Rev. bras. psicoter. 2021; 23(1):107-125
Moser CM, Monteiro GC, Narvaez JCM, Ornell F, Calegaro VC, Bassols AMS, et al. Saúde mental dos profissionais da saúde na pandemia do coronavírus (Covid-19). Rev. bras. psicoter. 2021;23(1):107-125
Artigo Original
Saúde mental dos profissionais da saúde na pandemia do coronavírus (Covid-19)
Mental health of health care professionals in the coronavirus pandemic (Covid-19)
Salud mental de los profesionales de la salud en la pandemia de coronavirus (Covid-19)
Carolina Meira Mosera; Gabriela Carneiro Monteiroa; Joana Correa de Magalhães Narvaezb; Felipe Ornellc; Vitor Crestani Calegarod; Ana Margareth Siqueira Bassolsa; Pricilla Braga Laskoskia; Simone Haucka
Resumo
Abstract
Resumen
INTRODUÇÃO
A pandemia do Covid-19, cientificamente chamado de SARS-CoV-2, trouxe grandes desafios aos sistemas de saúde mundiais, exigindo estratégias complexas e políticas públicas de prevenção, contenção, diagnóstico e tratamento. Nesse contexto, os profissionais da saúde (PS) constituem um grupo de alto risco de exposição ao SARS-CoV-2, sendo imperativo o apoio e monitoramento adequados do bem-estar desses indivíduos1-4, já que aos riscos biológicos somam-se os efeitos da pandemia na saúde mental5,6.
Diante do aumento exponencial da demanda de atendimentos, os PS enfrentam longas jornadas de trabalho, muitas vezes com recursos abaixo do ideal e infraestrutura precária7. O estresse decorrente da sobrecarga de trabalho e da falta de protocolos clínicos ou tratamentos bem estabelecidos para o manejo dos pacientes infectados torna as equipes de saúde particularmente vulneráveis ao aumento da ansiedade e sofrimento psíquico7-9. Este fenômeno pode potencializar o risco de desenvolvimento de transtornos psiquiátricos10,11 e agravar os sintomas em indivíduos com transtornos pré-existentes7,12-15. Além disso, o medo de contágio e da possibilidade de contaminar familiares, amigos ou colegas8,16 são estressores adicionais importantes, que podem levar ao isolamento da família, modificação da rotina e estreitamento da rede de apoio social3.
Estudos anteriores já demonstraram que epidemias passadas foram seguidas de impactos psicossociais drásticos e mais duradouros que o próprio surto17,18. Durante o surto de Síndrome Respiratória Aguda Severa (SARS) em 2003, 18 a 57% dos PS experimentaram problemas emocionais e sintomas psiquiátricos graves durante e após o evento19. Em 2015, no decorrer da Síndrome Respiratória do Oriente Médio (MERS), os estados disfóricos e o estresse evidenciados nas equipes de saúde foram preditores de condutas equivocadas, atraso por falha na comunicação e absenteísmo, entre outros. A ocorrência da síndrome de burnout também foi relatada por PS envolvidos na assistência de indivíduos infectados na epidemia de outro tipo de coronavírus ocorrido na Coréia em 201620. Além disso, a traumatização vicária, fenômeno no qual os PS experimentam sintomas semelhantes aos dos pacientes devido à exposição contínua, também é comum durante catástrofes. Os principais sintomas da traumatização indireta são a perda de apetite, fadiga, declínio físico, distúrbios do sono, irritabilidade, desatenção, distanciamento emocional ("incapacidade de sentir"), medo e desespero17.
Estudos recentes sobre os efeitos do Covid-19 na saúde mental das equipes de saúde21-23, incluindo revisões sistemáticas24-28, demonstram que se trata de uma problemática emergente: índices preocupantes de depressão, ansiedade, insônia e estresse foram encontrados. Entre os fatores de risco já identificados para maior impacto psicológico do Covid-19 nos PS estão: ser do sexo feminino, enfermeiro, baixo nível socioeconômico, isolamento social e alto risco de contaminação12. Como fatores protetores, estão o apoio familiar, presença de recursos médicos suficientes, acesso à informação atualizada e confiável, assim como medidas de precaução, como higiene de mãos e uso de máscaras12,29.
