Rev. bras. psicoter. 2021; 23(1):127-142
Ferrari J, Brust-Renck PG. Cuidados em saúde mental ofertados a profissionais de saúde durante a pandemia de Covid-19. Rev. bras. psicoter. 2021;23(1):127-142
Artigo Original
Cuidados em saúde mental ofertados a profissionais de saúde durante a pandemia de Covid-19
Mental health care offered to health professionals during the Covid-19 pandemic
Atención de salud mental ofrecida a los profesionales de la salud durante la pandemia de Covid-19
Jocieli Ferraria; Priscila Goergen Brust-Renckb
Resumo
Abstract
Resumen
INTRODUÇÃO
Efeitos da Doença Coronavírus-2019 (COVID-19) na vida dos profissionais de saúde de linha de frente podem ser identificados em diversos contextos, a partir das implicações emocionais relacionadas ao fato de vivenciar medo e insegurança ao lidar com uma doença silenciosa e sem precedentes1. O medo também aparece associado à possibilidade de infecção de pessoas próximas, acarretando a necessidade de mudanças específicas na vida destes profissionais, que restringem ainda mais seu círculo social e afastam-se do convívio familiar, em comparação a outros profissionais durante a pandemia. Essas mudanças ocorridas em suas vidas foram exploradas no âmbito da saúde mental, tendo como base o momento vivenciado no contexto da atual pandemia.
Diversos fatores podem contribuir para o desenvolvimento de sintomas psicopatológicos, uma vez que a experiência negativa é vivida de maneira individual e pode ser provocada por eventos potencialmente estressores2. No cenário da pandemia, o desenvolvimento de sintomas negativos tem efeito de grandes proporções nos serviços de saúde onde os profissionais atuam. Relacionado a isso, estudos apontam para a prevalência de sintomas de depressão, ansiedade, insônia e angústia, associados às situações de alto risco que o trabalho nas unidades de saúde tem imposto3.
A esse respeito, ações foram desenvolvidas no país com o intuito de ofertar apoio à categoria dos profissionais de saúde. Como exemplo, pode-se citar os call centers criados para realizar atendimento psicológico e psicossocial de maneira remota, com intervenções voltadas ao manejo de crises, psicoeducação sobre sintomas psicológicos que podem ser apresentados, bem como estratégias de enfrentamento e autocuidado. Em grande parte, as intervenções psicossociais e de caráter preventivo se deram de forma breve e, em sua maioria, de modo online4.
O Brasil, ao lado de outros quatro países da América do Sul, ocupa as mais elevadas posições no ranking de incapacidade devido à depressão, classificando os transtornos de ansiedade como a segunda maior incidência5. Essa preocupação é pertinente, uma vez que o risco de transmissão nesse público é grande, em razão da alta transmissibilidade do vírus e sendo esta a categoria considerada como a mais exposta ao risco de contaminação da doença1. Os resultados de uma pesquisa realizada nos meses de janeiro e fevereiro de 2020, na China, apontaram que atuar diretamente no combate à COVID-19 aumentava os níveis de ansiedade e estresse, além de apresentar efeitos negativos sobre o sentimento de autoeficácia no trabalho, na qualidade do sono dos profissionais e sobre o apoio social6.
Embora sejam necessárias para a segurança da população e o equilíbrio social, ainda há carências no estabelecimento de estratégias para a coordenação dos problemas de saúde, como também dos problemas psicossociais, acarretados pela COVID-197. Ações de apoio psicossocial são colocadas como potenciais estratégias, visto que podem estar associadas à redução da probabilidade da população afetada desenvolver sofrimento psíquico8. Em consonância a isso, estudos realizados ao longo desse período de pandemia revelaram que o apoio psicossocial e a psicoterapia ofertados às equipes multiprofissionais de saúde, que atuam diretamente com o tratamento de pacientes infectados com a COVID-19, são considerados benéficos9.
Os profissionais de saúde mental que prestam assistência em contextos de emergências, como é o caso da pandemia de COVID-19, podem atuar tanto com a população atingida, quanto com os profissionais da linha de frente, por meio de apoio psicossocial e psicoterapia breve. Apoio psicossocial é um termo que descreve um conjunto amplo de ações que tratam de problemas psicológicos, psiquiátricos, e sociais pré-existentes ou aqueles provocados por emergências ou desastres10 e que compõe os Primeiros Cuidados Psicológicos (PCP). Estes, são destinados a pessoas que foram expostas a uma situação de crise recentemente e que se encontram em situação de sofrimento11.
