Rev. bras. psicoter. 2020; 22(3):95-112
Ramires VRR. Mentalização do self e do outro: conceito, fundamentos e aplicações clínicas. Rev. bras. psicoter. 2020;22(3):95-112
Artigo Original
Mentalização do self e do outro: conceito, fundamentos e aplicações clínicas
Mentalizing self and others: concept, foundations and clinical applications
Mentalización del yo y del otro: concepto, fundamentos y aplicaciones clínicas
Vera Regina Röhnelt Ramires
Resumo
Abstract
Resumen
INTRODUÇÃO
Ao longo das últimas décadas, especialmente em diversos países da Europa e também nos Estados Unidos, no âmbito da Psicologia Clínica, um novo conceito e uma nova abordagem terapêutica vem sendo desenvolvida. Os termos em inglês utilizados para se referir a ambos são mentalization, mentalizing, reflective functioning e Mentalization-Based Treatment. Tal abordagem tem merecido a atenção de numerosos teóricos, clínicos e pesquisadores, e vem sendo contemplada com uma quantidade significativa de publicações, seja em livros ou em artigos científicos, bem como tem sido objeto de centenas de pesquisas. Surpreendentemente, no Brasil, tanto a abordagem terapêutica como o constructo que a fundamenta são muito pouco conhecidos, embora, na última década, venham despertando a atenção de alguns pesquisadores e clínicos. O objetivo deste artigo é apresentar o constructo e discutir suas raízes teóricas, suas interfaces e suas aplicações clínicas.
O Que Significa 'Mentalização'?
Mentalização é um conceito que pertence ao domínio dos estados mentais: desejos, necessidades, sentimentos, pensamentos, crenças, motivações etc.1. Trata-se de uma atividade mental imaginativa, predominantemente pré-consciente, de acordo com Fonagy, Bateman e Luyten2, que possibilita perceber e interpretar o comportamento humano em termos de estados mentais subjacentes. Para os autores, é uma forma de cognição social, constituindo um fator comum de todos os tratamentos psicoterapêuticos, na medida em que implica ter a mente em mente, capacidade humana fundamental.
O conceito de mentalização foi desenvolvido com base no contexto clínico, especialmente com pacientes com transtorno de personalidade borderline, TPB3,4. Os sintomas desses pacientes se concentram em três áreas principais: no campo do afeto, apresentam raiva intensa e inapropriada, instabilidade afetiva e relacionamentos intensos e instáveis; no campo da identidade, suas representações são caóticas, possuem sentimentos de vazio e de abandono, e distorções paranoides; podem apresentar também um comportamento bastante impulsivo, envolvendo automutilações, abuso de substâncias e actings outs. Para Fonagy e Bateman, a instabilidade emocional do TPB seria originada na instabilidade na estrutura do self desses pacientes. Desordens de personalidade, como o TPB, resultariam de distorções do funcionamento psicológico induzidas pelo ambiente, responsável por impactar processos mentais chaves como a mentalização.
O comprometimento das representações de segunda ordem (simbólicas) nos pacientes com TPB estaria relacionado à desregulação do afeto que os caracteriza, tornando-os vulneráveis a experiências emocionais de qualidades e intensidades imprevisíveis2. Isso os torna pouco acessíveis ao método psicanalítico standard, conduzindo à necessidade do desenvolvimento de uma abordagem terapêutica capaz de endereçar os processos mentais comprometidos, numa primeira fase ao menos, antes da análise de conflitos e conteúdos mentais propriamente ditos5.
Entre esses processos mentais, a mentalização tornou-se o foco da abordagem de Bateman e Fonagy5. Mentalização é uma atividade mental, uma ação, razão pela qual Allen1 defendeu sua utilização no gerúndio, no idioma inglês "mentalizing", em vez do substantivo "mentalization". O autor discute as implicações dos sufixos "ing" e "tion" e argumenta que mentalizing é algo que nós fazemos, ou falhamos em fazer, assim como os clínicos procuram mentalizar e encorajam seus pacientes a fazê-lo o tempo todo. Já "mentalization" denota uma propriedade ou capacidade fixa da mente, e não contempla a dimensão processual do constructo. As publicações sobre o tema passaram a utilizar o termo mentalizing, em vez de mentalization*.
Mentalizing inclui uma extensa gama de operações cognitivas, impregnadas de emoção1. Em grande parte, é algo que fazemos interativamente. Envolve manter a própria mente, e também a mente do outro, em mente. Segundo Holmes6, mentalizar significa ver a nós mesmos desde fora, e ver aos outros desde dentro. Constitui um fenômeno metacognitivo, na medida em que se refere à capacidade de interpretação de pensamentos e ações ou, dito de outra forma, de pensar sobre o pensamento e os sentimentos. Relaciona-se aos significados que atribuímos às ações dos outros e às nossas, e às hipóteses implícitas ou explícitas que formulamos para compreender por que as pessoas pensam e agem da forma como o fazem1,2,6. Como visto acima, não se trata de uma propriedade fixa da mente, mas sim de um processo, capacidade ou habilidade que pode estar presente ou ausente, em maior ou menor grau, em diferentes momentos.
