Rev. bras. psicoter. 2020; 22(3):81-93
Lima AT, Alves DL. As Dimensões do Self na Terapia Cognitiva PósRacionalista. Rev. bras. psicoter. 2020;22(3):81-93
Artigo Original
As Dimensões do Self na Terapia Cognitiva PósRacionalista
The Dimensions of 'Self' in Post-Rationalist Cognitive Therapy
Las Dimensiones del Sí Mismo en la Terapia Cognitiva Posracionali
Antônio Tavares Limaa; Diana Lopes Alvesb
Resumo
Abstract
Resumen
INTRODUÇÃO
Em um artigo de Guidano1 sobre psicoterapia construtivista publicado em 1997, a primeira consideração feita pelo autor, logo no início do texto, diz respeito à hegemonia de perspectivas racionalistas na terapia cognitiva contemporânea. Vinte e três anos depois, muitas propostas surgiram, mas a perspectiva racionalista continua sendo uma referência dominante no cenário das terapias cognitivas, no Brasil e no mundo2. Atualmente a terapia cognitiva engloba um número grande de abordagens, por exemplo: terapia cognitivo-comportamental (TCC) de Aaron Beck; terapia racional emotiva (TREC) de Albert Elis; terapia cognitiva construtivista de Robert Neimeyer; terapia cognitiva pós-racionalista (TCPR) de Vittorio Guidano; terapia cognitiva narrativa de Oscar Gonsalves; terapia de aceitação e compromisso (ATC) de Steven Hayes; terapia do esquema de Jeffrey Young; terapia focada na compaixão (TFC) de Paul Gilbert; terapia comportamental dialética (TCD) de Marsha Linehan, dentre outras. Essas abordagens, embora compartilhem alguns princípios fundamentais, apresentam diferentes formulações e metodologias de intervenção3.
Falar de terapia cognitiva, portanto, implica em considerar uma variada gama de concepções, que se organizam a partir de diferentes bases filosóficas, propondo múltiplas estratégias de intervenção, tendo em vista diferentes tipos de resultados. O psiquiatra italiano Vittorio Guidano (1944-1999) participou ativamente da fundação e da divulgação da terapia cognitiva comportamental, dentro e fora da Itália, sendo um dos fundadores da Sociedade Italiana de Psicologia Cognitiva em 1972, da qual foi presidente durante alguns anos. Contudo, a partir de influências do pensamento sistêmico processual e da cibernética de 1ª e 2ª ordem, ainda na década de 70, Guidano rompeu com os modelos comportamentais e aderiu a uma tendência emergente da terapia cognitiva da época: o construtivismo. Assim, no último quartel da década de 80 do século XX, criou sua própria abordagem, que denominou de terapia cognitiva pós-racionalista4.
O pressuposto ontológico básico de Beck5, que fundamenta e orienta a prática das terapias cognitivocomportamentais, é a existência de uma realidade objetiva. Assim, o debate sobre o conhecimento volta-se para o aperfeiçoamento das percepções e da produção de verdades mais validáveis. A subjetividade reduz-se a um problema de processamento de informações. A dimensão ativa da mente é colocada como produtora das distorções cognitivas, relacionadas aos transtornos psíquicos. O objetivo da TCC tradicional é corrigir as crenças consideradas disfuncionais e influenciar o paciente a se tornar mais racional, aderindo a uma ordem de significados tida como mais adaptativa5,6,7,8.
A perspectiva pós-racionalista9 não situa a realidade como única, mas como uma rede de processos pluridimensionais entrelaçados, articulados simultaneamente em múltiplos níveis de interação. Ou seja, a realidade é o contínuo devir, fluir; um fluxo contínuo de todas as coisas, que se estabelecem em múltiplas direções e em níveis diferentes de articulação, de modo que não possa qualquer nível ser reduzido a outro. Nesse sentido, cada ponto de vista corresponde à visão de um determinado observador, que não pode ser reduzido a outro ponto de vista. Portanto, existem múltiplas realidades, todas diferentes, mas igualmente legítimas quanto aos domínios de coerências operacionais explicativas existentes. Considerando-se essa complexidade, o conhecimento é compreendido a partir de uma perspectiva evolucionista e epistemológica, na qual o conhecer e a consciência são entendidos do ponto de vista daquele que conhece10.
