Rev. bras. psicoter. 2021; 23(1):43-58
Zanini AM, Quiroga CV, Berger D, Silveira LHC, Oliveira MLP, Frizzo NS, et al. Atuação da psicologia em um centro de terapia intensiva dedicado para CO VID-19: relato de experiência. Rev. bras. psicoter. 2021;23(1):43-58
Relato de Caso
Atuação da psicologia em um centro de terapia intensiva dedicado para CO VID-19: relato de experiência
The psychologist's work within a CO VID intensive care unit: an experience report
Actuación de la psicología en unidades de cuidados intensivos CO VID: informe de experiencia
Adriana Mokwa Zanini; Carolina Villanova Quiroga; Daniela Berger; Luísa Horn de Castro Silveira; Maria Luísa Pereira de Oliveira; Natalia Schopf Frizzo; Paula Cristina Silva da Rosa; Priscila Büttenbender; Sílvia Cristina Marceliano Hallberg; Tamires dos Santos Rios; Elis De Pellegrin Rossi; Rita Gigliola Gomes Prieb
Resumo
Abstract
Resumen
INTRODUÇÃO
A pandemia da COVID-19 resultou na necessidade de reorganização de todos os setores da sociedade. Em especial, os serviços de saúde precisaram repensar a atuação de suas práticas, a fim de dar conta de uma demanda até então desconhecida em seu curso e magnitude. Como o setor terciário de saúde (nível hospitalar de alta complexidade)1 absorve os casos mais graves, os profissionais dos Centros de Terapia Intensiva específicos para COVID-19 (CTI COVID) se viram diante de uma realidade adversa, com a pandemia exigindo a reestruturação de rotinas e espaços físicos. Neste contexto, o psicólogo também precisou se adaptar para atuar no CTI COVID, juntamente com colegas de outras áreas, principalmente da enfermagem, medicina e fisioterapia2.
Considerando a indicação de distanciamento social, um dos maiores desafios para as equipes hospitalares durante a pandemia da COVID-19 é manter medidas pautadas na Política de Humanização da assistência3. Especialmente em Centros de Terapia Intensiva (CTI), o acolhimento e a comunicação são fundamentais para pacientes, familiares e profissionais, através de uma postura ética e sensível4. As necessidades de informação, de reafirmação, de ser ouvido e amparado, bem como de preservar o relacionamento com seus entes queridos e de ser apoiado no processo de luto, são essenciais nesse momento5. A reconstrução das práticas de humanização tem o objetivo de minimizar as ameaças ao cuidado centrado no paciente e na família, propondo caminhos para prevenir uma comunicação pouco estruturada e apoio frágil aos familiares6 .
De modo geral, as pessoas estão expostas a níveis altos de estresse, e os riscos perpassam principalmente o desenvolvimento de transtornos relacionados a trauma, uso de substâncias, sintomas depressivos e de ansiedade7, 8, 9. É válido destacar que muitas pessoas são capazes de utilizar recursos internos que permitem manter a saúde mental equilibrada. Entretanto, a complexidade e abrangência dos efeitos da pandemia da COVID-19 tem revelado um potencial de abalar as habilidades naturais dos indivíduos para responder de maneira resiliente10, 5. Entre os fatores de risco para problemas de ordem emocional nesse contexto estão o luto, saúde mental precária anterior a uma crise, baixa renda, rede de apoio empobrecida e lesões auto infligidas ou a terceiros11, 12, 13.
O presente artigo consiste em um relato de experiência das psicólogas do CTI COVID do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), que pode contribuir para a adaptação de colegas que atuam em ambientes hospitalares e/ou outros contextos. O trabalho da psicologia já é uma prática consolidada em CTI14, inclusive no HCPA, onde é reconhecido pela importância no cuidado ao paciente crítico, seus familiares e equipe. Apesar de haver intervenções com as equipes multidisciplinares, que enfrentam sobrecarga de trabalho e outras demandas psicológicas decorrentes da atuação na linha de frente do enfrentamento à doença, o foco desse relato é a assistência aos pacientes e suas famílias, com as inovações de atendimento adotadas durante a Pandemia da COVID-19. O objetivo deste artigo, portanto, é apresentar um relato de experiência sobre as práticas de assistência aos familiares e pacientes realizadas pelas psicólogas do CTI COVID do HCPA durante a pandemia da COVID-19, à luz de referências teóricas atuais sobre o tema. As atividades aqui descritas iniciaram em março de 2020, e a equipe da psicologia realizou mais de 15.400 intervenções a pacientes e familiares, atendendo 1.050 casos até março de 2021. Pretende-se que a experiência relatada contribua para o atendimento psicológico em Unidades de Terapia Intensiva (UTI), ampliando ferramentas de trabalho e suscitando reflexões sobre intervenções em contexto de crise.