A capacidade de mentalizar é não apenas constitucional, mas, também, em grande parte, uma conquista do desenvolvimento2,7. A aquisição dessa capacidade depende especialmente, mas não exclusivamente, da qualidade dos relacionamentos de apego precoces do indivíduo, na medida em que eles refletem a extensão na qual nossa experiência subjetiva foi adequadamente espelhada por um outro confiável. Desta forma, o desenvolvimento da capacidade de mentalizar é um processo essencialmente intersubjetivo, e depende de ter vivenciado a experiência de reconhecer e explorar a própria mente através da mente de um outro, via de regra os cuidadores primários.
Também vem sendo demonstrado que rupturas nos vínculos de apego precoce e o trauma posterior têm o potencial de prejudicar a capacidade de mentalizar e o desenvolvimento de uma estrutura coerente do self 2,7. Além disso, como a capacidade de mentalizar tem aspectos de "traço" e de "estado", sua qualidade poderá variar, dependendo do grau de excitação emocional e do contexto interpessoal2. Assim, as falhas em mentalizar, combinadas com uma profunda desorganização da estrutura do self, podem auxiliar a compreender características centrais do funcionamento da personalidade borderline. Os autores observaram que, em contextos de relacionamentos emocionalmente muito intensos, a capacidade de mentalizar desses pacientes era perdida, havendo a re-emergência, em tais momentos, de modos de pensamento que antecedem a mentalização plena (que serão apresentados a seguir). Junto com isso, também se observa nesses pacientes uma pressão constante para a externalização dos estados internos, por meio da identificação projetiva, considerada por Fonagy e colaboradores a re-externalização de estados do self insuportavelmente dolorosos e desorganizados ou, dito de outro modo, do self alienado autodestrutivo2,7. Todas essas características e sintomas representariam o oposto da capacidade de mentalizar, e denunciariam suas falhas.
A genealogia do conceito
Fonagy8 assinala que uma das críticas mais comuns dirigidas à teorização sobre a mentalização é a de que se trata apenas de um termo desagradável para descrever o que Freud, Bion, Winnicott e Marty já haviam exposto. Salienta que nunca sugeriu o contrário, e que reconhece tratar-se do conceito menos original no dicionário de termos psicológicos. Assinala, contudo, que para certos pacientes, a proposta técnica que deriva desta teorização vem se revelando mais frutífera do que outras técnicas. "É uma nova técnica, não uma nova teoria", afirma o autor (p. 180).
A primeira referência histórica remonta ao conceito de ligação de Freud. Tal conceito descreveu uma mudança qualitativa do impulso à atividade associativa. Uma vez que um impulso atinge um nível de representação, converte-se em algo mentalizado, e isso libera o indivíduo da necessidade de buscar uma satisfação imediata. Fonagy visualiza, nos primeiros trabalhos de Freud, a referência ao pensar como uma proteção contra a ação, havendo, em tal concepção, uma conexão com o conceito de mentalização, posteriormente formulado8.
O conceito de Posição Depressiva de Melanie Klein também estaria vinculado, segundo Fonagy8, ao conceito de mentalização. Quando Klein empregou este conceito, referia-se também ao reconhecimento da dor e do sofrimento da outra pessoa, na medida em que a criança intuía que o ódio sentido em relação ao objeto percebido como mau e persecutório e os ataques fantasiados dirigidos a ele teriam sido, ao mesmo tempo, dirigidos ao objeto sentido como bom, amoroso e gratificante. Isso gerava um sentimento de culpa e o reconhecimento da possibilidade de provocar dor e sofrimento no outro, o que corresponde a uma das dimensões da mentalização.
Na teoria de Bion9 também é possível identificar alguns dos alicerces do constructo da mentalização. Fonagy8 articula as contribuições de Bion com as de Freud e Klein, destacando que a transição da Posição Esquizo-Paranóide para a Depressiva passa pela ligação dos impulsos e demanda, necessariamente, a contenção e o envolvimento do outro: a mãe ou o principal cuidador da criança. Bion avançou nesta discussão, demonstrando que a experiência interna da criança, muitas vezes incompreensível e até mesmo terrorífica, resultante da pressão dos seus impulsos e dos estímulos que recebe do exterior, e que é vivida passivamente, poderá se ver transformada numa experiência tolerável sempre que puder ser pensada, primeiro pela mãe, e logo em seguida pelo bebê. A isto Bion denominou função alfa, a qual transforma os "elementos beta" (pensamentos primitivos, muitas vezes angustiantes e assustadores) em "elementos alfa", os quais estarão disponíveis, então, para serem pensados, isto é, mentalizados. Bion acreditava que uma mãe continente seria necessária para esse desenvolvimento. Na sua ausência, ou havendo pouca habilidade da criança para tolerar frustração por fatores genéticos, o resultado seria identificação projetiva excessiva, podendo conduzir a distintos quadros psicopatológicos na vida posterior, e também a déficits na capacidade de mentalização. Fonagy8 revisita as contribuições de Bion, destacando que quando é possível mentalizar, as vivências se tornam suportáveis, o que possibilita ao sujeito saber o que está sentindo, e isso faz com que suas experiências sejam toleráveis. A essência da psicoterapia psicológica, para Fonagy8, residiria nesse aspecto que foi identificado e descrito por Bion.