A história da terapia cognitiva pós-racionalista tem como marco a publicação das obras: The complexity of self11 e The self in process12. Importante assinalar que o termo pós-racionalismo não é sinônimo de uma postura irracional ou que despreza a importância da lógica racional como fundamento para dar consistência à experiência humana. Pós-racionalismo significa considerar que o conhecimento é muito mais do que cognição e lógica racional. Nessa perspectiva, as emoções assumem um papel decisivo na construção do conhecimento13.
O pensamento de Guidano foi construído em constante debate com diferentes autores, existindo seis referências, que podem ser consideradas básicas: as ideias de William James sobre si mesmo; a epistemologia evolucionista de Konrad Lorenz; a biologia do conhecimento de Maturana e Varela; a teoria do apego, desenvolvida por John Bowlby; o pensamento complexo de Ilya Prigogine; a epistemologia genética de Jean Piaget. Segundo Pena13, a terapia cognitiva pós-racionalista não se volta nem para possibilitar maior controle sobre as emoções, nem para mudar as crenças "irracionais" das pessoas. Partindo da concepção do ser humano como um organismo auto-organizado e autopoiético, o objetivo dessa terapia consiste em conduzir estrategicamente o cliente a reconstruir sua experiência imediata, através do mecanismo da auto-observação.
1. AUTOPOIESE E IDENTIDADE
Os estudos sobre o desenvolvimento de uma identidade pessoal (self) constituem um projeto antigo na psicologia, tendo como um primeiro marco teórico William James (1842-1910), um dos fundadores da psicologia moderna. Na obra de Vittorio Guidano, os processos psicológicos envolvidos na construção e na manutenção do self são compreendidos como o principal foco de pesquisas e intervenções, tendo em vista explicar o desenvolvimento normal e o patológico. Diferentemente de outros pesquisadores pós-racionalistas, Guidano propõe um modelo de psicopatologia como uma "ciência do significado pessoal"12.
Em contraste com a tradição racionalista moderna, que situa o self como uma essência, Guidano anuncia o self como um processo fundamentalmente emocional e em constante transformação. Esse processo se estabelece a partir de dois níveis: um tácito, da experiência imediata de si, e outro explícito, que é o explicativo, quando a experiência é reelaborada. Segundo o autor, a experiência de ser um "si-mesmo" emerge de um processo circular de experienciar e de explicar, de modo a construir um sentido de si. Um conceito central para compreender essa perspectiva é o de autopoiese11.
A teoria da autopoiese foi desenvolvida na década de 70 do século passado pelos biólogos chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela (1946-2001). Surge, incialmente, apoiada em trabalhos no campo da neurologia e da imunologia, mas extrapola o domínio da biologia e desperta interesse em outros campos, como os da psicologia, da filosofia e das ciências da cognição. As pesquisas de Maturana e Varela tiveram como ponto de partida tentar compreender a qual classe de sistema pertence um ser vivo. Ou seja, existe uma organização comum a todos os seres vivos, independentemente da natureza dos seus componentes? Os pesquisadores chegaram à conclusão de que tal organização é a capacidade de os seres vivos atuarem como unidades autônomas, capazes de autoproduzirem-se. Nessa linha de raciocínio, autopoiese é a denominação desse modo de organização dos seres vivos14.
Importante assinalar que, apesar de os sistemas vivos serem autoproduzidos, eles não são sistemas isolados e interagem com o mundo. Contudo, como afirma Maturana:
Os seres vivos são estruturalmente determinados. Enquanto tais, não admitem interações instrutivas, e tudo que acontece neles, acontece como mudança estrutural determinada em qualquer instante em sua estrutura, seja no curso de sua própria dinâmica interna, seja deflagrada - mas não especificada - pelas circunstâncias de suas interações15.
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