PANORAMA GERAL SOBRE A ADAPTAÇÃO DO CTI À PANDEMIA
É pertinente uma breve contextualização sobre o cenário (e seu processo de adaptação) onde ocorreu a experiência. O CTI do HCPA, a partir de março de 2020, precisou readequar a dinâmica de trabalho com o início da pandemia no Brasil. Enquanto o CTI tradicional atende pacientes com diversos diagnósticos, o CTI COVID é voltado para o atendimento a pacientes que desenvolvem formas graves de doença, pelo novo coronavírus (SARS-COV 2). Tais manifestações estão associadas a comorbidades graves, com desdobramentos clínicos complexos, que exigem intubação orotraqueal, manobras de prona, hemodiálise, ECMO (oxigenação por membrana extracorpórea), traqueostomia, entre outros recursos. Em paralelo, trabalha-se com a possibilidade constante de piora brusca das condições clínicas, que podem evoluir rapidamente para risco iminente de óbito15.
Registros de contaminações em profissionais de outras partes do mundo, especialmente em países da Europa, causaram muita apreensão. Assim, foram organizadas capacitações sobre a paramentação e desparamentação de Equipamentos de Proteção Individual (EPI). Ademais, a rotina de trabalho passou por transformações importantes. Pode-se destacar como a principal diferença entre um CTI tradicional e um CTI COVID o risco de contágio dos próprios profissionais, bem como a transmissão aos seus familiares15. Isso implica na necessidade de uso de EPI's adequados, geralmente desconfortáveis e que podem dificultar ou prolongar procedimentos. Ainda, o risco de contaminação ocupacional impôs a reflexão sobre determinados procedimentos. Como exemplo, um processo de intubação orotraqueal já era rotineiro em CTI, mas os profissionais precisaram adaptar esse procedimento e internalizar cuidados, visando à prevenção de contaminação16 .
Considerando que o CTI COVID é composto por Unidades de isolamento, foi preciso, também, pensar formas humanizadas de reorganizar práticas assistenciais que já estavam consolidadas. Essas demandas foram acolhidas inicialmente pelo grupo de cuidado centrado no paciente (que já existia), composto por médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem e psicólogas (com o início da pandemia, ingressou uma assistente social). Esse grupo segue com o planejamento de ações de humanização para o cuidado dos pacientes e familiares. Principalmente com a restrição de visitas, foi necessário pensar em novas estratégias de comunicação efetivas com as famílias, tendo em vista que não poderiam estar presentes em momentos de informações médicas, e as visitas presenciais rotineiras foram suspensas (assim como na maioria dos hospitais)17.
Dentro dessa proposta, criou-se então o Grupo de Comunicação como recurso para otimizar o trabalho dos médicos intensivistas envolvidos com a assistência direta ao paciente e qualificar o processo de comunicação, tão importante neste contexto de distanciamento. O grupo foi composto por médicos intensivistas e de outras especialidades, que se agregaram conforme o aumento expressivo de internações, bem como interesse espontâneo em contribuir. A partir desta implementação, cada paciente internado no CTI COVID passou a ter um médico comunicador. Os pacientes são distribuídos diariamente pela equipe administrativa para um comunicador, que se atualiza com a equipe assistencial direta e prontuários eletrônicos, para então contatar a família. O comunicador passa as informações sobre a condição clínica do paciente diariamente, por ligação telefônica ou chamada de vídeo (a ser combinado entre comunicador e família). Neste processo, o comunicador pode acionar a equipe da psicologia para acompanhamento psicológico, seja por ele mesmo perceber a demanda ou pela manifestação de desejo da família. A equipe da assistência direta ao paciente também pode solicitar acompanhamento psicológico, assim como o psicólogo pode identificar esta necessidade, a partir de busca ativa. Ao longo do acompanhamento, a psicologia busca realizar seu trabalho em articulação com todos esses profissionais envolvidos.
A maior parte dos pacientes do CTI COVID do HCPA passa por sedação e intubação em algum momento e corre risco significativo de morte. Alguns já internam intubados (transferidos de outras instituições), outros internam pela Emergência ou são transferidos das unidades de internação do próprio HCPA, e logo podem precisar de procedimentos invasivos. Sendo assim, é usual a psicologia assumir um paciente sem interagir com ele por algum tempo, podendo o mesmo falecer sem que haja essa interação. Portanto, a atuação da psicologia ocorre predominantemente com os familiares.
