Rev. bras. psicoter. 2020; 22(2):101-113
Rios LF, Biazus T, Abreu PSB. Com que roupa eu vou? - Um caso de patologia da identidade em psicoterapia de orientação analítica. Rev. bras. psicoter. 2020;22(2):101-113
Relato de Caso
Com que roupa eu vou? - Um caso de patologia da identidade em psicoterapia de orientação analítica
What clothes should I wear? - A identity pathology case in psychotherapy analytical oriented
¿Con qué ropa voy? - Un caso de patología de la identidad en psicoterapia de orientación analítica
Larissa Ferreira Rios; Tais Biazus; Paulo Silva Belmonte de Abreu
Resumo
Abstract
Resumen
INTRODUÇÃO
Para uma melhor compreensão do caso apresentado neste trabalho, há de se diferenciar alguns conceitos fundamentais. Alguns termos frequentemente empregados na literatura psicoterápica e na prática clínica, muitas vezes empregados como sinônimos, apresentam particularidades conceituais importantes. Caráter e personalidade são termos usados, frequentemente, de maneira intercambiável, sendo que caráter é mais comum na linguagem psicodinâmica, enquanto personalidade é mais utilizado na psiquiatria clínica1. Alguns autores, incluindo Freud, usavam ambos os vocábulos como sinônimos.
Freud (1913) definiu caráter como sendo um sistema de defesas que alcança o seu objetivo por meio de um padrão persistente de funcionamento. Ele reforçou que o ego só conseguiria renunciar a objetos importantes introjetando-os ou identificando-se com eles2. Sendo assim, caráter seria o padrão de defesas característico de um indivíduo, do qual lança mão para se adaptar, considerando os impulsos internos e as forças ambientais externas3.
Cloninger e colaboradores (1993) desenvolveu um modelo psicológico de personalidade no qual considera que 50% da personalidade seria atribuída ao caráter, e os outros 50%, ao temperamento. Nesse modelo, o caráter seria bastante influenciado por fatores ambientais, e o temperamento, por variáveis genéticas4, ou seja, as características natas3.
Quando nos referimos à personalidade, estamos nos referindo a padrões de comportamentos, cognições, emoções e formas de se relacionar característicos daquele indivíduo5. Esse estilo de funcionamento pode variar dentro de um espectro que vai desde a presença de "traços de personalidade", os quais podem ser bem adaptativos, até transtornos de personalidade, em que a forma de funcionamento torna-se mal adaptativa e causa sérios prejuízos ao indivíduo.
Otto Kernberg dividiu conceitualmente a patologia da personalidade em dois níveis de organização,o nível neurótico e o nível borderline, usando como base a gravidade da patologia estrutural. Para o autor, o nível neurótico caracterizar-se-ia por uma organização menos grave, com identidade normal, predominância de mecanismos de defesa mais maduros (baseadas em repressão), e por teste de realidade intacto. Já a organização borderline apresentar-se-ia como uma patologia de identidade clinicamente significativa, com predominância de operações defensivas mais primitivas (cisão), além de teste de realidade prejudicado5,6,7.
A etimologia da palavra identidade (idem + entidade) faz alusão a uma entidade que mantém uma constância. A aquisição de um sentimento de identidade coeso e harmônico resultaria do reconhecimento e da elaboração das diversas identificações parciais que, desde o início de seu desenvolvimento, foram se incorporando ao sujeito pela introjeção do código de valores dos pais e da sociedade1. Trata-se do conjunto de crenças, valores, ideias e gostos que tornam o sujeito distinto dos demais.