O interesse pelo tema partiu da inserção de uma das autoras no campo da saúde pública, como profissional de saúde mental voluntária, tendo realizado apoio psicológico às equipes multiprofissionais que atuam diretamente no combate à COVID-19. Esta pesquisa buscou a compreensão do cenário loco regional, tomando como esfera um importante foco de transmissão da doença no Estado do Rio Grande do Sul.
Desta forma, buscou-se compreender as ações de cuidado em saúde mental ofertadas aos trabalhadores da saúde pública no contexto da COVID-19, já que poucas intervenções foram relatadas até o momento, bem como as vivências no trabalho voluntário (como ações realizadas, apoio recebido, percepção da saúde mental dos profissionais e condições de trabalho), tendo em vista a realidade experienciada neste município.
MÉTODO
natureza da pesquisa e amostra
Foi realizado um estudo qualitativo, para permitir que as participantes relatassem abertamente as experiências de cuidado em saúde mental que vivenciaram no contexto do trabalho, durante a pandemia de COVID-19.
Participaram da pesquisa sete psicólogas, todas mulheres, que realizaram apoio psicossocial e psicoterapia breve de forma voluntária e presencial aos profissionais da linha de frente, em serviços de saúde pública de atenção primária e secundária, do município de Lajeado/RS, durante os primeiros meses da pandemia de COVID-19. Os atendimentos foram realizados de forma individual e grupal e aconteciam uma vez por semana, em dia e horário organizados pela psicóloga do local, conforme sua disponibilidade. Na maioria das unidades, houve maior procura por atendimento individual e os atendimentos grupais aconteciam de forma esporádica, com pelo menos três trabalhadores. Foram assistidos todos os trabalhadores que manifestaram interesse pelo apoio, sendo eles enfermeiros, técnicos de enfermagem, biomédicos, dentistas, auxiliares de saúde bucal, médicos, recepcionistas, farmacêuticos, e auxiliares de limpeza.
Todas as psicólogas foram recrutadas pela Universidade do Vale do Taquari (UNIVATES), localizada no referido município, através de uma campanha para atuar de forma voluntária. Das entrevistadas, duas psicólogas eram residentes e atuavam em ESF, duas eram contratadas pela prefeitura, atuando na área da educação e assistência social, duas eram funcionárias da Univates, e outra era psicóloga clínica em consultório particular, no momento da entrevista. Três das participantes contraíram a doença durante o ano de 2020. (A psicóloga que não participou é uma das autoras do presente estudo.) As participantes tinham em média 34,8 anos (DP=9,1) e experiência de atendimento em psicologia clínica que variava entre 2 a 15 anos (Média=6,3 anos; DP=5,4).
Oito psicólogas atuaram como voluntárias, entre o início de abril e o final de junho de 2020, junto às equipes multiprofissionais que trabalham na linha de frente dos serviços de saúde pública do município, de forma presencial. As políticas de atenção primária não preveem psicólogos em suas equipes, portanto, a Universidade do Vale do Taquari (Univates) mobilizou profissionais voluntários, a fim de realizar apoio psicossocial para as equipes multiprofissionais, tanto da atenção primária como secundária, que não contam com estes profissionais no município. Apoio esse que foi realizado de maneira muito distinta das demais ações voltadas ao público citado que, em sua maioria, foram ofertadas de forma remota e sem possibilidade de se conhecer mais aprofundadamente o território e as especificidades da rede de atenção em saúde, assim como as necessidades das equipes de trabalho.
As psicólogas passaram por uma capacitação breve em PCP antes de iniciarem o trabalho, que foi encerrado em função da sua disponibilidade de tempo e do retorno às configurações habituais das equipes de saúde, a partir de certa estabilização no número de casos da COVID-19 e da redução do percentual de ocupação de leitos hospitalares, permitindo a flexibilização das regras de distanciamento social.