Fonagy8 também destaca que Winnicott é outro autor fundamental para o desenvolvimento do conceito de mentalização. De especial relevância é sua concepção de espelhamento materno, que seria a base do que Fonagy e colaboradores chamam de self mentalizado. Winnicott10 postulou que, para que um autêntico sentido de self emergisse ou, nas suas palavras, o verdadeiro self, seria necessário que o cuidador fosse capaz de compreender psicologicamente a criança. Ao sentir-se compreendida e explicada, o self verdadeiro encontraria um caminho para evoluir.
A Psicanálise francesa, especialmente no que diz respeito às contribuições acerca das desordens psicossomáticas, também estaria na raiz do conceito de mentalização6,8. Os psicanalistas franceses, de acordo com Fonagy, foram os verdadeiros criadores do termo mentalization (em francês). Segundo Holmes6, nos anos 60, Marty concebeu as desordens psicossomáticas em termos de pensamento operatório ou pensamento concreto (que seria o equivalente francês da noção anglo-saxônica de alexitimia), isto é, a incapacidade ou inabilidade de colocar sentimentos em palavras. Nessa perspectiva, a mentalização seria a antítese do pensamento operatório ou do acting out (impulso disruptivo). A mentalização envolve a capacidade de transformar impulsos em sentimentos e representar, simbolizar, sublimar, abstrair, refletir e extrair significado deles.
A Psicologia Cognitiva também é referida quando se discute as origens do conceito de mentalização6. A teoria da mente constituiria uma das suas raízes. Para operar efetivamente no mundo social, é necessário ter desenvolvido a noção de que os outros têm mentes similares, mas não idênticas à nossa, noção que se desenvolve nos cinco primeiros anos de vida. Uma criança de cinco anos, salienta Holmes, sabe que uma pessoa pode ver o mundo de modo diferente de uma outra, dependendo da informação que ela tiver disponível. Daqui até a mentalização haveria apenas um passo, quando a criança adquire a visão de que o mundo é sempre filtrado por uma mente em perspectiva, que pode ser mais ou menos acurada em sua apreciação da realidade.
Ao discutir o conceito de mentalizing de uma perspectiva psicanalítica, Holmes (2006) pontua que Fonagy e seus colaboradores imprimiram na sua teorização a inclinação empiricista britânica e a noção interpersonalista winnicottiana. Nessa direção, encontra-se mais uma das raízes do constructo: aquela relacionada à Psicopatologia do Desenvolvimento7,11.
Numa publicação de 2012, Fonagy e Allison11 descreveram três inspirações importantes para o desenvolvimento do conceito de mentalização. Além do trabalho psicanalítico com pacientes borderline, já mencionado, tal conceito foi formulado no contexto de um grande estudo empírico, segundo o qual a segurança do apego dos pais durante a gravidez mostrou ser um preditor significativo da segurança do apego infantil com cada genitor12. Além disso, essa segurança era ainda mais fortemente predizível de acordo com a habilidade de cada genitor de pensar e compreender seu relacionamento na infância com os próprios pais em termos de estados da mente13. Fonagy e seus colaboradores12,13 entenderam que havia uma sinergia importante entre os processos de apego e o desenvolvimento da capacidade da criança de compreender o comportamento interpessoal em termos de estados mentais.
A terceira inspiração importante foi relacionada ao trabalho com crianças, baseado no relato clínico de tratamentos psicanalíticos com essa população, bem como em pesquisas clínicas e empíricas em outros contextos7,11,14,15. O trabalho com crianças ajudou a pensar mais profundamente sobre o desenvolvimento normal do pensamento ou da capacidade de mentalizar, e sobre os modos mais primitivos de pensamento que precedem a sua emergência. Fonagy e Allison11 assinalam que, desta forma, foi possível traçar um mapa heurístico da emergência da mentalização, que permitia a compreensão de alguns aspectos qualitativos do pensamento dos pacientes que apresentavam estados borderline e, principalmente, constatar que muitas formas de pensamento consideradas prototípicas nesses casos não eram diferentes do modo com as crianças pequenas normalmente tendem a considerar sua experiência interna. Isso nos conduz a considerar como se desenvolve a capacidade de mentalizar e como se apresentam os modos de pensamento não mentalizantes.
Como se Desenvolve a Capacidade de Mentalizar
Uma contribuição importante para a teorização a respeito da mentalização foi colocar em cena a teoria do apego8. Porém, Fonagy e seus colaboradores estabeleceram uma releitura das contribuições de Bowlby, enfatizando, para além dos aspectos de sobrevivência e proteção do bebê possibilitados pelo sistema de apego, num sentido mais biológico, o nível das representações mentais do apego, num sentido mais psicológico, que passa a ser considerado um mecanismo para transmitir transgeracionalmente a subjetividade humana7,8. O desenvolvimento ótimo da capacidade de mentalizar depende da interação com mentes mais maduras e sensíveis, o que torna o papel do apego crucial nesse desenvolvimento11. Assim, a premissa geral subjacente a essa abordagem é que o apego seguro leva à emergência da mentalização, e a capacidade de mentalização constitui um marcador do apego seguro. Por outro lado, formas extremas de apego inseguro, especialmente do apego desorganizado, comprometem as habilidades para mentalizar2,13.
Entretanto, não se trata de uma relação linear. Fonagy e seus colegas2 assinalaram a necessidade de um modelo transacional do desenvolvimento, bem como de assumir uma visão dinâmica desse desenvolvimento. Assim, uma função complexa como a mentalização abrange múltiplos componentes, tais como precursores desenvolvimentais, mecanismos mediadores alternativos e estratégias que possam compensar os déficits. Os determinantes contextuais moderam a relação entre os fatores de risco e os resultados patogênicos. Além disso, uma influência particular pode ser crítica num certo estágio de desenvolvimento, mas muito menos impactante em outro, implicando que o efeito de um déficit específico estará relacionado com o momento do desenvolvimento da criança.