Níveis elevados de burnout e trauma secundário foram reportados na Itália durante a pandemia30. Isso também ocorreu no Brasil, onde foram identificados elevados índices de burnout entre médicos31, assim como altas taxas de sintomas de depressão, ansiedade e estresse31 entre médicos e outras categorias de PS32. Além disso, trabalhadores de serviços essenciais brasileiros, não apenas profissionais da saúde, apresentaram índices de depressão e ansiedade superiores aos reportados na Espanha33. Considerando este cenário, é importante avaliar a realidade da população dos PS brasileiros no que se refere a taxas de burnout e depressão, bem como aos fatores associados à maior vulnerabilidade psicossocial. De fato, o melhor entendimento da saúde mental da equipe assistencial, bem como do seu impacto no cuidado dos pacientes, é urgente, havendo necessidade da implementação de ações imediatas. Dessa forma, o presente estudo teve como objetivo avaliar o perfil sociodemográfico e aspectos relacionados à saúde mental de uma amostra de profissionais da saúde do Brasil durante a pandemia do Covid-19.
MÉTODO
Desenho e Participantes
Trata-se de um estudo transversal online. O recrutamento dos participantes foi realizado por meio do método "snowball" (bola de neve) direcionado aos PS do Brasil durante um mês (22 de maio a 22 de junho de 2020). Não houve direcionamento específico a PS envolvidos na linha de frente da assistência de pacientes com Covid-19. Foram incluídas 17 categorias profissionais apontadas pelo Ministério da Saúde na Portaria número 639 de 31 de março de 2020 para cadastramento na ação estratégica voltada ao enfrentamento da pandemia do Covid-19 diretamente envolvidas no cuidado de pacientes humanos: Médico(a), Enfermeiro(a), Técnico(a) de enfermagem, Psicólogo(a), Fisioterapeuta, Fonoaudiólogo(a), Terapeuta Ocupacional, Nutricionista, Assistente Social, Educador(a) Físico, Odontólogo(a), Técnico(a) em radiologia, Farmacêutico(a), Biomédico(a), Biólogo(a), Biotecnólogo(a) e Agente Comunitário de Saúde.
Coleta de dados e Aspectos Éticos
A coleta dos dados foi iniciada após a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital de Clínicas de Porto Alegre e Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CAAE número 30745020.5.0000.5327). Os autores assinaram um Termo de Compromisso para Uso de Dados, consentindo que as informações seriam utilizadas única e exclusivamente para fins acadêmicos e científicos previstos no estudo.
Os participantes responderam a um questionário virtual formulado na plataforma "SurveyMonkey"®, que foi veiculado em redes sociais (Facebook e Instagram), além de compartilhado através de instituições e profissionais das diferentes áreas por conveniência. Os questionários foram divulgados nas páginas do Facebook e Instagram através do mecanismo de impulsionamento patrocinado direcionado a indivíduos de todas as idades que vivem no Brasil. A escolha por um questionário eletrônico, assim como a utilização da citada plataforma para divulgação dos questionários, foi baseada em experiências prévias positivas com essa metodologia34 bem como em função do atual contexto de pandemia e necessidade de medidas de isolamento/ distanciamento social.
Na introdução do questionário, foi apresentado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, explicitando que o anonimato estaria garantido e que os dados seriam analisados apenas em conjunto. Os participantes foram informados sobre eventuais riscos envolvidos na participação dessa pesquisa. Além disso, no final do questionário disponibilizamos os contatos do Centro de Valorização à Vida (CVV), bem como telefone, e-mail e endereço da equipe de pesquisa para obter informações sobre onde buscar atendimento. Também foi oferecida a possibilidade de ter acesso aos resultados do estudo e a material psicoeducativo em saúde mental através do e-mail específico da pesquisa. Ao aceitar responder o questionário, o indivíduo estaria concordando em participar do estudo.
