunto, o que pode favorecer a sobreposição de alguns fatores, como maior isolamento social daqueles com maior aceitação familiar percebida, também destacado nos resultados. Em outras palavras, a interpretação desse resultado precisa estar entrelaçada e em rede. É importante destacar que o levantamento de preditores de distress deve ser visto como um guia para ação e aconselhamento em saúde mental.


CONCLUSÕES

Entre as limitações deste estudo está a restrição de acesso a um maior e mais diverso grupo de jovens, uma vez que a coleta de dados foi realizada online e nem todos os jovens no Brasil têm acesso à internet. Justamente pelo contato online, também se obteve uma amostra de maioria de estudantes. A política de isolamento social foi mais rígida durante a coleta de dados, sem perspectivas de finalização. Tal contexto também pode ter exacerbado algumas condições vividas pelos jovens acessados por este estudo. Outra limitação relevante refere-se ao baixo número de pessoas trans na amostra, dificultando o entendimento do cenário e a realização de comparações e generalizações quando se trata dessa população específica. Por fim, a diversidade cultural brasileira limita a possibilidade de tratar os efeitos da pandemia de forma generalizada, alertando que é preciso cautela na interpretação e ampliação dos resultados para subgrupos específicos.

Evidências apontam para o fato de que a pandemia da COVID-19 provavelmente aumentou os riscos já elevados para os jovens LGBT em vários lugares do mundo, como uso de drogas, conflitos familiares, vivência de preconceitos e violências em diversos contextos. Tais dados reforçam a necessidade de aumento de investimentos para a diminuição de preconceitos contra minorias sexuais e de gênero, além do refinamento dos sistemas de atendimento, como saúde e serviços sociais. Jovens vulneráveis não podem esperar que a pandemia COVID-19 se atenue para que os seus riscos acrescidos sejam trabalhados e as suas necessidades de segurança, emocional e física, satisfeitas.


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aFederal University of Sergipe. Department of Psychology. São Cristóvão, Brazil
bUniversity of Porto. Department of Psychology, Porto, Portugal

Correspondência

Elder Cerqueira-Santos
eldercerqueira@gmail.com

Submetido em: 27/01/2021
Aceito em: 22/07/2021

Contribuições: Elder Cerqueira-Santos - escrita, design da pesquisa e revisão final; Mozer de Miranda Ramos - escrita, análises estatísticas e revisão; Jorge Gato - design da pesquisa e revisão.

 

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