Um senso robusto de self e a capacidade de operar efetivamente no mundo interpessoal resultam, pois, de processos intensamente interativos entre o cuidador e a criança nos primeiros anos de vida. A criança aprende quem ela é e o que são seus sentimentos através da capacidade do cuidador de refletir seus gestos, suas manifestações. Na medida em que o cuidador primário compreende e responde às reações emocionais do bebê, e às mudanças nesse estado em cada momento, um sistema regulatório diádico se desenvolve, promovendo nessa criança a capacidade de regular seus estados emocionais. Ela começa a construir um quadro acerca de onde começa e onde termina a realidade interna e externa, o que a habilita a dimensionar a contribuição dos seus próprios sentimentos na sua apreciação do mundo - em outras palavras, a desenvolver sua capacidade de mentalização2,7,11.
Fonagy e Target14 formularam um modelo acerca do desenvolvimento da realidade psíquica na criança que coloca a noção freudiana de realidade psíquica numa perspectiva desenvolvimental. Esses autores sustentam que o mundo mental não é algo dado, e é radicalmente diferente numa criança pequena e num adulto. Além disso, para um amadurecimento saudável, depende da interação com pessoas suficientemente benignas e reflexivas. Segundo Fonagy e Target, o senso de realidade psíquica da criança muito pequena tem um caráter dual: em geral, ela opera no modo de "equivalência psíquica", no qual as ideias não são sentidas como representações, mas sim como réplicas diretas da realidade e, consequentemente, são sempre verdadeiras; em outros momentos, a criança utiliza o "pretend mode", ou "modo como se", ou ainda "modo faz-de-conta", no qual as ideias são percebidas como representações, mas sua correspondência com a realidade não é examinada.
No primeiro caso, as crianças muito pequenas consideram seus estados psicológicos como parte da realidade física ou objetiva, comportando-se como se sua experiência interna fosse equivalente e, consequentemente, espelhasse a realidade externa14. Por extensão, os outros teriam exatamente a mesma experiência que elas. Para os autores, esse senso subjetivo de unidade entre o interno e o externo constituiria uma fase universal no desenvolvimento das crianças. A equivalência entre aparência e realidade observada nessa etapa contrastaria com a visão das crianças mais velhas, que sabem que só porque elas pensam algo, isso não significa que é real.
O brincar ocupa um importante papel no desenvolvimento do pensamento e da experiência emocional, bem como na sua integração, que resultará na capacidade de mentalizar14,15. Assim, no pretend mode, os próprios pensamentos e sentimentos, ou as representações internas, têm primazia sobre a realidade física externa. Os autores afirmam que neste modo de pensamento, na verdade, não deve haver correspondência entre o mundo de faz-de-conta e a realidade externa, e para a criança que brinca esta diferença deve ser marcada e frequentemente exagerada. Ao contrário, o isomorfismo entre as realidades interna e externa é extremamente assustador e ameaçador para ela, dada a sua limitada capacidade para uma apreciação realística dos perigos, nessa etapa do desenvolvimento. Uma criança pequena brincando pode, então, pensar sobre os pensamentos como pensamentos, na medida em que eles estiverem deliberadamente e claramente despojados da sua conexão com o mundo real das pessoas e das coisas. Esse processo requer a presença de um adulto ou criança mais velha, capaz de fornecer um enquadre ou estrutura que proteja a criança da realidade externa desafiadora. Sendo assim, a compreensão da criança acerca das mentes evolui através do brincar e das fantasias que podem ser criadas nesse contexto, devido à sua segregação da realidade externa, evitando assim um sentimento de transbordamento entre pensamento e realidade.
De acordo com o modelo proposto por Fonagy e Target14 e Target e Fonagy15, por volta do quarto ano da criança, o modo de equivalência psíquica e o pretend mode irão se tornar, de maneira crescente, integrados, e o modo reflexivo de realidade psíquica, ou mentalizing, será estabelecido. Com base neste novo modo de pensar sobre sua experiência, a criança atinge duas conquistas importantes: ela terá uma compreensão de que o seu comportamento e o comportamento dos outros fazem sentido em termos de estados mentais, e torna-se capaz de reconhecer que esses estados são representações, podem ser falhos e mudar, uma vez que são baseados em apenas uma de muitas perspectivas possíveis. Três condições, segundo os autores, são necessárias para integrar os dois modos de experiência da realidade psíquica anteriores e atingir a capacidade de mentalizar: é necessário que os estados mentais da criança (seus pensamentos e sentimentos) tenham sido representados (pensados sobre) na mente do cuidador; é essencial o enquadre ou estrutura representado pela perspectiva desse adulto, normalmente orientado para a realidade; finalmente, a criança necessita de um adulto ou criança mais velha que brinque com ela, o que possibilita que veja sua fantasia ou ideia representada na mente desse outro, reintrojete-a e a utilize como representação do seu próprio pensamento (representações de segunda ordem).