Instrumentos
Os dados foram coletados por meio de um questionário contemplando dados sociodemográficos, ideação suicida, assistência a indivíduos com suspeita ou diagnóstico de coronavírus e percepção de risco.
- Questionário sobre a Saúde do(a) Paciente (Patient Health Questionnaire 9-PHQ-9)35: instrumento de aplicação rápida, que rastreia indivíduos em maior risco para o episódio depressivo maior. Tanto possibilita o diagnóstico do transtorno, quanto a classificação do grau de intensidade dos sintomas. Esse questionário é usado para rastrear sintomas nas últimas 2 semanas, avaliando a presença de sintomas depressivos36, conforme protocolo do DSM-5, por meio de uma escala do tipo Likert composta por nove perguntas categorizadas em quatro opções de respostas, que vão de "não, nenhum dia" (zero pontos) a "quase todos os dias" (3 pontos); no total, os valores resultam de zero a 27 pontos. Assim, quanto maior a pontuação, maior a gravidade dos sintomas depressivos. Neste estudo, foi adotado o ponto de corte ≥9, conforme recomendado37,38. O PHQ-9 teve suas propriedades de rastreamento validadas no Brasil para população geral em 201337. Esta escala tem demonstrado boas características psicométricas e operacionais, com sensibilidade entre 77 e 98% e especificidade de 75 a 80%, tendo sido validada para população de adultos e idosos38.
- Inventário de Burnout de Copenhagen (The Copenhagen Burnout Inventory - CBI): instrumento desenvolvido por Kristensen e colegas que considera a fadiga e a exaustão como os principais constructos do burnout39. O CBI consiste em 19 itens divididos em três domínios a partir dos quais a exaustão emocional pode surgir: pessoal (6 itens), relacionada ao trabalho (7 itens) e relacionada ao cliente/paciente (6 itens). Burnout pessoal (PB) é o grau de exaustão física e psicológica que uma pessoa pode vivenciar, não necessariamente relacionada à sua ocupação. Burnout relacionado ao trabalho (WB) é o grau em que o desgaste físico e psicológico é percebido em relação às atividades laborais. O burnout relacionado ao cliente/paciente (CB) é o nível de exaustão que é atribuído ao relacionamento profissional com o cliente/paciente. Trata-se de um questionário auto-aplicável em escala Likert de 5 pontos: "Sempre" ou "Em um grau muito alto" (100 pontos), "Frequentemente" ou "Em um grau alto" (75 pontos), "Às vezes" ou "Em algum grau" (50 pontos), "Raramente" ou "Em baixo grau" (25 pontos) e "Nunca" ou "Em um grau muito baixo" (0 pontos). Os escores de cada domínio da CBI são obtidos através da média de cada subescala. Quanto maiores os escores, maiores os níveis de burnout. Apesar da recomendação do autor de usar os escores de forma dimensional, valores iguais ou superiores a 50 no domínio pessoal são considerados sugestivos da presença de burnout clinicamente significativo. Entre as vantagens da CBI em relação ao Maslach Burnout Inventory (MBI)40 estão o acesso (instrumento de domínio público), a avaliação de um mesmo constructo global (fadiga e exaustão) em diferentes contextos e a possibilidade de ser utilizada em qualquer tipo de trabalho/ocupação, não ficando restrita a setores de serviços humanos. O CBI está adaptado e validado para o português brasileiro41.
Ideação Suicida:
As perguntas relacionadas a suicídio no presente estudo foram baseadas nos instrumentos Columbia Suicide Severity Rating Scale (C-SSRS)42 e Beck Scale for Suicide Ideation (BSI)43 abaixo descritos, que são frequentemente utilizados para avaliação do suicídio na literatura. Foram selecionados os questionamentos mais importantes com o objetivo de avaliar a prevalência de ideação suicida nesta população, visto que a inclusão do instrumento completo poderia tornar o questionário muito longo, prejudicando a adesão dos participantes à pesquisa.