Self costuma ser definido como "a essência do indivíduo", mas falta um acordo consensual sobre o que seria essa essência. Hartmann (1939) apud Zimerman1 esclarece que, até há algum tempo, as palavras ego e self eram utilizadas de forma indistinta, ainda que com alguma sobreposição conceitual entre ambas, agravada por eventuais falhas de tradução dos textos originais. Freud utilizava de forma intercambiável os conceitos de ego e self. Quando utilizava Ich (eu) descrevendo suas relações com o superego e o id, referia-se ao ego, quando utilizava Ich em oposição ao objeto, referia-se ao self. Com Hartmann, o vocábulo ego passa a designar uma das instâncias psíquicas, sendo apenas uma importante subestrutura da personalidade, tal como foi descrita por Freud. O termo self foi conceituado como a "imagem de si mesmo" sendo composto de estruturas, entre as quais consta não somente o ego, mas também o id, o superego e, inclusive, a imagem do corpo, ou seja, a personalidade total.
Diversos autores, ao longo da história da psicanálise, dissertaram sobre a importância das primeiras relações do bebê com os objetos cuidadores, em especial com a mãe, para a formação de um self saudável. Também ressaltaram a importância de cuidadores sensíveis e com capacidade de perceber o mundo interno do bebê, devolvendo a ele, de forma afetuosa, seus sentimentos decodificados, de maneira adequada e tranquilizadora.
Freud julgava essencial a presença de outras pessoas no desenvolvimento do pensamento. Para ele, "os outros" são a principal fonte de satisfação, e o ser humano aprende a conhecer-se na relação com o outro ser humano. Em "Formulações Sobre os Dois Princípios do Funcionamento Mental" (1911),o autor propõe que o pensamento (mente) desenvolve-se a partir da frustração de um desejo e da necessidade de esperar pela satisfação. Ele postulava que o bebê com fome, na ausência do seio materno e na vigência do princípio do prazer, apelaria para um mecanismo de defesa mágico-onipotente de sugar o próprio polegar como se fosse o seio nutridor, realizando o que chamou de "satisfação alucinatória do desejo". Contudo, por não ter realmente sua fome saciada com esse recurso, o bebê desenvolveria o princípio da realidade. A "alucinação do seio materno", na ausência da mãe, daria origem ao pensamento, que seria, em última medida, a transformação de algo nãomental (as pulsões) em algo mental pela simbolização (ego/mente). O desenvolvimento do pensamento e da mente permitiria adquirir a capacidade de tolerar, esperar e adiar as satisfações9.
Melanie Klein deu uma importância fundamental ao papel dos impulsos instintivos, principalmente ao da agressividade instintiva, nos conflitos psíquicos10,11, assim como Freud acreditava na dualidade das pulsões (vida e morte), salientando a agressividade inata como a principal manifestação da pulsão de morte12. O autor defendeu que o self da criança estaria constantemente ameaçado pela destruição por impulsos agressivos que ameaçariam a sua integridade mental. Por meio da utilização da identificação projetiva, a criança conseguiria livrar-se de sua agressividade, projetando-a para dentro do objeto (a mãe), protegendo, dessa maneira, seu ego da destrutividade. A identificação projetiva funcionaria como uma tentativa de expulsar, de forma coerente, partes inaceitáveis do ego. A autora descreve a maneira como mães com maturidade psicológica seriam capazes de absorver tais projeções e transmiti-las como uma experiência psicológica tolerável12. Já crianças expostas a mães com dificuldades psicológicas seriam confrontadas com níveis intoleráveis de hostilidade e confusão, sendo obrigadas a internalizar aspectos que são incapazes de integrar. Dessa maneira, a interação entre mãe e bebê daria origem a duas formas básicas de funcionamento para lidar com esses impulsos, a posição esquizoparanoide e a depressiva.
Segundo Bion, assim como Freud e Klein, o desenvolvimento da mente da criança exigiria a presença de outra mente humana com capacidade de dar significado à experiência. Bion (1959, 1961) falou das angústias vivenciadas pelo bebê em seus primeiros dias de vida. A dor, o desprazer e as frustrações seriam vivenciados como sentimentos aterrorizantes,em que o bebê, sem ter aparelho mental suficiente para metabolizá-los, dependeria da capacidade continente da mãe. Tais blocos brutos de dores mentais não compreendidas (elementos beta) seriam projetados para dentro da mãe, que teria a função de contê-los, para pensar neles, e devolvê-los ao bebê de uma maneira modificada, mais conhecida, tolerável e assimilável para ele (elementos alfa). Para tanto, a mãe necessitaria de um estado mental chamado "Revêrie" (termo em francês, do português sonha, devanear), isto é, um estado mental intuitivamente receptivo e tolerante, "aberto a receber quaisquer identificações projetivas do bebê, sejam elas sentidas como boas ou como más"13.
