Rev. bras. psicoter. 2021; 23(1):59-72
Martins GC, Vieira VLD, Pinetti FM, Arruda AML, Oikawa KF, Mello CB. Psicoterapia online para idosos com sintomas depressivos em distanciamento físico: relato de uma experiência. Rev. bras. psicoter. 2021;23(1):59-72
Relato de Caso
Psicoterapia online para idosos com sintomas depressivos em distanciamento físico: relato de uma experiência
Online psychotherapy for elderly people with depressive symptoms in physical distancing: report of an experience
Psicoterapia en línea para personas mayores con síntomas depresivos a distancia física: relato de una experiencia
Gabriela Carneiro Martinsa,b; Vera Lucia Duarte Vieirab; Flavia Miluzzi Pinettic; Ana Maria Leme de Arrudac; Koki Fernando Oikawac; Claudia Berlim de Mellod
INTRODUÇÃO
Segundo a Organização Mundial da Saúde¹, a depressão é um distúrbio mental caracterizado pela presença de tristeza persistente e falta de interesse ou prazer em atividades que eram consideradas pelo indivíduo como gratificantes anteriormente. Trata-se de uma das principais causas de incapacidade e vem se tornando cada vez mais frequente, chegando a afetar mais de 264 milhões de pessoas no mundo. As causas da depressão estão associadas à interação de fatores psicológicos, biológicos e sociais. A abordagem clínica dos pacientes inclui tratamento farmacológico e psicológico; sabe-se, entretanto, que grande parte da população acometida não tem acesso aos tratamentos necessários.
Além das alterações de humor, indivíduos com depressão geralmente apresentam alterações nas funções cognitivas. Os principais prejuízos relatados pelos pacientes e familiares estão relacionados a déficits de atenção, funções executivas, memória e velocidade de processamento². Há ainda evidências de associações entre sintomas depressivos e alterações de cognição social. Revisão sistemática desenvolvida por Weightman, Knight e Baune³ indica que pacientes com transtorno depressivo tendem a interpretar emoções de acordo com o estado de humor atual e apresentam baixo desempenho em testes que exigem interpretações de estados mentais mais complexos. Dificuldades para interpretar emoções e estados mentais podem influenciar a capacidade de manter relações sociais, o que pode aumentar ainda mais os sintomas depressivos.
A depressão é a doença psiquiátrica mais comum entre os idosos4. Trata-se de importante problema de saúde pública, já que está relacionado a risco aumentado de mortalidade e suicídio, diminuição nas habilidades cognitivas, físicas, sociais e funcionais e maior autonegligência5. Fatores de risco associados a problemas de saúde mental em idosos incluem as perdas cognitivas e funcionais, vivências de luto e queda no nível socioeconômico como a aposentadoria 6.
Na atual realidade mundial decorrente da pandemia do vírus SARS-CoV-2, a população idosa é bastante afetada pelas recomendações sanitárias preventivas, incluindo distanciamento físico, o que vem se estendendo a um período indeterminado de tempo. Isolamento físico e social nesta fase da vida, assim como a solidão, podem ter diversas consequências negativas sobre o humor e a qualidade de vida dos indivíduos7. Entende-se por isolamento social a redução das redes e dos contatos sociais. Já a solidão diz respeito à "personificação psicológica do isolamento social"8, envolvendo uma percepção negativa dos contatos sociais. Estudos revelam que a solidão entre idosos está significativamente relacionada a sintomas de depressão e a maior incidência de suicídio7. Também pode levar a risco aumentado de desnutrição, baixa autoestima e problemas de sono9. Portanto, no cenário atual de recomendações de isolamento físico e potencial aumento de sintomas de depressão, mostram-se relevantes estratégias de intervenção em saúde mental para a população idosa.