Essa conquista da capacidade de mentalizar é de crucial importância para a criança, na medida em que ela traz a possibilidade de continuidade na experiência do self psicológico, e habilita a criança a perceber as ações dos outros como significativas, com base na atribuição de pensamentos e sentimentos7. As ações dos outros se tornam, assim, previsíveis, o que reduz a dependência da criança e promove a sua individuação. A aquisição da capacidade de mentalizar também permite à criança distinguir entre uma "verdade interna e externa" (p. 264), o que possibilita compreender que o fato de uma pessoa se comportar de determinada maneira não significa que as coisas sejam necessariamente assim. Em contextos de maus tratos e de trauma, discutem os autores, isso pode se tornar particularmente importante e capacitar a criança a sobreviver psicologicamente, pois, sendo capaz de mentalizar, terá disponível uma função crucial para a atenuação de uma experiência psíquica avassaladora. Fonagy e colaboradores7 também destacam que uma clara representação do estado mental dos outros enriquece as comunicações do indivíduo e, sobretudo, que a capacidade de mentalizar permite conquistar um nível mais alto de intersubjetividade e vivenciar experiências mais profundas com os outros.
No processo de desenvolvimento da capacidade de mentalizar, é importante mencionar, ainda, a questão da regulação dos afetos e do controle da atenção, ambos necessários para sua conquista e alicerçados nos relacionamentos de apego com os cuidadores primários2,16. Mentalizar pressupõe a capacidade de regulação das próprias emoções, bem como de controlar a atenção.
Fonagy e colaboradores2 salientaram que, para desenvolver uma experiência coerente do self, é necessário que os sinais emocionais do bebê sejam acuradamente espelhados pela figura de apego. Tal espelhamento deve não apenas ser contingente, em termos de tempo, espaço e tonalidade emocional, mas também precisa ser suficientemente marcado, o que implica que seja exagerado em alguma medida, ou ligeiramente distorcido. Isso possibilitará ao bebê compreender o que o cuidador reflete como parte da sua própria experiência emocional, e não uma expressão da experiência emocional do cuidador. Ou seja, além de contingência, deve haver discriminação nessa relação, o que permitirá à criança internalizar as expressões da sua experiência e gerar um sistema representacional dos seus estados internos, desenvolvendo o que esses autores chamam de representações de segunda ordem. As falhas ou a ausência dessa experiência de espelhamento contingente tornaria a criança vulnerável para a desregulação do afeto, impactando as representações de segunda ordem e podendo levar a qualidades e intensidades imprevisíveis de experiência emocional.
Essa capacidade de regulação das emoções é interligada com a capacidade de controle de atenção2,7. A regulação do self, o autocontrole e o controle da atenção podem ser impactados pela desregulação dos afetos, o que fragiliza a capacidade do indivíduo para funcionar adequadamente nos contextos interpessoais. Situações de significativo estresse social são especialmente propensas, nesses casos, a gerar dificuldades para seu processamento e compreensão. Midgley e colaboradores16 destacam que, na literatura clínica sobre a mentalização, a palavra 'atenção' é usada num sentido mais amplo, sendo que a regulação da atenção, nesse contexto, é descrita como a habilidade para controlar a impulsividade e se associa com a competência social, a tomada de perspectiva e a empatia, habilidades que também se desenvolvem no contexto dos relacionamentos de apego seguro.
Mentalizar pressupõe, portanto, uma boa capacidade para regular emoções e controlar a atenção. Porém, como vimos antes, trata-se de uma atividade mental, sendo melhor compreendida como um processo. Ademais, é um processo multifacetado, que pode se apresentar sob a forma de diferentes polaridades, apresentadas a seguir.
A mentalização como um constructo multidimensional
Mentalizar designa um processo dinâmico, multifacetado, e que pode ser influenciado pelo estresse e o nível de excitação emocional, especialmente em contextos de relacionamentos de apego2. Com base em estudos de imagens cerebrais, no âmbito da cognição social, foi proposto que a mentalização abrange quatro polaridades: mentalização automática e mentalização controlada (ou implícita e explícita); mentalização focalizada internamente versus a mentalização focalizada externamente; mentalização orientada para o self versus mentalização orientada para o outro; mentalização envolvendo processos cognitivos e aquela com foco nos processos afetivos. Conforme os autores, cada uma dessas polaridades estaria relacionada a diferentes sistemas neurais.
A polaridade entre a mentalização controlada e a automática é a mais fundamental, como descreveram Fonagy e colaboradores2. No primeiro caso, trata-se de um processo mais lento, caracteristicamente verbal, e que requer atenção, intenção, reflexão, consciência e esforço. Já a mentalização automática ou implícita implica um processamento paralelo e bem mais rápido, é tipicamente reflexa e não requer atenção, intenção, consciência e esforço. Nas nossas interações diárias, a mentalização é predominantemente implícita e automática, especialmente nos contextos em que tudo vai bem e naqueles dos relacionamentos de apego seguro. Quando necessário, na melhor das hipóteses, as pessoas são capazes de mudar para o modo controlado ou explícito (por exemplo, quando uma criança brincando repentinamente começa a chorar e a mãe tenta compreender por que, ou quando durante uma conversação entre dois amigos um deles se torna distante e aéreo) o que pressupõe consciência acerca dos estados mentais e flexibilidade adaptativa.
