Rev. bras. psicoter. 2021; 23(1):73-90
Zibetti MR, Serralta FB, Brust-Renck PG. Desenvolvimento e Relato de Experiência de um Protocolo de Primeiros Cuidados Psicológicos a Distância (PCPd) durante a Pandemia COVID-19. Rev. bras. psicoter. 2021;23(1):73-90
Artigo Original
Desenvolvimento e Relato de Experiência de um Protocolo de Primeiros Cuidados Psicológicos a Distância (PCPd) durante a Pandemia COVID-19
Development and Experience Report of a Protocol of Psychological First Aid on line (PFAo) during the COVID-19 Pandemic
Desarrollo y Informe experiencia de un protocolo de Primera Ayuda Psicológica a distancia (PAPd) durante la pandemia COVID-19
Murilo Ricardo Zibetti; Fernanda Barcellos Serralta; Priscila Goergen Brust-Renck
Resumo
Abstract
Resumen
INTRODUÇÃO
O atual cenário de saúde mental dos trabalhadores no Brasil deve ser entendido à luz da possibilidade de contágio pela doença Coronavírus 2019 (COVID-19) e do impacto das medidas para sua contenção. Nesse sentido, o objetivo geral do presente estudo foi apresentar a adaptação dos Primeiros Cuidados Psicológicos (OMS, WTF & VGI, 2015) para aplicação à distância (PCPd) e relatar a experiência da aplicação do procedimento em trabalhadores em sofrimento mental rastreados.
A Síndrome Respiratória Aguda Grave causada pelo novo Coronavírus (SARS-CoV-2) teve rápida propagação, marcando o ano de 2020 pelas declarações de emergência de saúde pública internacional e, posteriormente, pandemia pela Organização Mundial da Saúde (WHO, 2020a; WHO, 2020b). O primeiro país do ocidente a ser atingido fortemente foi a Itália, tornando-se rapidamente o epicentro da pandemia (Carvalho & Kritski, 2020). Além do alto número de pacientes infectados com uma doença pouco conhecida, a escassez de equipamento de proteção e de respiradores, bem como, a grande quantidade de profissionais da saúde adoecidos contribuiu para o colapso do sistema de saúde italiano (Carvalho & Kritski, 2020). Dentre as regiões mais atingidas estavam Veneto e Lombardia, cujas medidas básicas de quarentena foram as mesmas. No entanto, Veneto sentiu menor impacto da doença por sua atitude mais proativa em termos de cuidados a saúde, dentre os quais destacaram-se a ênfase em manter doentes em cuidado domiciliar e os esforços para monitorar e proteger os profissionais da saúde (Pisano, Sadun & Zanini, 2020). Esses dados indicaram medidas de atuação para o combate da pandemia.
Experiências prévias, baseadas na primeira síndrome respiratória aguda severa decorrente de Corona vírus (SARS-CoV-1) e em outras situações de epidemia, também trouxeram medidas sanitárias relevantes para o atual contexto. Para a população em geral, as principais medidas envolviam distanciamento social para evitar o contágio. Essa medida, apesar de importante, traz consequências negativas para a saúde mental que precisam ser mais bem compreendidas e integradas às políticas de prevenção (Marroquín, Vine, & Morgan, 2020; Serralta, Zibetti, & Evans, 2020; Venkatesh, & Edirappuli, 2020). Além disso, em situações análogas à atual pandemia, atos de proteção direcionados especificamente para grupos vulneráveis ao adoecimento precisam ser realizadas. Os profissionais de saúde, por exemplo, atuam no front de combate a COVID 19 e necessitam condições favoráveis de trabalho e apoio psicossocial. Essas medidas podem ajudar a reduzir a exaustão emocional, os comportamentos de evitação, os estilos de enfrentamento não-adaptativos e o estresse vivenciados por esses profissionais (e.g., Goulia et al., 2010; Maunder et al., 2004; McAlonan et al., 2007).
No Brasil, o primeiro caso registrado de infecção pelo SARS-COV-19 foi em 26 de fevereiro de 2020. Nos primeiros meses após o registro da circulação do vírus, revisões narrativas foram publicadas alertando para os possíveis impactos da pandemia e das medidas de contenção sobre a saúde mental de grupos específicos e da população em geral. Populações tradicionalmente vulneráveis como crianças (Linhares & Enumo 2020), imunodeprimidos e idosos institucionalizados (Lima et al., 2020), bem como, profissionais essenciais, particularmente àqueles atuando na saúde, também foram considerados grupos de risco a maior sofrimento mental durante a pandemia (De Humerez, 2020, Prado et al., 2020; Saidel et al., 2020, Schmidt et al., 2020). Essas revisões, baseadas em outras epidemias, nas experiências de outros países durante a pandemia e na análise contextual, auxiliaram na antecipação de algumas das respostas a emergência em saúde mental que se configurava no início da pandemia.