Aspectos éticos
O estudo foi aprovado pela Secretaria Municipal da Saúde de Lajeado/RS e pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (CAAE#37212220.2.0000.5344). Todos os participantes que aceitaram ser entrevistados, assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Coleta e análise dos dados
Os dados foram coletados entre os meses de setembro e novembro de 2020, e no mês de fevereiro de 2021, por meio de entrevistas semiestruturadas. A experiência prévia da pesquisadora, como psicóloga voluntária no serviço prestado, foi utilizada para ajudar a organizar o roteiro da entrevista semiestruturada, buscando explorar mais os processos de cuidado aos profissionais de linha de frente e aos próprios profissionais de saúde mental. Três entrevistas foram realizadas de maneira remota, através da plataforma Google Meet e quatro de forma presencial, conforme preferência e disponibilidade das participantes. As entrevistas presenciais ocorreram em local privativo, sugerido pelas entrevistadas, sendo adotados todos os protocolos sanitários vigentes. A duração média das entrevistas foi de 75 minutos.
Foram feitas perguntas abertas para que as participantes relatassem suas percepções em relação (1) à saúde mental dos trabalhadores que atuam de forma direta no combate à COVID-19, (2) ao apoio oferecido a esses profissionais, e (3) ao apoio recebido para realização dessas atividades. A pesquisa qualitativa compreende aspectos subjetivos de fenômenos sociais e do comportamento humano, em sua complexidade. Neste método, para que uma análise seja factual, precisa abranger termos da busca qualitativa, trazendo a compreensão da experiência vivenciada a partir do objeto de estudo12.
As entrevistas foram gravadas em áudio e transcritas na íntegra para análise posterior. Os dados foram analisados por meio do método de análise de conteúdo, segundo Bardin13, seguindo os passos de categorização (codificação), inferência, descrição e interpretação (tratamento das informações). A análise de conteúdo é um conjunto de instrumentos metodológicos, que se aplicam a experiências e significados atribuídos muito diversificados, onde reside uma interpretação controlada e que se baseia na dedução, que é o processo de inferência. Pretende compreender o conteúdo e o continente das experiências, para além de seus significados diretos e imediatos, enriquecendo a visão geral acerca de determinados fatos13.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Os dados coletados são analisados a partir de três categorias, organizadas conforme sua ocorrência e temática, listadas como: (1) o estado de saúde mental dos trabalhadores que atuam de forma direta no combate à CoViD-19, (2) apoio oferecido aos profissionais da linha de frente, e (3) apoio recebido pelos profissionais de saúde mental para a realização dessas atividades.
Em relação à percepção da saúde mental dos trabalhadores que atuam de forma direta no combate à CoViD-19, a maioria das participantes refere que havia grande preocupação por parte destes profissionais em contaminar alguém de sua família, em razão de estarem em contato com pacientes infectados, o que fez com que muitos se afastassem de seus entes por longos períodos de tempo, exacerbando ainda mais o sofrimento emocional. A literatura sobre esta temática aponta que as equipes têm sofrido pelo risco de contaminar a si e a sua família, visto que enfrentam ou enfrentaram em algum momento a escassez de equipamentos de proteção individual (EPI), que os auxiliam na proteção de sua saúde, e angustiam-se por não receberem informações claras e precisas das autoridades1, apesar do conhecimento da doença já obtido desde o início desta situação. Aliás, a demanda e a jornada de trabalho desses profissionais aumentaram significativamente, tendo em vista a sobrecarga dos sistemas de saúde e o agravamento dos casos de infecção, a partir da evolução da pandemia e do aumento no número de casos14.