Estudos de neuroimagem referidos por Fonagy e colaboradores2 informam que os sistemas neurais envolvidos na mentalização automática incluem a amígdala, os gânglios basais, o córtex pré-frontal ventromedial, o córtex temporal lateral e o córtex cingulado anterior dorsal. Por outro lado, os circuitos envolvidos na mentalização explícita ou controlada incluem o córtex pré-frontal lateral, o medial, o parietal lateral, o parietal medial, o lobo temporal medial e o córtex cingulado anterior rostral. Os autores assinalam que circuitos cerebrais filogeneticamente mais antigos, que se apoiam em informações sensórias, parecem ser subjacentes à mentalização automática, enquanto circuitos filogeneticamente mais avançados, que se apoiam em informações linguísticas e simbólicas, parecem ser subjacentes à mentalização controlada.
No que diz respeito à segunda polaridade, a mentalização focalizada internamente é referida ao interior da própria mente, ou da mente dos outros: pensamentos, sentimentos, experiências2. Em contrapartida, a mentalização focalizada externamente é referida aos processos mentais que se apoiam nas características físicas e visíveis das próprias ações ou daquelas dos outros. Não é a mesma coisa que a mentalização do self ou do outro, porque tanto a mentalização internamente como a externamente focalizada pode ser referida ao self ou ao outro.
Diferentes redes neurais foram identificadas em cada caso2. A mentalização cujo foco são as características internas ativa a rede frontoparietal medial, que pressupõe uma reflexão mais ativa e controlada, enquanto o foco nas características externas do self e dos outros envolve a rede frontotemporoparietal lateral, que implica um processo menos reflexivo e controlado.
A capacidade de refletir sobre o self e sobre os outros é intimamente entrelaçada e compartilha os mesmos sistemas neurais2. O primeiro deles é, do ponto de vista desenvolvimental, mais básico e mais inicial. Trata-se do sistema de neurônios espelho frontoparietal, envolvidos, por exemplo, no reconhecimento facial e corporal, permitindo a compreensão de ações e emoções, próprias e dos outros, com base no compartilhamento direto das mesmas, de maneira intuitiva. Esse sistema automático e implícito fornece um mapeamento bidirecional (self-outro e outro-self) que está presente na compreensão do self e dos outros, ou nas falhas dessa compreensão. Já o segundo sistema envolvido na mentalização do self e dos outros, conforme os autores, é menos baseado no corpo, e processa as informações de modo mais simbólico e abstrato: envolve o córtex pré-frontal medial e o córtex cingulado anterior. Esse sistema se apoia na experiência, diferente do anterior, e emerge mais tarde no desenvolvimento, sendo principalmente formatado com base nos relacionamentos interpessoais ao longo do desenvolvimento. Exerce um papel crucial na discriminação das próprias experiências das dos outros.
As pessoas podem apresentar deficiências com relação ao objeto da mentalização, que podem ser de diferentes tipos2. Podem apresentar uma mentalização deficiente tanto no que diz respeito ao self como aos outros, podem apresentar desequilíbrios importantes entre a mentalização sobre o self e sobre os outros, ou ainda desequilíbrios em diferentes formas de mentalização sobre o self e sobre os outros. Variadas limitações em diferentes dimensões da mentalização serão encontradas em distintos quadros psicopatológicos, o que vem sendo pesquisado e demonstrado de maneira crescente.
Finalmente, a mentalização plena integra a cognição e o afeto, e envolve sistemas neurocognitivos distintos, mas sobrepostos2. A mentalização cognitivamente orientada envolve diversas áreas no córtex préfrontal, enquanto a mentalização afetivamente orientada é especialmente vinculada ao córtex pré-frontal ventromedial, e exerce um papel importante ao imprimir nas representações mentais informação afetiva, que posteriormente pode ser integrada com conhecimento cognitivo relativo, por exemplo, ao raciocínio acerca das crenças e desejos envolvidos numa dada situação. Aqui, novamente, pontuam os autores, um sistema linguístico e abstrato pode ser diferenciado de um sistema lateralizado e corporificado. A integração dos aspectos afetivos e cognitivos da mentalização pode apresentar diferentes graus de comprometimento, dependendo do quadro psicopatológico em questão. Esses graus podem variar da inibição ou disfunção até a desativação de um ou ambos os sistemas. Assim por exemplo, pacientes com características narcísicas e antissociais de personalidade mostram considerável compreensão cognitiva dos estados mentais, mas falham para entrar em contato com o núcleo afetivo das suas experiências. Por outro lado, pacientes com características dependentes, borderline ou histriônicas de personalidade são frequentemente sobrecarregados com a mentalização automática e dirigida pelos afetos, porém falham em integrar suas experiências afetivas com o conhecimento mais reflexivo e cognitivo.
Implicações Clínicas, Teóricas e Considerações Críticas sobre a Abordagem
Mentalizing é um conceito transdiagnóstico, aplicável a várias condições de saúde mental17. A perspectiva desenvolvimental oferecida pelos formuladores desse conceito também oferece subsídios para compreensão das dificuldades para mentalizar, identificadas em distintos quadros psicopatológicos. Fonagy e seus colaboradores descreveram os modos não mentalizantes de pensamento, ou pré-mentalizantes, que coincidem com os modos de pensamento implicados no processo de desenvolvimento da noção de realidade psíquica na criança2,14,15. Eles incluem o modo de equivalência psíquica, o pretend mode e o modo teleológico2. Podem ser identificados não somente nas crianças, mas também em pacientes adultos e adolescentes, assim como o equilíbrio entre as quatro polaridades da mentalização descritas acima se apresentará de maneiras peculiares, dependendo do quadro clínico que se trate.