Apesar disso, o curso da pandemia corroborou as expectativas iniciais sobre o sofrimento mental de profissionais da saúde nesse contexto. Médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, paramédicos, e outros profissionais que fazem parte de equipes multidisciplinares na linha de frente tiveram grandes dificuldades em seu cotidiano. Casos de transtornos psicopatológicos foram reportados ao redor do mundo em profissionais de saúde de linha de frente e equipe administrativa que recebia informações diretas sobre a doença (e.g., Lai et al., 2020; Lu, Wang, Lin, & Li, 2020).
No Brasil, um estudo qualitativo indicou que a atuação no contexto dos cuidados a pacientes com COVID-19 estava atrelada a sentimentos ambíguos (Oliveira et al., 2020a). Os profissionais experienciavam aspectos positivos como a sensação de utilidade, de altruísmo e de esperança. Ao mesmo tempo, trabalhar nesse contexto, trouxe respostas negativas como instabilidade emocional e medo de contágio (Oliveira et al., 2020a). Para os profissionais de saúde, além do distanciamento social, o medo de estar contaminado e transmitir a doença para sua família impactou em dificuldades para utilizar estratégias de enfrentamento que resultassem em redução de sofrimento mental (Santarone, McKenney & Elkbuli, 2020). Estudos quantitativos realizados no Brasil também deram a dimensão do impacto psicológico negativo nos profissionais da saúde envolvidos no atendimento. Por exemplo, um estudo com enfermeiros da linha de frente indicou que um quarto deles apresentava depressão e quase metade deles apresentava ansiedade (Dal´Bosco et al., 2020). Por isso, os profissionais da linha de frente têm sido considerados um dos grupos prioritários para o atendimento psicológico durante a pandemia já que sua atuação está atrelada a resposta da saúde pública nesse contexto (Kluge, 2020; Patel et al., 2018).
Além de grupos prioritários, a experiência de outros países também indicava impactos na saúde mental da população geral brasileira (Ornell, et al., 2020; Schmidt et al., 2020). O medo do contágio (Ornell, et al., 2020) e as consequências das medidas de distanciamento social (Schmidt et al., 2020) eram apenas algumas das variáveis associadas ao sofrimento psíquico nesse contexto. Estudos qualitativos brasileiros trouxeram à tona a experiência psicológica de viver no contexto da pandemia no Brasil. As representações sociais sobre a pandemia envolviam não só elementos específicos da saúde (eg. contágio), mas também elementos abrangentes da vida (eg. consequências sociais e afetivas) (Do Bú et al. 2020). A análise qualitativa sobre as preocupações de trabalhadores universitários durante a pandemia revelou a complexidade da situação e, consequentemente, o envolvimento de múltiplos estressores durante a pandemia. Temas como trabalho, saúde, isolamento, organização da vida pessoal, negação da importância da pandemia e questões relativas ao futuro foram reportados como preocupações imediatas desses profissionais (Serralta, Zibetti e Evans, 2020).
No Brasil estudos quantitativos também foram delineados para examinar indicadores de sofrimento psicológico e fatores associados na população geral e/ou e subgrupos específicos. Indicadores de saúde mental colhidos por Barros et al. (2020) demonstraram alta prevalência de estresse e de ansiedade (52,6%), de tristeza e de depressão (43,5%) e de alterações do sono (48%) (Barros et al.,2020). Alguns estudos ainda indicaram que ser jovem e ter histórico de transtorno mental estava associado a maior risco de prejuízos a saúde mental (Barros et al., 2020; Duarte et al., 2020, Serralta et al., 2020). Outros fatores de risco foram elencados, como: gênero feminino (Barros et al., 2020; Duarte et al., 2020), estar exposto frequentemente a notícias negativas (Duarte et al., 2020) e falta de suporte nas tarefas domésticas (Serralta et al., 2020).
Quando analisados em conjunto, percebe-se que pandemia que inicialmente eliciava medo do contágio (Ornell et al., 2020) acabou por se configurar em um conjunto de estressores contínuos com impacto complexo sobre a saúde mental (Lahav, 2020). Esses dados representaram a já reportada demanda de intervenções psicossociais tanto para a população geral (Venkatesh, & Edirappuli, 2020) quanto para os próprios profissionais da saúde (Amanullah & Shankar, 2020). Nesse sentido, a pandemia da COVID-19 pode ser considerada uma emergência de saúde mental, requerendo intervenções psicossociais a diversos atores da sociedade.