Nesta perspectiva destacam-se psicoterapias realizadas por meio de plataformas de comunicação via internet, implementadas para ampliar o alcance dos atendimentos por via não presencial. Têm sido encontradas evidências de eficácia desta modalidade de terapia com população idosa, em termos da redução dos sintomas depressivos e da gravidade do quadro 10. Em um ensaio clínico randomizado, Choi e colaboradores11 desenvolveram um protocolo de seis sessões com base na Terapia de Resolução de Problemas (TRP)11 para adultos com mais de 50 anos e com traços de depressão. A amostra total de participantes foi distribuída em três grupos: intervenção presencial (n=54), intervenção online (n=49) e um grupo que recebeu ligações telefônicas de assistência à saúde (n=36). A TRP visa ajudar os indivíduos na identificação de problemas pessoais e de possibilidades de resolução, bem como na implementação prática dessas soluções. As estratégias visam ainda ativação comportamental, ou seja, estimular uma maior exposição a eventos agradáveis. Os autores encontraram redução significativa nos índices de gravidade e de incapacidade funcional associados à depressão em curto e longo prazo tanto no grupo que recebeu atendimento presencial como no que recebeu atendimento online. Ou seja, não houve diferença significativa conforme a modalidade de intervenção, porém a resposta dos dois grupos diferiu de forma significativa em relação à do grupo controle. Em outro ensaio clínico, Titov e colaboradores12 desenvolveram uma modalidade de intervenção em formato de curso online com cinco atividades semanais de Terapia Cognitivo Comportamental (TCC) para idosos deprimidos. Foi observado que 70% dos pacientes concluíram o tratamento e apresentaram escores de gravidade da depressão significativamente mais baixos do que os pacientes da lista de espera, indicando boa eficácia da intervenção online12. Outros estudos vêm confirmando as potencialidades da intervenção psicoterápica por via remota na redução de sintomas de depressão e ansiedade13. Trata-se de resultados promissores especialmente quando se considera o aumento expressivo da demanda por intervenções desta natureza, observada desde as primeiras semanas da pandemia pelo COVID-1914. Tem sido enfatizada, entretanto, a importância de que, nos ensaios clínicos, medidas de eficácia sejam acompanhadas por análises de aderência e aceitabilidade por parte dos participantes.15
Tendo em vista o potencial aumento na incidência de depressão em idosos em tempos de isolamento físico e social e evidências de eficácia da abordagem psicoterapêutica nesta condição, o presente estudo teve como objetivo principal analisar e relatar uma experiência relativa a um programa da psicoterapia breve online com base em estratégias comportamentais, envolvendo uma amostra de indivíduos sintomáticos. Foram analisados aspectos da adequação em termos do engajamento dos participantes e suas percepções sobre o processo. Adicionalmente foram analisadas mudanças em indicadores de humor e de funcionamento cognitivo após a conclusão das atividades. Nossa hipótese é que a psicoterapia online tenha boa receptividade por parte dos participantes e que haja melhora nos indicadores neuropsicológicos e comportamentais.
MATERIAL E MÉTODO
Amostra
Participaram da pesquisa nove idosos, entre 63 e 72 anos de idade, sendo oito do sexo feminino. Os critérios de inclusão incluíram idade acima de 60 anos, presença de indicadores clínicos de traços de depressão (mais de 10 pontos, entre 30) conforme a escala de depressão geriátrica (GDS)16 e aderência ao distanciamento físico (por exemplo, estar saindo apenas para serviços essenciais). Como critérios de exclusão adotou-se condições neurológicas prévias associadas a doença de maior relevância (histórico de AVC, demência etc.) e doenças crônicas não controladas (Diabetes Mellitus, disfunção de tireoide etc.). Os participantes foram recrutados por meio de divulgação nas redes sociais, WhatsApp e Instagram por meio das contas pessoais dos pesquisadores e institucionais.
Delineamento e procedimentos éticos
A pesquisa teve um delineamento observacional, transversal, com análise quantitativa e qualitativa. Todo o processo seguiu critérios éticos de estudos em humanos; o estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Federal de São Paulo (parecer 4.182.937). Todos os participantes manifestaram concordância com a participação no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido apresentado no formulário online antes do início da coleta dos dados.