Antes da pandemia, a equipe da psicologia contava com uma psicóloga como referência de atendimento para o CTI do HCPA. Com a pandemia, uma colega somou-se aos atendimentos no CTI COVID, época em que o hospital se tornou referência em atendimento a pacientes com COVID. Desta forma, houve a contratação de diversos profissionais, conforme classificação em processo seletivo público. Entre esses profissionais, dez psicólogas foram contratadas para o CTI COVID, que chegou a contar com 105 leitos, agrupados em dez UTI's. Essas dez psicólogas precisaram se familiarizar com todos os processos assistenciais, e as duas que já eram contratadas precisaram se adaptar, inclusive se apropriando dos cuidados preventivos, no que tange aos riscos de contaminação.
As psicólogas avaliam e conduzem cada caso na sua singularidade, e a indicação das intervenções é reavaliada constantemente ao longo do acompanhamento psicológico. De modo geral, o acompanhamento de pacientes e/ou familiares costuma configurar psicoterapia breve de apoio, com realização frequente de intervenção em crise, incluindo acolhimento e psicoeducação. Todos os procedimentos são registrados no prontuário eletrônico do paciente, com informações pertinentes aos aspectos psicológicos envolvidos no caso, visando a auxiliar o trabalho da equipe assistencial direta e dos médicos comunicadores.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
A seguir, constam as atividades assistenciais mais frequentes na rotina das psicólogas do CTI COVID do HCPA, que são: atendimento remoto a familiares, atendimento aos pacientes no leito, visitas virtuais e visitas presenciais. Acredita-se que essas práticas possam ser replicadas em hospitais ou embasar iniciativas em contextos diversos, considerando principalmente que a modalidade de atividades remotas já era uma tendência antes da pandemia, e provavelmente permanecerá.
ATENDIMENTO REMOTO A FAMILIARES
Conforme já comentado, grande parte dos pacientes no CTI COVID do HCPA é sedada e passa por intubação orotraqueal em algum momento do tratamento intensivo, impossibilitando o acesso ao atendimento psicológico direto. Portanto, a prática mais rotineira da psicologia é o atendimento remoto aos familiares de pacientes internados. O acompanhamento psicológico às famílias proporciona escuta a demandas específicas desse contexto atípico. Devido às medidas de distanciamento social, esses atendimentos são realizados por telefone. Ao assumir um paciente, a psicóloga discute o caso com a equipe assistencial e médico responsável pelas comunicações diárias das notícias clínicas para a família. Posteriormente, entra em contato por telefone com os familiares. Nos primeiros atendimentos, se avalia o desejo da continuidade do acompanhamento psicológico, bem como se há demandas emocionais relacionadas ao adoecimento e hospitalização do familiar. No decorrer desses atendimentos, a psicóloga realiza escuta ativa e empática, para identificar estratégias de enfrentamento dos familiares, bem como fortalecê-las.
O Conselho Federal de Psicologia (CFP), por meio da Resolução nº 11/201818, regulamentou os atendimentos psicológicos através do uso de tecnologias da informação, através do cadastro no e-psi. Entretanto, os atendimentos remotos não eram uma prática disseminada, especialmente na clínica hospitalar (inclusive no HCPA). Com a pandemia da COVID-19, houve um aumento significativo na demanda por atendimentos remotos, o que levou o CFP a publicar a Resolução nº 04/202019, deixando de exigir a aprovação para início dos atendimentos. Todas as psicólogas do HCPA realizaram esse cadastro e, aos poucos, foram se familiarizando com essa modalidade de atendimento. Tem-se observado que, de forma geral, o acompanhamento remoto é efetivo para familiares de pacientes com casos graves de COVID-19, pois possibilita identificar, avaliar e trabalhar demandas emocionais oriundas ou exacerbadas por tal situação. As famílias costumam receber bem o contato das psicólogas, além de compreender a necessidade de o acompanhamento ocorrer nessa modalidade, diante do contexto da pandemia.