Winnicot (1970) dissertou acerca da formação do self e de como, por falhas no processo de maturação, poderia se formar um self menos saudável, o "falso self ". Dizia ele que o self era constituído de partes integradas, ajudadas, no início, pelo meio ambiente17. O self, idealmente, chegaria a um estado de organização que uniria a incorporação de representações mentais da mãe com o seu próprio eu, formando uma realidade psíquica interna viva. Para o autor a organização psíquica modificar-se-ia de acordo com as expectativas dos pais e de outras pessoas importantes para o indivíduo. Tal processo implicaria uma diferenciação entre eu e não eu numa crescente integração, até que o indivíduo forme uma imagem unificada de si mesmo e do mundo exterior. Isso aconteceria a partir de um ambiente suficientemente bom, proporcionado por uma mãe suficientemente boa, que possibilitaria o desenvolvimento de potencialidades de um self rudimentar, que já existiria desde o nascimento, embora extremamente frágil.
Para Winnicott (1960), o verdadeiro self seria o que resulta de a mãe ter aceitado os gestos espontâneos da criança. Nos casos em que a mãe não tem capacidade para entender e satisfazer às necessidades do filho, ela colocaria seu próprio gesto, submetendo, assim, a criança a ela, o que começaria a gerar um falso self 18:
"São o self e a vida do self que, sozinhos, fazem sentido da ação ou do viver desde o ponto de vista do indivíduo que cresceu até ali e está continuando a crescer, da dependência e da imaturidade para a independência e a capacidade de identificar-se com objetos amorosos maduros, sem perda da identidade individual." (1960, p. 210)
(falando sobre situação de briga com uma amiga)
T: Como te sentiu com essa situação?
P: Ah, não sei! Droga, essa unha já está estragada! Aquela manicure é muito estúpida! Eu disse para ela como eu gosto a minha cutícula, tem que tirar bem pertinho da raiz, senão em 2 dias está feia, mas ela é tão burra que não consegue fazer como eu mando! Dá tanta raiva que tenho vontade de pegar um alicate e cravar, cravar, cravar na cabeça dela até destruir todo o cérebro daquela imbecil!
P: Tenho tanta raiva da minha empregada que não limpa as coisas do jeito certo que um dia vou arrancar todos os órgãos dela! Ela que não fique sozinha comigo! Tenho vontade de amarrar ela em um pau e açoitar. Olha que sou contra a escravidão, mas ela está merecendo!
P: Talvez eu tenha tanto medo que não gostem de mim porque já fui rejeitada. Fui doada. Nem a minha mãe me quis. Acho que isso pode ter ficado assim no meu inconsciente.
T: O que tu pensas sobre a tua adoção?
P: Olha, que algo de muito ruim tinha nessa história. Acho que uma mãe que dá um filho só pode ser ruim ou doente mental! Ela me deu nas primeiras horas já. Eu sei que ela era pobre e que meu pai biológico era alcoolista. Ela devia fazer faxinas por aí. Acho que ela fez um favor em me doar! Se bem que teria sido melhor ficar lá, assim eu pelo menos seria obrigada a trabalhar e talvez não fosse tão incapaz. Estaria limpando casas ou sendo garçonete, não sei, mas pelo menos mais ativa, feliz.
P: Só tenho medo de ficar igual a ela (mãe biológica). Dizem que, para saber como a guria vai ser no futuro, é só olhar para a mãe dela! Nem quero conhecer!!
T: Curioso que a imagem que tens dela é de doente mental ou má. Só te sobrariam essas duas opções?
P: Faz sentido né? Acho que sou louca e má. Não sei se vou poder fugir disso!