Um paciente pode utilizar com frequência o modo de equivalência psíquica, que implica uma equivalência direta entre seus pensamentos e estados mentais com o mundo externo real. É como se dissesse: "Se eu sinto que isto é assim, então isto É ASSIM", ou ainda "Se eu penso que você acha que eu sou uma pessoa horrível, então você acha que eu sou horrível, e eu SOU uma pessoa horrível". Os estados paranoides, em muitos momentos, apresentarão esse modo de pensamento, caracterizado por uma continuidade entre o que se passa na mente do indivíduo e o mundo externo. Os pensamentos se tornam fatos, e no extremo podem originar estados delirantes.
No pretend mode, como já foi visto, há uma desconexão entre realidade interna e externa, com uma dominância das fantasias e do mundo interno. Na clínica com adultos, pode parecer que o paciente está mentalizando, porque ela fala sobre sentimentos, pensamentos, desejos etc. Porém, eles são desconectados do mundo externo, e na verdade trata-se de pseudomentalizing, havendo muita fala e pouca mudança.
Com base em evidências clínicas e empíricas, também foi descrito o modo teleológico de pensamento, presente num estágio inicial de desenvolvimento, quando apenas o que é fisicamente percebido é real11. O afeto, por exemplo, só é sentido como verdadeiro quando acompanhado por uma expressão física observável, como um abraço2. O modo teleológico está relacionado aos acting outs observados em pacientes limítrofes, dadas as dificuldades encontradas nesses pacientes para representar psiquicamente seus estados mentais. Podem tomar, inclusive, a forma de automutilações nos pacientes com TPB, numa tentativa de obter alívio de experiências de intensa e intolerável emoção, através da destruição física do self4.
Para além do TPB, os problemas na mentalização foram sendo analisados e discutidos em diversas situações clínicas, como as desordens somatoformes, os transtornos alimentares18, os transtornos de conduta19 , a depressão20, entre muitas outras. De especial interesse são as contribuições, amparadas por numerosos estudos, para as situações de trauma na infância, decorrentes de maus tratos e abuso sexual21. Na medida em que mentalizing constitui um processo psicológico fundamental, é esperado que esteja presente, de forma mais ou menos comprometida, em todas as desordens emocionais.
No que concerne ao trauma, a abordagem baseada na mentalização propõe uma mudança da perspectiva centrada na desordem (no transtorno de estresse pós-traumático, por exemplo) para uma perspectiva centrada na pessoa21. A experiência traumática, especialmente quando relacionada a figuras de apego, impacta a capacidade de regulação das emoções e para mentalizar. Consequentemente, os autores propõem que o objetivo geral do tratamento de pacientes traumatizados deveria ser estabelecer um self mentalizador mais robusto, equipando-os para mentalizar o trauma e os relacionamentos conflituosos e para desenvolver apegos mais seguros.
A abordagem baseada na mentalização, inicialmente formulada para o tratamento de pacientes adultos com TPB5, expandiu-se e passou a ser utilizada com crianças16, adolescentes22, famílias23, na promoção de uma parentalidade reflexiva24, entre outros settings. Essa expansão é compreensível, uma vez que essa abordagem oferece um enquadre teórico de referência que inclui um modelo de desenvolvimento, uma teoria sobre a psicopatologia e uma hipótese sobre o mecanismo de ação terapêutica11.
Nessa abordagem terapêutica, Fonagy e colaboradores2 salientaram que deve se evitar estimular o paciente a falar sobre estados mentais que ele não consegue ligar à realidade subjetivamente experimentada, o que também implica diminuir a ênfase em interpretações de conteúdos inconscientes profundos, em favor de conteúdos conscientes ou pré-conscientes. Com pacientes severamente perturbados, deve ser mudado o objetivo terapêutico, do insight para a recuperação da mentalização. Além disso, é necessário evitar alusões a estados mentais complexos como conflitos, ambivalência, elementos inconscientes, que são incompreensíveis para pacientes cuja capacidade de mentalizar é vulnerável.
Uma descrição aprofundada da técnica da abordagem baseada na mentalização extrapola os objetivos deste artigo, mas é importante mencionar, ainda, que a mentalização vem sendo considerada um fator comum de diferentes abordagens psicoterapêuticas. A psicoterapia, qualquer que seja sua forma, trata da reativação da mentalização25, na medida em que busca estabelecer uma relação de apego seguro com o paciente, tenta utilizar essa relação para criar um contexto interpessoal onde a compreensão dos estados mentais se converta em um foco e tenta possibilitar a reorganização do self.
Diferentes abordagens psicoterápicas, independentemente da sua proposta técnica, reativam o sistema de apego do indivíduo, uma vez que oferecem um contexto relacional seguro e exploram aspectos importantes dos relacionamentos significativos atuais e passados. Portanto, qualquer técnica psicológica que explore afetos, cognições e memórias irá estimular o sistema de apego e oferecer o enquadre psicológico para o desenvolvimento da mentalização. Diversos estudos empíricos vêm corroborando essa hipótese26,27,28, inclusive em âmbito brasileiro29.