"Os trabalhadores traziam muita preocupação com a família, de pegar o vírus e levar pra casa e infectar as pessoas." (Participante 4)
"Alguns disseram que pensaram em ficar num hotel ou morar em outro lugar, porque tavam muito preocupados com a família, que não se perdoariam se passassem o vírus pra alguém, mas que não tinham condições financeiras pra fazer isso. Se afastaram de quem deu, como pai, mãe, avós, tios, por bastante tempo." (Participante 6)
"Eu tive que fazer psicoterapia breve com alguns profissionais, porque tiveram situações graves, de sofrimento bem intenso, sabe? Coisas pessoais, que já aconteciam antes da pandemia, mas que ficou muito pior com tudo que estavam vivenciando no trabalho." (Participante 2)
"Algumas equipes exigiram bastante, em termos de atendimento. Tinha casos bem complexos e pessoas que precisavam de muito apoio." (Participante 3)
"As pessoas ficaram com os nervos mais à flor da pele, com medo, insônia, angústia e buscaram atendimento. Tavam bem cansados com o uso de EPI, com a necessidade de ficar isolados em casa, de só poder ir pro trabalho." (Participante 3)
"Eles (os trabalhadores) tavam confusos em relação a suas rotinas, tava tendo muitos conflitos entre os trabalhadores, de não se entenderem, assim." (Participante 7)
"É importante ter esse cuidado sempre, pros trabalhadores da saúde, que sim, tem as suas questões pessoais, mas vivem o tempo todo questões de outras pessoas e, às vezes, não sabem o limite entre o que é do outro e o que é seu, né? E aí adoecem." (Participante 3)
"Acho que teve uma abertura pra olhar pra saúde mental dos trabalhadores. E também teve uma abertura do próprio trabalhador para a sua saúde mental. É um permitir-se, um olhar-se e defender a importância disso." (Participante 5)
"No início o pessoal tava mais resistente, perguntava: uma psicóloga aqui pra que? Veio saber se a gente tá trabalhando direito ou se a gente tá louco? Se alguém vai querer pegar atestado? Depois eles foram percebendo que eu não tava lá pra vigiar o trabalho deles e contar pra chefia, mas que eu tava lá pra ajudar quem tivesse necessidade, quem tava sofrendo." (Participante 1)
"Cada um ficava numa sala. Tinha grupinhos e os grupinhos ficavam alocados em salas e as pessoas não interagiam entre elas. E isso também não era uma coisa que tava fazendo bem, porque elas precisavam trabalhar juntas, né? No começo foi mais difícil, mas depois eu já vi o pessoal fazendo alguns movimentos pra chamar todo mundo." (Participante 7)
"Então, no final, as pessoas passaram a ficar muito gratas, assim. As pessoas agradeceram muito, queriam muito que continuasse a ter um serviço como esse, que pudessem contar com o apoio sempre. Que passaram por esse momento de uma forma mais tranquila, pelo fato de eu estar ali disponível, de saber que tinha alguém ali por eles, que ia escutar e não ia julgar os sentimentos deles." (Participante 6)
"O que eu percebo, no município assim, é que não tem nada de cuidado de saúde mental pros trabalhadores da saúde." (Participante 3)
"A gente percebe que quando falam de algum problema, que tem a ver com o trabalho até, não se dá a importância devida. Falta um olhar pro sofrimento, pra saúde mental das equipes." (Participante 7)
"Eu acabei buscando apoio porque senti que era muita coisa pra dar conta sozinha, estava me sentindo cansada e bastante ansiosa. Tinha momentos em que era difícil separar aquilo que eu vivia do que os trabalhadores estavam vivendo, eu sentia o que eles também estavam sentindo, por isso levei pra minha terapia e conversei com colegas." (Participante 1)
"Acho que era muito bom os momentos de supervisão, poder escutar as colegas, saber que não era só eu que tinha alguma dificuldade, foi bem significativo." (Participante 4)
"Me senti bem cansada, nos dias que eu ia pras unidades eu ficava esgotada. Percebi que fiquei mais estressada, acabava brigando em casa por motivos bobos, me sentia ansiosa também, querendo dar conta do trabalho e ajudar as pessoas que tavam precisando." (Participante 2)
"Eu fiquei sem ver minha família por três meses, fiquei totalmente afastada de todos, pelo risco, né? Quando chegava em casa, parecia zona de guerra: tirava toda a roupa, colocava pra lavar e ia direto pro banho." (Participante 4)
"Nossa, acabei revivendo muitos momentos, agora com a entrevista. Ainda não tinha parado pra pensar em tudo que aconteceu, em como me senti. Foi bem importante pensar nisso pra mim." (Participante 6)
"Eu vi esse trabalho como uma oportunidade de crescer, de aprender, pra mim tá trabalhando com os trabalhadores, tá dando um apoio tão necessário, porque na unidade que eu tava, eu percebi o quanto esses trabalhadores tavam assustados, né?." (Participante 2)
"Parar pra pensar em tudo que aconteceu foi muito bom, apesar de ter sido um momento difícil, sabe? Vivi várias coisas com minha família e ouvi coisas difíceis dos trabalhadores nas unidades. Mas ter essa reflexão agora fez a diferença." (Participante 2)
"Conhecer a rede me fez entender melhor o que eu poderia fazer pelas equipes. Fico pensando como foi pras outras colegas, porque esse conhecimento prévio fez toda a diferença pra mim. E o treinamento que recebemos sobre os primeiros cuidados psicológicos também, ajudou a direcionar as ações." (Participante 5)
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