P: Raras vezes ela (mãe adotiva) consegue me acalmar. Nunca entende o que eu preciso. Ela não entende o que combina comigo. Traz presente rosa sendo que eu queria o azul. Até hoje é assim! Ela, muitas vezes, me deixa mais nervosa ainda! Me irrito de ela não saber o que eu gosto.
P: Minha mãe se veste bem, ela sabe o que está na moda. Ela e o pai são os únicos que se preocupam comigo. Se não fossem eles, eu não estaria mais aqui! Mesmo com a idade avançada, vivem se preocupando comigo, querendo me ajudar, gastando comigo em cursos que não consigo terminar, em roupas e salão que nunca me satisfazem.
P: Esse fim de semana foi bem legal. Minha amiga ficou comigo lá em casa, jantamos juntas, passeamos à tarde. Acho que fiquei feliz por ela ter me aguentado mesmo.
T: Tu tens a ideia de que as pessoas não vão te aguentar? P: É... Pelo menos não por muito tempo. T: E talvez tu tenhas pensado que eu também não fosse te aguentar depois das faltas.
P: O Dr. A., quando eu estava faltando, disse que ia ter que me passar pra outro psiquiatra, porque achava que o tratamento não estava mais dando certo. Eu fiquei chocada! Fiquei bem mal! Eu não estava mesmo indo. Faltava quando precisava. Tenho dificuldade com horários. Eu sempre tive problemas com isso. Quando vai chegando a hora de sair, eu começo a me enrolar. Fico nervosa, principalmente com isso de não saber que roupa pôr! Daí meus pais começam a ir no quarto dizer: "Vamos, M, já são tantas horas. Vais te atrasar!". Aí sim que eu fico nervosa. Dá um desespero. Que droga ter que levantar! Uma coisa de criança sabe? Vontade de ficar debaixo das cobertas!
T: Parece que sim. Parece que é assim que ainda hoje tu te sentes, como uma criança. Te dá vontade de te esconder debaixo das cobertas.
P: É verdade. Meu pai diz que pareço uma criança, que até voz de criança eu faço. Mas eu não percebo. Começo a fazer birra e pirraça. Quero que eles me ajudem, mas daqui a pouco até eles vão desistir de mim.
T: Também ficas com medo que eu possa desistir de ti?
P: Sim. Sei que tem coisas que eu não devia fazer, que tu não tens obrigação de aguentar minha falta de educação, mas quando vejo, já estou fazendo. Vem tanta angústia que preciso de uma resposta na hora, algo que me acalme!
P: Fui na minha ex-cunhada que teve bebê conhecer a criança. Fiquei com tanto medo de pegar ela no colo! A P insistiu para eu pegar, mas sabe quando a gente é pequena e a mãe não deixa pegar outro nenê de pé? Era assim, precisava ficar sentada com ela e quase sem me mexer, tinha medo que ela caísse, se machucasse. Fiquei pensando que nunca vou poder ser mãe! Não tenho condições de pegar um bebê no colo. Me deu um desespero só de pensar! E se ela chorar? Só de pensar ter de vestir aquela criança... Mal consigo me vestir, como vou vestir outra criança?
P: Na época em que eu namorava o J, a mãe dele me deu um anel que foi o primeiro presente que ela recebeu do marido. Ela me deu dizendo que eu era muito especial e por isso seria a pessoa ideal para guardar esta memória. Agora que nasceu a netinha dela, eu pensei que seria um momento legal de retribuir o carinho. Fiz um pacotinho e dei para a menininha. Achei bem legal, minha ex-sogra até chorou. Acho que aquele anel é bacana porque representa a história dela. O avô deu para a avó e de lá surgiu a família de onde ela veio. Mesmo que fosse um anel de plástico, seria legal!
T: Fiquei aqui pensando na tua história. De como, talvez, tu ficarias feliz de poder ter um anel que representasse a tua história, mesmo que fosse de plástico.
P: (Silêncio longo).
Acho que seria de latão o anel! Dá até medo de descobrir o que tem por trás da minha história. Mas talvez eu quisesse ter a mesma sorte da bebê.
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