Intervenções psicossociais com vítimas de situações de emergências e desastres são componentes essenciais do cuidado à saúde (Talevi et al., 2020). No entanto, existem poucos protocolos efetivamente testados sobre o atendimento psicológico durante uma pandemia. Nesse caso, muitas das propostas de atendimento estão sendo derivadas das diretrizes para o atendimento em Primeiros Cuidados Psicológicos (PCP) descritos pela Organização Mundial da Saúde (OMS, WTF & VGI, 2015). Ações dessa natureza têm sido indicadas em situações de emergência semelhantes à atual pandemia. O PCP ocorre em situações de isolamento social, com escassez de recursos e de profissionais para atender um alta demanda, considerando a necessidade de oferecer apoio e cuidado prático não invasivos, e de necessidade de fornecer informações sobre o evento e os cuidados necessários para proteger de danos adicionais (OMS, WTF & VGI, 2015). Os protocolos existentes, contudo, guardam algumas diferenças para às necessidades atuais, como, por exemplo: a) necessidade de isolamento; b) contexto de maior cronicidade em que não há, claramente, uma mudança abrupta das condições contextuais como a que ocorre nos desastres naturais; c) atendimento psicológico oferecido a distância; d) a necessidade de continuar as atividades apesar do risco (caso dos profissionais de saúde, por exemplo); e) níveis diferentes de informação sobre os eventos quando comparados a situações de desastre.
Diante desse cenário, instruções para o atendimento, a avaliação e a prevenção de saúde mental durante a pandemia foram sendo delineadas no transcorrer do ano no Brasil (Enumo et al. 2020; Faro et al., 2020; Oliveira et al., 2020b, Crepaldi et al. 2020). Diretrizes para intervenção psicossocial durante a pandemia foram publicadas pela Sociedade Brasileira de Psicologia (Bizarro et al., 2020) indicando os principais sintomas psicológicos potencialmente presentes nos profissionais da saúde e como manejá-los (estresse, desesperança, desespero e estigmatização) num modelo a ser contemplado em uma única sessão (Bizarro et al., 2020). Outras indicações foram apresentadas pela Fundação Oswaldo Cruz para acompanhamento comunitário, para gestores de serviços de saúde e, em geral, suporte de saúde mental (Melo et al., 2020; Greff et al., 2020).
Com base nesses modelos e considerando as necessidades atuais da pandemia o objetivo do presente trabalho foi adaptar o protocolo de PCP para ser realizado a distância (PCPd) e relatar à experiência de sua aplicação. O relato de experiência envolve os seguintes objetivos: a) descrever o protocolo e sua aplicação, b) apresentar o perfil dos atendidos, c) reportar as principais técnicas utilizadas e, d) indicar o encaminhamento realizado.
MÉTODO
Delineamento
O estudo faz parte da pesquisa "Saúde Mental na Pandemia" que conta com delineamento misto e sequencial. Em primeira etapa foi realizado um estudo quantitativo de levantamento (Creswell, 2010) de indicadores de saúde mental. Os participantes identificados com sofrimento receberam atendimentos de Primeiros Cuidados Psicológicos a distância, descrito, no presente estudo, em caráter qualitativo, exploratório e transversal (Creswell, 2010).
Participantes
Os participantes foram selecionados a partir de dois estudos que visavam a realizar o levantamento de indicadores de saúde mental em trabalhadores durante a pandemia. O primeiro estudo teve caráter longitudinal e contou com as respostas de 654 trabalhadores universitários (docentes e técnicos) entre Maio e Agosto de 2020. O procedimento de coleta do estudo de levantamento pode ser consultado em Serralta et al. (2020) em que foram publicados os dados da primeira etapa do estudo. O segundo estudo de levantamento ocorreu em outubro de 2020 com servidores de áreas essenciais de uma prefeitura do Rio Grande do Sul (saúde, segurança pública e assistência social) e contou com 61 participantes, seguindo procedimentos similares.
No presente estudo foram considerados elegíveis todos os participantes com sofrimento mental significativo nos estudos de levantamento descritos previamente. Para isso foi utilizado o instrumento CORE-OM (Clinical Outcome Routine Evaluation - Evans et al., 2000, 2002), sendo considerado em sofrimento significativo àquele participante que apresentasse resultado superior ao percentil 90 da escala Não-Risco do instrumento e endosso a pelo menos um item da escala de risco do CORE-OM. Com base nesse critério, somando os dois estudos, foram classificados em sofrimento mental 44 respondentes. Além disso, foram considerados critérios para realização dos PCPd: a) presença de consentimento para realização de segunda etapa do estudo e b) possibilidade de contato com o participante por telefone. Em ambos os casos, os participantes excluídos receberam orientações e encaminhamento através de mensagens eletrônicas (celular ou e-mail), bem como, foram comunicados da disponibilidade do PCPd, posteriormente. Ao total os atendimentos descritos no presente estudo foram realizados com 15 pessoas.
