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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2020; 22(2):101-113



Relato de Caso

Com que roupa eu vou? - Um caso de patologia da identidade em psicoterapia de orientação analítica

What clothes should I wear? - A identity pathology case in psychotherapy analytical oriented

¿Con qué ropa voy? - Un caso de patología de la identidad en psicoterapia de orientación analítica

Larissa Ferreira Rios; Tais Biazus; Paulo Silva Belmonte de Abreu

Resumo

O entendimento e tratamento das patologias da identidade representam grande desafio aos profissionais de saúde mental devido à complexidade e intensidade de sua apresentação. No presente estudo relatamos um caso típico de patologia da identidade, revisando teorias sobre formação do self, caráter, identidade, além da descrição de conceitos importantes para o entendimento e consequente discussão do mesmo.

Descritores: Psicologia do self; Psicoterapia; Teoria da mente; Transtorno de personalidade borderline

Abstract

The understanding and treatment of identity pathologies present a great challenge to mental health professionals due to the complexity and intensity of their presentation. In the present study we report a typical case of identity pathology, reviewing theories about self formation, character, identity, as well as the description of important concepts for understanding and consequent discussion of the case.

Keywords: Self psychology; Psychoterapy; Theory of mind; Borderline personality disorder

Resumen

El entendimiento y tratamiento de las patologías de la identidad representan un gran desafío a los profesionales de salud mental debido a la complejidad e intensidad de su presentación. En el presente estudio relatamos un caso típico de patología de la identidad, revisando teorías sobre formación del self, carácter, identidad, además de la descripción de conceptos importantes para el entendimiento y consecuente discusión del mismo.

Descriptores: Psicoterapia; Teoria de la mente; Psicología del self; Transtorno de personalidad borderlinex

 

 

INTRODUÇÃO

Para uma melhor compreensão do caso apresentado neste trabalho, há de se diferenciar alguns conceitos fundamentais. Alguns termos frequentemente empregados na literatura psicoterápica e na prática clínica, muitas vezes empregados como sinônimos, apresentam particularidades conceituais importantes. Caráter e personalidade são termos usados, frequentemente, de maneira intercambiável, sendo que caráter é mais comum na linguagem psicodinâmica, enquanto personalidade é mais utilizado na psiquiatria clínica1. Alguns autores, incluindo Freud, usavam ambos os vocábulos como sinônimos.

Freud (1913) definiu caráter como sendo um sistema de defesas que alcança o seu objetivo por meio de um padrão persistente de funcionamento. Ele reforçou que o ego só conseguiria renunciar a objetos importantes introjetando-os ou identificando-se com eles2. Sendo assim, caráter seria o padrão de defesas característico de um indivíduo, do qual lança mão para se adaptar, considerando os impulsos internos e as forças ambientais externas3.

Cloninger e colaboradores (1993) desenvolveu um modelo psicológico de personalidade no qual considera que 50% da personalidade seria atribuída ao caráter, e os outros 50%, ao temperamento. Nesse modelo, o caráter seria bastante influenciado por fatores ambientais, e o temperamento, por variáveis genéticas4, ou seja, as características natas3.

Quando nos referimos à personalidade, estamos nos referindo a padrões de comportamentos, cognições, emoções e formas de se relacionar característicos daquele indivíduo5. Esse estilo de funcionamento pode variar dentro de um espectro que vai desde a presença de "traços de personalidade", os quais podem ser bem adaptativos, até transtornos de personalidade, em que a forma de funcionamento torna-se mal adaptativa e causa sérios prejuízos ao indivíduo.

Otto Kernberg dividiu conceitualmente a patologia da personalidade em dois níveis de organização,o nível neurótico e o nível borderline, usando como base a gravidade da patologia estrutural. Para o autor, o nível neurótico caracterizar-se-ia por uma organização menos grave, com identidade normal, predominância de mecanismos de defesa mais maduros (baseadas em repressão), e por teste de realidade intacto. Já a organização borderline apresentar-se-ia como uma patologia de identidade clinicamente significativa, com predominância de operações defensivas mais primitivas (cisão), além de teste de realidade prejudicado5,6,7.

A etimologia da palavra identidade (idem + entidade) faz alusão a uma entidade que mantém uma constância. A aquisição de um sentimento de identidade coeso e harmônico resultaria do reconhecimento e da elaboração das diversas identificações parciais que, desde o início de seu desenvolvimento, foram se incorporando ao sujeito pela introjeção do código de valores dos pais e da sociedade1. Trata-se do conjunto de crenças, valores, ideias e gostos que tornam o sujeito distinto dos demais.

Self costuma ser definido como "a essência do indivíduo", mas falta um acordo consensual sobre o que seria essa essência. Hartmann (1939) apud Zimerman1 esclarece que, até há algum tempo, as palavras ego e self eram utilizadas de forma indistinta, ainda que com alguma sobreposição conceitual entre ambas, agravada por eventuais falhas de tradução dos textos originais. Freud utilizava de forma intercambiável os conceitos de ego e self. Quando utilizava Ich (eu) descrevendo suas relações com o superego e o id, referia-se ao ego, quando utilizava Ich em oposição ao objeto, referia-se ao self. Com Hartmann, o vocábulo ego passa a designar uma das instâncias psíquicas, sendo apenas uma importante subestrutura da personalidade, tal como foi descrita por Freud. O termo self foi conceituado como a "imagem de si mesmo" sendo composto de estruturas, entre as quais consta não somente o ego, mas também o id, o superego e, inclusive, a imagem do corpo, ou seja, a personalidade total.