CONSIDERAÇÕES CRÍTICAS
Embora Fonagy8 tenha afirmado que a abordagem baseada na mentalização não constitui uma nova teoria, mas apenas uma nova técnica, considera-se, como pontuado acima, que ela vem evoluindo no sentido da formulação de um corpo teórico abrangente, que propõe um modelo de desenvolvimento, uma teoria sobre a psicopatologia e uma proposta sobre o mecanismo de ação terapêutica, tal como o fizeram outras teorias no campo psicanalítico. Muitas controvérsias cercam a abordagem, uma vez que seus proponentes são, em sua maioria, psicanalistas, e suas ideias e propostas terapêuticas não apenas dialogam com outros campos do conhecimento, mas também buscam nessas fontes aportes que auxiliam no delineamento das suas proposições.
Assim, a teorização sobre a mentalização se origina no escopo da teoria das relações objetais, nas contribuições de Bowlby e especialmente na vertente psicanalítica contemporânea dessa teoria, mas estabelece pontes com outras disciplinas, como a Psicologia Cognitiva, a Neurociência e a Psicopatologia do Desenvolvimento. Numa perspectiva psicanalítica mais ortodoxa, isso pode ser considerado uma fragilidade da abordagem, mas quando se assume uma perspectiva complexa na tentativa de compreender a subjetividade e o sofrimento psíquico, e de buscar alternativas para seu enfrentamento e superação, pode ser considerado um ponto forte e um aspecto positivo.
É certo que algumas imprecisões e ambiguidades necessitam de clarificação e sistematização, como por exemplo no que concerne ao conceito de função reflexiva. Algumas vezes, essa expressão é utilizada como sinônimo de mentalização e de mentalizing, enquanto em outras é diferenciada como referindo-se à "operacionalização dos processos psicológicos subjacentes à capacidade de mentalizar"7. Nesse caso, o que teria em comum e o que proporia de diferente em relação às noções de espelhamento materno de Winnicott10, ou de função alfa e de revêrie materno de Bion9?
Enquanto teoria psicopatológica, acredita-se que a abordagem baseada na mentalização também necessita avançar no sentido de uma maior sistematização e interlocução com aspectos importantes da teoria na qual se apoia. Uma vez que o sistema de apego, enquanto sistema de regulação emocional e desenvolvimento de um self integrado, no seio do qual se estabelece a capacidade para mentalizar, é crucial para essa abordagem, seria importante compreender as vicissitudes desse processo quando não se estabelece um apego seguro, ou um apego desorganizado. Ou ainda no caso do apego inseguro evitativo, ou do apego inseguro resistente ou ambivalente, como se daria o processo de desenvolvimento da mentalização?
Considera-se um ponto forte na abordagem o fato de ser amparada em farta pesquisa empírica, o que atesta a preocupação com o desenvolvimento de instrumentos para avaliação do constructo30. Os instrumentos formulados contemplam as diferentes dimensões da mentalização, as diferentes faixas etárias, além de explorar a possibilidade de instrumentos de avaliação psicológica já existentes permitirem, também, uma apreciação da mentalização.
Em nossa experiência, a abordagem da mentalização tem se revelado extremamente frutífera no trabalho clínico com pacientes com TPB, deprimidos, com crianças e adolescentes que sofreram traumas relacionados ao abandono, maus tratos e violência sexual. Também no trabalho com famílias que enfrentam transições familiares altamente conflitivas, e naquelas vivenciando processos de adoção, especialmente na adoção tardia, a intervenção com foco na promoção de um vínculo de apego seguro e na capacidade de mentalizar tem se revelado bastante promissora. Esses contextos se mostram muito perturbados, as crianças exibem comportamentos desregulados e descontrolados, ocasionando conflitos significativos nessas famílias e, nos casos mais extremos, a adoção é revertida e as crianças devolvidas. A possibilidade de identificar e compreender os estados mentais subjacentes a tais comportamentos abre uma nova perspectiva de fortalecimento desses vínculos e superação das dificuldades que se apresentam.
Como mentalizar é um processo e pode falhar, a abordagem se mostra útil com os pacientes em geral, independente do status psicopatológico. A marcha de todo processo terapêutico depende de uma atenção controlada, da regulação das emoções num nível ótimo, que possibilite a análise e compreensão dos estados e conteúdos mentais. Faz sentido, portanto, que mentalizing venha sendo considerado um fator comum das diferentes abordagens psicoterápicas. Por tudo isso, considera-se que seria importante que esse constructo pudesse ser mais conhecido, estudado e utilizado no cenário da Psicologia Clínica brasileira.
REFERÊNCIAS
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Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Unisinos, Programa de Pós-Graduação em Psicologia - São Leopoldo - RS - BR - Orcid - 0000-0002-1760-7154
Correspondência
Vera Regina Röhnelt Ramires
verareginaramires@gmail.com
Submetido em: 25/06/2020
Aceito em: 22/09/2020
Contribuições: Conceitualização, Investigação, Metodologia, Redação - Preparação do original, Redação - Revisão e Edição
Instituição: Universidade do Vale do Rio dos Sinos - São Leopoldo - RS - BR
* Neste artigo, optou-se por utilizar, daqui por diante, o termo mentalizing sempre que nos referirmos ao processo ou ato de mentalizar, por indicar com mais precisão a atividade mental a qual nos referimos e devido à falta de uma expressão correspondente em português.
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