Entre as demandas identificadas nos atendimentos aos familiares, pode-se destacar o sentimento de abandono ao ente querido, devido à impossibilidade de acompanhamento presencial da internação, com risco de não poderem se despedir em caso de óbito. Esse sentimento, por vezes, gera culpa e costuma estar associado à ansiedade para visitar o paciente. Quando há probabilidade de a família tê-lo contaminado, esse sentimento de culpa pode ser potencializado. Nos casos em que a família entende que o paciente se contaminou por não aderir aos cuidados preventivos necessários, podem surgir sentimentos ambivalentes, em que a raiva se mistura ao medo da perda. Ainda, há pacientes que contraíram o vírus durante alguma intervenção terapêutica ou internação hospitalar. Nesses casos, é necessário investir na construção de um vínculo com a família, para resgate de confiança nos profissionais da saúde. É comum familiares também estarem contaminados e, portanto, sentirem medo de a gravidade de seu quadro clínico evoluir de forma similar à do paciente que está no CTI COVID9, 17, 20.
A psicoeducação é uma intervenção bastante utilizada com os familiares, no sentido de fazê-los compreender suas próprias reações emocionais como parte de um processo esperado de enfrentamento a situações de crise. Nessa perspectiva educativa, procura-se incentivar práticas de cuidado em saúde mental, além do reforço aos cuidados preventivos contra contaminação. É comum a psicóloga realizar encaminhamentos internos e/ou para a rede pública, envolvendo principalmente a indicação de psicoterapia a longo prazo, avaliação psiquiátrica e assistência social para acesso a benefícios.
Ao ter alta para casa, o paciente de UTI tende a passar por um longo período de reabilitação. Neste cenário, um ponto central merece destaque e já vem sendo reforçado em pesquisas na última década, que é a síndrome pós-UTI (PICS-F)21 em membros da família. Diversos são os fatores de risco para PICS-F, tais como a dificuldade de comunicação com a equipe, a assunção de um papel de tomada de decisão, o baixo nível de escolaridade, vivenciar a morte de um ente querido ou a forte ameaça da perda. E dentre os critérios mais significativos de sofrimento, a comunicação se destaca, pois quando percebida como inconsistente, insatisfatória ou desconfortável, tende a se associar a um maior risco de carga pós-UTI22, 6. As informações fornecidas corretamente favorecem a elaboração de um sentido a uma situação que está fora de controle. A equipe de psicologia, ao estabelecer telefonemas para oferecer suporte e continência às emoções dos familiares, também avalia as compreensões sobre as informações médicas recebidas. Desse modo, é possível atuar para facilitar ou traçar novas estratégias de diálogo em conjunto com o médico comunicador.
Em caso de óbito do paciente, um dos temas abordados é a reinvenção de rituais de despedida e homenagem, considerando as restrições de proximidade física impostas pelas medidas sanitárias de prevenção ao contágio. É preciso salientar que a sociedade como um todo tem vivenciado um luto diferenciado neste momento histórico de pandemia, com contornos próprios, uma experiência que transcende o individual, produzindo lutos coletivos. As limitações nos rituais de despedida transformaram o modo como se vive o luto tradicionalmente, fator que pode desencadear um processo de luto complicado. Além de se adequarem às restrições impostas pela pandemia, as famílias enlutadas precisam ressignificar os rituais tradicionais que favorecem a elaboração saudável de luto, o que intensifica o sofrimento vivenciado neste momento social20,9. Torna-se ainda mais essencial que o apoio psicológico aos familiares tenha como foco a elaboração do luto, incluindo avaliação de necessidades de suporte psicossocial relacionadas a essa perda, buscando prevenir e minimizar fatores de risco23.
ATENDIMENTO AOS PACIENTES NO LEITO
São realizados atendimentos aos pacientes lúcidos (ou que estão retomando a lucidez), de forma presencial, no leito, além de a psicologia buscar intensificar a interação entre o enfermo e sua família. Há pacientes cuja condição clínica permite o uso de seu próprio celular, o que é incentivado. A necessidade de isolamento social tende a aumentar o sofrimento emocional. Esse contexto pode impactar na adesão, motivação e evolução do tratamento, até mesmo dificultando o desmame da ventilação mecânica e a reabilitação pela fisioterapia, por exemplo24. Nesses casos, principalmente as chamadas de vídeo são um meio para permitir a presença da família, mesmo que virtual, durante a hospitalização6 .