A coleta de dados envolveu entrevistas, sessões de avaliação neuropsicológica e de psicoterapia, todas realizadas através de vídeo chamadas pelo aplicativo Google Meet ou pelo WhatsApp. Todo o processo, abrangendo as atividades avaliativas e de intervenção, foi realizado entre os meses de agosto a dezembro de 2020. Os participantes passaram por uma avaliação inicial de cognição e humor com duração de dois encontros online de aproximadamente uma hora cada. Em média quinze dias depois, receberam oito sessões de psicoterapia online semanal e posteriormente foram reavaliados com um protocolo similar ao aplicado na avaliação inicial.
Instrumentos
A entrevista inicial teve como objetivo obter dados para caracterização sociodemográfica, do histórico clínico e de aderência ao distanciamento, a partir de um questionário desenvolvido pela equipe e anamnese reduzida. Os dados sociodemográficos incluíram idade, sexo e anos de escolaridade. Foram ainda investigados aspectos do histórico pessoal e profissional que poderiam ser relevantes na condução do processo psicoterapêutico. No histórico clínico priorizou-se informações quanto a diagnósticos e tratamentos prévios, medicamentos de uso controlado e uso de álcool ou tabaco, bem como a percepção geral sobre a qualidade de vida. A adesão ao distanciamento físico foi investigada por meio de um questionário com perguntas diretas sobre o tema, incluindo número de saídas na última semana, saídas apenas a serviços essenciais ou não, contatos pessoais com amigos ou parentes, alternativas utilizadas para comunicação à distância e autocuidado durante o isolamento físico.
A avaliação neuropsicológica incluiu testes tradicionalmente utilizados na prática clínica e questionários de ansiedade e depressão, aplicados no início (baseline) e ao final do processo psicoterapêutico. Todos os participantes foram submetidos a oito sessões individuais de psicoterapia online. A pesquisadora responsável pelas sessões de psicoterapia não realizou avaliações. A avaliação e reavaliação de cada participante foi realizada por uma mesma pesquisadora com experiência em avaliação neuropsicológica de idosos. Segue uma descrição mais detalhada dos instrumentos e procedimentos.
Avaliação de indicadores de depressão e ansiedade
A investigação de sintomas de ansiedade e depressão se baseou em escalas de auto relato validadas para a população brasileira. A Escala de Ansiedade Geriátrica (GAI)17 é composta por vinte questões e as respostas variam entre concordo e discordo. Pontuação acima de 10 pontos indica presença de traços de ansiedade em nível clínico. A Escada de Depressão Geriátrica (GDS)16 apresenta trinta perguntas relacionadas ao estado de humor e as respostas devem ser sim ou não. Os pontos referentes a respostas positivas são somados; uma pontuação entre 10 e 21 indica depressão leve/moderada e entre 22 e 30 depressão severa.
Avaliação neuropsicológica breve
A avaliação neuropsicológica iniciou com o uso do Mini Exame do Estado Mental (MEEM) 18. Trata-se de um instrumento de rastreamento diagnóstico que avalia diversas funções cognitivas como orientação espacial e temporal, memória imediata e de evocação, cálculo, linguagem oral (nomeação, repetição, compreensão) e escrita, e cópia de desenho. A pontuação máxima é trinta pontos e é avaliada de acordo com a idade e escolaridade de cada participante. O instrumento foi utilizado como procedimento diagnóstico.
Na sequência foram utilizados testes neuropsicológicos com ênfase em funções específicas. Habilidades de compreensão verbal foram avaliadas por meio do subteste Compreensão da escala Wechsler de Inteligência para adultos - WAIS III 19. Memória episódica recente e tardia foi avaliada por meio do subteste memória lógica da escala de memória de Wechsler20. O participante deve evocar uma história exposta oralmente pelo examinador imediatamente e novamente após 30 minutos. A pontuação de cada momento de evocação varia de 0 a 25 pontos. A memória operacional foi avaliada por meio das tarefas de repetição de dígitos em ordem direta e inversa, utilizando as sequências do subteste Dígitos da escala Wechsler20. A ordem direta tem pontuação máxima (extensão, ou span) sete e a ordem inversa seis. Foram ainda utilizados os testes de fluência verbal fonológica21 e fluência verbal semântica22. No primeiro, o participante é solicitado a gerar o maior número de palavras que conseguir iniciadas com cada uma das letras - "F", "A" e "S", em 60 segundos. Na fluência verbal semântica o participante é solicitado a gerar o maior número de exemplares de animais também em um minuto. O escore consiste no total de palavras geradas em cada modalidade.