Instrumentos
Os estudos de levantamento foram conduzidos através formulário online. Esse formulário contava com os seguintes instrumentos: a) questionário sociodemográfico, b) questões relativas ao contexto de vida na pandemia, c) autorização para contato para o PCP (em virtude da análise da saúde mental), e d) avaliação da saúde mental através da escala CORE-OM (Evans et al., 2002, 2000), cuja adaptação brasileira foi realizada por Santana et al. (2015).
O CORE-OM é um instrumento de 34 itens que avalia a saúde mental e é respondido a partir de uma escala do tipo Likert que varia de 0 a 4 (nunca, raramente, às vezes, muitas vezes, quase sempre ou sempre). Conforme o conteúdo, os itens do CORE-OM podem ser divididos em um indicador geral de sofrimento mental (28 itens da escala Não Risco) e um indicador de risco (6 itens da Escala de Risco). O indicador geral de sofrimento agrupa os domínios de bem-estar psicológico, problemas e sintomas, e a funcionalidade diária. O indicador de risco envolve questões específicas sobre pensamentos de autoagressão ou heteroagressão (Evans et al., 2002). A recomendação do autor é que o indicador de saúde mental, seja considerado uma medida contínua do sofrimento. Já os itens de risco devem ser considerados como medidas categóricas e, por isso, devem ser avaliados quanto sua presença ou ausência. Quando o participante apresenta ambos os critérios, é reduzida a chance de identificação de risco e sofrimento por idiossincrasias. As propriedades psicométricas da versão brasileira do CORE-OM estão atualmente sob estudo. Nas amostras avaliadas, considerando-as em conjunto, a confiabilidade do instrumento foi considerada excelente (α de Cronbach = 0,948).
O último instrumento utilizado foi um protocolo de Registro de atendimento dos PCPd. Esse instrumento contava com informações como: identificação do profissional que realizou o atendimento, um breve relato dos temas abordados, o encaminhamento realizado e a possibilidade de registros adicionais (ex.: elementos não contemplados no protocolo inicial, aspectos específicos do paciente). Esse registro foi a principal fonte de informação do presente estudo.
Protocolo de Primeiros Cuidados Psicológicos a distância (PCP-d)
Os primeiros cuidados psicológicos foram adaptados para serem realizados por telefone seguindo as diretrizes do protocolo de Primeiros Cuidados Psicológicos desenvolvido pela Organização Mundial da Saúde para situações de emergência (OMS, WTF & VGI, 2015). De modo geral, o protocolo tradicional envolve os seguintes objetivos: a) oferecer cuidados práticos e apoio; b) avaliar nível de preocupações; c) auxiliar no acesso a informações precisas, serviços de cuidado e suporte social; d) promover segurança, calma e esperança; e) aproximar o cuidado das demais pessoas ativando rede de apoio; e, f) promover atitudes de autoeficácia.
Apesar de pertinente ao contexto da pandemia alguns aspectos do PCP precisaram ser adequados na realidade atual: a) o atendimento, por questões sanitárias, precisou ser realizado à distância; b) o cuidado relativo a informação é alterado sendo necessário ajustar a prática de informar o paciente para o manejo das informações que podem ser excessivas, falsas ou de má qualidade; c) com o nível de sofrimento monitorado através dos estudos de levantamento o foco geral do atendimento é fornecer encaminhamento adequado a rede de serviços envolvendo atendimentos presenciais ou tele saúde mental em psicologia e/ou psiquiatria, d) os estressores tornaram-se crônicos e, em parte, decorrem de ações do próprio do atendido (eg. a manutenção do isolamento e a perda o contato físico com pessoas significativas depende da adesão da pessoa que recebe
o PCPd). A partir dessas premissas básicas, o PCPd foi estruturado em uma única sessão em que estes pontos poderiam ser abordados de acordo com as demandas trazidas.
O manejo das situações específicas como crises de ansiedade, tristeza e outros sintomas foram organizados conforme as diretrizes propostas pela Sociedade Brasileira de Psicologia (Bizarro et al., 2020) e pela FIOCRUZ (Melo et al., 2020; Greff et al., 2020). Um passo-a-passo do curso do telefonema está descrito na Tabela 1.
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