Os pacientes internados em UTI são expostos a muitas tensões, com procedimentos invasivos, experiência de dor, ameaça de morte, distúrbios do sono, exposição contínua a ruídos e luz, sede e outros desconfortos fisiológicos. Além dessas tensões, há perda de privacidade, distanciamento da família, sentimentos de medo, insegurança e dificuldades de comunicação, entre outros estressores. Neste ambiente adverso, a psicologia pode auxiliar na reconstrução da singularidade, promovendo o alívio da angústia e da ansiedade, visando à estabilidade afetiva. O arsenal de técnicas psicológicas utilizadas é definido conforme as condições clínicas, cognitivas e emocionais do paciente. Com pacientes que conseguem estabelecer diálogo sem grandes dificuldades (principalmente respiratórias e cognitivas), a psicóloga pode adotar uma postura mais ativa, através de entrevista de anamnese, elucidação de dúvidas e incentivo à expressão de sentimentos, preocupações e fantasias. Em contrapartida, quando o paciente está com dificuldade para falar e interagir, busca-se contextualizá-lo quanto a tempo, espaço, quadro clínico, além de apresentar-se como figura de referência para acolhê-lo e acompanhar sua família14. A psicóloga, em conjunto com a equipe multidisciplinar, busca otimizar a comunicação de formas alternativas e incentivar o repouso e a colaboração com o tratamento.
Quando o acompanhamento psicológico ao paciente ocorre em uma fase anterior à intubação orotraqueal, o próprio risco de precisar desse procedimento invasivo costuma ser a demanda abordada nos atendimentos, bem como o risco de óbito. Há pacientes que preferem não abordar essas possibilidades diretamente, mesmo cientes desses riscos (e a psicologia respeita essa defesa). Quando há necessidade de intubação, nos momentos que precedem esse procedimento, percebe-se que a maioria dos pacientes expressa o desejo de se comunicar com algum familiar, momento em que a equipe se sente bastante mobilizada emocionalmente e costuma pedir a intervenção da psicologia.
Nesta ocasião, oferta-se a possibilidade de visita virtual pré intubação, na qual observa-se vivências de angústia intensa: medo de que este contato seja a última comunicação com a família (e, muitas vezes, realmente é), associado ao medo de morrer, ansiedade referente ao bem-estar da família, manifestação de declarações, agradecimentos, perdões, pedidos, além da abordagem de aspectos práticos, como revelar senhas bancárias. Os pacientes tendem a demonstrar sentimentos de gratidão e pertencimento após a realização da visita virtual com os familiares. Esse contato parece acionar nos pacientes o sentido pelo qual estão lutando, vinculando-os à vida em um momento de experiência tão próxima à morte25.
Quando o paciente é extubado, muitas vezes há novamente o desejo desse contato, por parte do indivíduo e da família. Observa-se que, após a extubação, o paciente tem momentos de oscilação entre lucidez e confusão, devido às medicações e ao quadro clínico. Neste contexto, a psicóloga atua como narradora de uma história para auxiliar o paciente na apropriação do ocorrido enquanto ele estava inconsciente. Busca-se favorecer a nomeação e elaboração de sentimentos, inclusive quanto à apropriação de sua nova condição, que inclui a busca de autonomia, a começar pelos movimentos e comunicação para as necessidades básicas, como alimentação e higiene.
Ainda, à medida em que retomam a consciência, os pacientes costumam perguntar sobre a saúde de seus familiares. Considerando que é comum mais de um membro da mesma família estar infectado pelo novo coronavírus (SARS-COV 2), é importante uma anamnese familiar detalhada. E então, muitos pacientes precisam lidar emocionalmente com a hospitalização de algum familiar, até mesmo com o óbito. Considerando a complexidade desse contexto, a psicologia tenta seguir o acompanhamento após a alta para outras Unidades Clínicas do HCPA, até o momento posterior à alta para casa, com foco no preparo para seguir a reabilitação na rede ambulatorial. Quando há transferência para outro hospital, a psicóloga também realiza contato para um encerramento.
VISITAS VIRTUAIS
As visitas virtuais (VV) se tornaram uma prática difundida no CTI COVID do HCPA, diante de restrições adotadas quanto às visitas presenciais. Inicialmente, essa intervenção foi realizada apenas com pacientes lúcidos, considerando que os pacientes inconscientes não têm autonomia para autorizá-la26. Porém, diante de pedidos recorrentes de familiares para verem seus entes queridos, tal prática foi amplamente discutida com equipe multiprofissional, incluindo a bioética e o departamento jurídico do hospital. Assim, a VV passou a ser realizada mesmo quando os pacientes têm pouca ou nenhuma interação, mediante orientações verbais da equipe para as famílias, principalmente com intervenções educativas sobre cuidado com o uso da imagem do paciente. Em ambos os casos (paciente consciente ou não), a psicóloga avalia o desejo e as condições psicológicas dos familiares e/ou paciente para a intervenção. Durante a VV, é incentivada a expressão verbal dos familiares, mesmo quando o paciente está inconsciente. É comum familiares solicitarem para a profissional tocar em seu ente querido, como um gesto representativo do afeto familiar. Assim, há possibilidade de maior participação e protagonismo dos familiares durante o tratamento. Neste momento, a psicóloga é percebida como uma extensão da família, que não pode estar presente.