Por fim, incluímos o Edinburgh Social Cognition Test (ESCoT)23, um teste que investiga quatro habilidades de Cognição Social: Teoria da Mente (cognitiva e afetiva), compreensão interpessoal de normas sociais e compreensão intrapessoal de normas sociais. O ESCoT23 consiste em animações curtas envolvendo desenhos estilo cartoon que expressam interações sociais dinâmicas, em um contexto diferente. O participante deve responder a questões que envolvem atribuição de estado mental (Teoria da Mente) e julgamento de normas sociais. A pontuação total varia de 0 a 120.
Intervenção psicoterápica breve
O programa de psicoterapia breve foi organizado de forma a estimular reflexões sobre qualidade de vida e saúde mental. O processo teve duração de dois meses, com uma sessão semanal de psicoterapia online, totalizando oito sessões. Duas etapas eram previstas para cada sessão. A primeira envolvia um acolhimento para que o participante pudesse apresentar questões individuais sobre eventos vividos na semana. Na segunda, era proposta uma temática focal, pré-estabelecida, de forma a estimular uma reflexão sobre pensamentos, emoções e motivações. Foram utilizados materiais específicos como textos, quadrinhos e músicas, para eliciar as reflexões e possibilitar maior interação.
A intervenção envolveu técnicas psicoterápicas inspiradas em modelos de Terapia CognitivoComportamental24-25. Um exemplo é a técnica de validação, na qual entende-se que todo comportamento tem significado e por isso é necessário primeiramente validar o sentimento do outro e em seguida trabalhar a autopercepção e a relação com os sentimentos, buscando também construir possibilidades de resolver o problema. Foram ainda propostas atividades físicas complementares como danças e exercícios localizados, bem como técnicas de respiração e relaxamento indicados por profissionais qualificados.
Por meio destas técnicas eram estimuladas reflexões, por exemplo, sobre possíveis pensamentos distorcidos e erros cognitivos. Entende-se por erros cognitivos as distorções disfuncionais observadas nos pensamentos automáticos sistemáticos que podem ser responsáveis por sofrimento pessoal24. Durante a sessão, os erros cognitivos eram discutidos e trabalhados. Além disso, o participante era solicitado a identificálos no decorrer da semana e anotar os pensamentos, sentimentos e comportamentos que acompanhavam a situação. Também foram trabalhadas estratégias de enfrentamento e resolução de problemas (TRP) para situações individuais na qual o terapeuta e participante refletiam possibilidades de estratégias mais adaptativas para solucionar problemas cotidianos. A TRP é uma técnica utilizada na terapia cognitivo comportamental que tem como principal objetivo auxiliar o indivíduo a especificar um problema, destacar soluções viáveis, escolher uma solução e avaliar sua efetividade25.
O programa foi estruturado a partir de atividades organizadas com foco em temas específicos. A seleção destes temas visou estimular reflexões a respeito de sentimentos, pensamentos ou atitudes frequentemente presentes em quadros depressivos, usando material de apoio como textos ou imagens. Nas cinco sessões iniciais os temas versaram sobre possíveis associações entre sintomas de depressão e comportamentos ou atitudes dos indivíduos. Por exemplo, a procrastinação pode constituir uma reação de esquiva diante de desafios e gerar sentimentos negativos sobre si mesmo. Este tema é abordado no trecho do livro de Fernando Sabino26. Nas sessões subsequentes ênfase foi dada à motivação e às estratégias de enfrentamento, como busca por diferentes fontes de prazer e a importância de se atentar ao momento presente. O tema da sessão final visou uma reflexão sobre o sentido da vida. Na ocasião, os participantes foram solicitados a comentar suas percepções sobre o programa. Segue-se uma descrição da estrutura geral das sessões.
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