- Columbia Suicide Severity Rating Scale (C-SSRS)42: instrumento utilizado para identificar e avaliar indivíduos em risco de suicídio. As perguntas são formuladas para serem usadas em formato de entrevista, mas podem ser respondidas como uma medida de autorrelato, se necessário. O C-SSRS mede quatro construtos: a gravidade da ideação, a intensidade da ideação, comportamento e letalidade. O C-SSRS é composto por dez categorias, todas com perguntas de respostas binárias (sim / não) para indicar a presença ou ausência do comportamento. As categorias incluídas consistem em desejo de morrer, pensamentos suicidas ativos não específicos, ideação suicida ativa com qualquer método (não planejado) sem intenção de agir, ideação suicida ativa com alguma intenção de agir, sem plano específico; ideação suicida ativa com plano e intenção específicos; atos ou comportamento preparatório; tentativa abortada; tentativa interrompida; tentativa real (não fatal); e suicídio completo. Não há um ponto de corte estabelecido.
- Beck Scale for Suicide Ideation (BSI)44: instrumento auto-aplicável de 21 itens para avaliar a intensidade de atitudes, comportamentos e planos suicidas na última semana. Apresenta cinco itens de triagem: três que avaliam o desejo de viver ou o desejo de morrer e dois que avaliam o desejo de tentativa de suicídio. Se o entrevistado relatar qualquer desejo ativo ou passivo de cometer suicídio, então 14 itens adicionais são administrados. Os primeiros 19 itens apresentam três opções de resposta classificadas de acordo com a intensidade da tendência suicida e pontuados de acordo com escala Likert de 3 pontos (0 a 2). A pontuação dos itens é somada para produzir um escore total, que varia de 0 a 38. Quanto maior o escore, maior o risco. No entanto, não são recomendados pontos de corte específicos. O instrumento apresenta validade preditiva para suicídio consumado.
Análise estatística
As análises estatísticas foram realizadas utilizando o software SPSS (versão 21). Análises descritivas foram realizadas com todas as variáveis demográficas e clínicas. As conclusões e generalizações se basearam na análise inferencial dos dados. As variáveis quantitativas foram descritas por média e desvio padrão e as categóricas por frequências absolutas e relativas. Para comparar médias, os testes t-student para amostras independentes ou Análise de Variância (ANOVA) complementada por Tukey foram aplicados. Para avaliar as associações entre as variáveis contínuas e ordinais, os testes da correlação de Pearson ou Spearman foram utilizados. A associação entre as variáveis categóricas foi avaliada pelo teste qui-quadrado (χ2) de Pearson. Para as análises foi considerado p<0,05 como significativo.
RESULTADOS
O estudo transversal teve início em 22 de maio de 2020, data em que o questionário foi divulgado através das mídias sociais e direcionado para profissionais da saúde de todo o Brasil. Obtivemos um total de 1256 participantes ao longo de 1 mês de coleta. Destes, 202 foram excluídos por não responderem às questões referentes à avaliação de sintomas de burnout . Em comparação aos participantes incluídos nas análises, os indivíduos excluídos foram mais jovens, com menos tempo de profissão e menor carga horária de trabalho semanal. Esse grupo também apresentou maior proporção de renda familiar abaixo de 1.500 reais, de indivíduos do grupo de alto risco para Covid-19 e das categorias profissionais de técnico de enfermagem, biomédico e biotecnólogo.
Dos 1054 participantes incluídos nas análises, tivemos uma maior proporção de médicos (34,5%), técnicos de enfermagem (19,1%), enfermeiros (14,2%) e psicólogos (11,9%) (Tabela 1). A maioria foi do sexo feminino (81%), cor branca (74,8%), casado ou em união estável (57,2%), renda familiar acima de 10.000 reais (39,6%) e residentes na região sul do Brasil (61,9%). A média de idade foi de 41,7 anos, tempo de profissão de 15 anos e carga semanal de 37,6 horas de trabalho (Tabela 1).
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