Cabe salientar a importância de uma avaliação prévia cautelosa quanto às condições emocionais da família para essa intervenção. Especialmente quando o paciente está intubado, costuma ser impactante vê-lo nessa condição, então muitos familiares optam por não vê-lo, para mantê-lo saudável em sua representação mental e memória afetiva. É importante considerar o princípio da não maleficência27, evitando que tal intervenção cause mais danos emocionais a estas famílias já em situações de vulnerabilidade emocional. Ainda, apesar da possibilidade eventual de uma visita presencial, a VV é uma alternativa para familiares que não se sentem confortáveis para comparecer ao hospital. Assim, essa intervenção pode favorecer a preparação emocional para uma visita presencial.
O uso de tecnologia no CTI para adultos já foi discutido em estudos com temáticas como o uso de diários eletrônicos28, comunicação com pacientes através de rastreamento ocular29 e ferramentas de comunicação com pacientes em ventilação mecânica30. Porém, o benefício de chamadas de vídeo para aproximar familiares de pacientes em CTI não é uma temática discutida amplamente na literatura anterior à pandemia da COVID-19. A partir da utilização progressiva das VV no CTI COVID do HCPA, constatou-se que essa intervenção tende a possibilitar um sentimento de proximidade das famílias, apesar do distanciamento físico. Ainda, a VV proporciona a familiares que moram longe ou que estão infectados a oportunidade de ver e/ou interagir com o paciente e assim expressarem suas emoções diretamente ao seu ente querido.
As VV's permitem ainda que os familiares conheçam o espaço físico onde o paciente se encontra, além de conhecerem outros membros da equipe assistencial. Esta prática contribui para a prevenção e/ou desmistificação de fantasias decorrentes do desconhecido, principalmente considerando que há muitas incertezas acerca da COVID-19. Quando há a participação de outros membros da equipe, como médicos e enfermeiros, muitos familiares relatam uma sensação de maior confiança na prática assistencial. A psicologia também já mediou a participação de famílias em bênçãos virtuais ao enfermo, como abordado em outros trabalhos5. Após a VV, a psicóloga acolhe os sentimentos despertados e avalia os efeitos gerados pela intervenção, cuja frequência é combinada com cada família.
Durante o período de luto antecipatório, se preconiza que inicie o mais brevemente possível o uso de tecnologias para aproximar familiares de pacientes com quadros graves de COVID-19, e não somente diante de situação de terminalidade, respeitando os desejos e condições emocionais de cada pessoa31. Mesmodurante o período do isolamento social, é importante a família exercer o papel de parceiro assistencial, e há autores que sugerem a substituição do termo "visitação" por "presença familiar", durante a pandemia 32. Assim, entende-se que práticas como as VV's contribuem para a participação familiar ativa no tratamento.
VISITAS PRESENCIAIS
Diante do risco de contaminação, a experiência de hospitalização e de adoecimento, que tradicionalmente despertam emoções intensas, têm características ainda mais peculiares. A necessidade de separação de pacientes gravemente enfermos e seus entes queridos mobiliza emocionalmente pacientes, familiares e equipe, além de aumentar ainda mais a vulnerabilidade desse processo de hospitalização com risco de morte iminente6. As visitas presenciais (VP) acompanhadas pela psicologia parecem favoráveis ao processo de enfrentamento da doença e luto5.
As VP's no CTI COVID do HCPA têm caráter de exceção, diferentemente do funcionamento tradicional de um CTI. A psicologia avalia a indicação para agendar essa intervenção, que ocorre de maneira pontual, ou seja, não tão frequentemente como podem ocorrer as VV's, devido à indicação de distanciamento social. Considerando que sentimentos como impotência e tristeza afetam familiares de pacientes internados, o sofrimento tende a ser intensificado na pandemia, devido ao afastamento prolongado, bem como ao contexto geral associado à COVID-19. Tendo isso em vista, a psicologia elaborou um fluxo para visitas agendadas (Figura 1), aprovado pela Comissão de Controle de Infecção Hospitalar (CCIH).
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