Diversos autores, ao longo da história da psicanálise, dissertaram sobre a importância das primeiras relações do bebê com os objetos cuidadores, em especial com a mãe, para a formação de um self saudável. Também ressaltaram a importância de cuidadores sensíveis e com capacidade de perceber o mundo interno do bebê, devolvendo a ele, de forma afetuosa, seus sentimentos decodificados, de maneira adequada e tranquilizadora.

Freud julgava essencial a presença de outras pessoas no desenvolvimento do pensamento. Para ele, "os outros" são a principal fonte de satisfação, e o ser humano aprende a conhecer-se na relação com o outro ser humano. Em "Formulações Sobre os Dois Princípios do Funcionamento Mental" (1911),o autor propõe que o pensamento (mente) desenvolve-se a partir da frustração de um desejo e da necessidade de esperar pela satisfação. Ele postulava que o bebê com fome, na ausência do seio materno e na vigência do princípio do prazer, apelaria para um mecanismo de defesa mágico-onipotente de sugar o próprio polegar como se fosse o seio nutridor, realizando o que chamou de "satisfação alucinatória do desejo". Contudo, por não ter realmente sua fome saciada com esse recurso, o bebê desenvolveria o princípio da realidade. A "alucinação do seio materno", na ausência da mãe, daria origem ao pensamento, que seria, em última medida, a transformação de algo nãomental (as pulsões) em algo mental pela simbolização (ego/mente). O desenvolvimento do pensamento e da mente permitiria adquirir a capacidade de tolerar, esperar e adiar as satisfações9.

Melanie Klein deu uma importância fundamental ao papel dos impulsos instintivos, principalmente ao da agressividade instintiva, nos conflitos psíquicos10,11, assim como Freud acreditava na dualidade das pulsões (vida e morte), salientando a agressividade inata como a principal manifestação da pulsão de morte12. O autor defendeu que o self da criança estaria constantemente ameaçado pela destruição por impulsos agressivos que ameaçariam a sua integridade mental. Por meio da utilização da identificação projetiva, a criança conseguiria livrar-se de sua agressividade, projetando-a para dentro do objeto (a mãe), protegendo, dessa maneira, seu ego da destrutividade. A identificação projetiva funcionaria como uma tentativa de expulsar, de forma coerente, partes inaceitáveis do ego. A autora descreve a maneira como mães com maturidade psicológica seriam capazes de absorver tais projeções e transmiti-las como uma experiência psicológica tolerável12. Já crianças expostas a mães com dificuldades psicológicas seriam confrontadas com níveis intoleráveis de hostilidade e confusão, sendo obrigadas a internalizar aspectos que são incapazes de integrar. Dessa maneira, a interação entre mãe e bebê daria origem a duas formas básicas de funcionamento para lidar com esses impulsos, a posição esquizoparanoide e a depressiva.

Segundo Bion, assim como Freud e Klein, o desenvolvimento da mente da criança exigiria a presença de outra mente humana com capacidade de dar significado à experiência. Bion (1959, 1961) falou das angústias vivenciadas pelo bebê em seus primeiros dias de vida. A dor, o desprazer e as frustrações seriam vivenciados como sentimentos aterrorizantes,em que o bebê, sem ter aparelho mental suficiente para metabolizá-los, dependeria da capacidade continente da mãe. Tais blocos brutos de dores mentais não compreendidas (elementos beta) seriam projetados para dentro da mãe, que teria a função de contê-los, para pensar neles, e devolvê-los ao bebê de uma maneira modificada, mais conhecida, tolerável e assimilável para ele (elementos alfa). Para tanto, a mãe necessitaria de um estado mental chamado "Revêrie" (termo em francês, do português sonha, devanear), isto é, um estado mental intuitivamente receptivo e tolerante, "aberto a receber quaisquer identificações projetivas do bebê, sejam elas sentidas como boas ou como más"13.

Winnicot (1970) dissertou acerca da formação do self e de como, por falhas no processo de maturação, poderia se formar um self menos saudável, o "falso self ". Dizia ele que o self era constituído de partes integradas, ajudadas, no início, pelo meio ambiente17. O self, idealmente, chegaria a um estado de organização que uniria a incorporação de representações mentais da mãe com o seu próprio eu, formando uma realidade psíquica interna viva. Para o autor a organização psíquica modificar-se-ia de acordo com as expectativas dos pais e de outras pessoas importantes para o indivíduo. Tal processo implicaria uma diferenciação entre eu e não eu numa crescente integração, até que o indivíduo forme uma imagem unificada de si mesmo e do mundo exterior. Isso aconteceria a partir de um ambiente suficientemente bom, proporcionado por uma mãe suficientemente boa, que possibilitaria o desenvolvimento de potencialidades de um self rudimentar, que já existiria desde o nascimento, embora extremamente frágil.

Para Winnicott (1960), o verdadeiro self seria o que resulta de a mãe ter aceitado os gestos espontâneos da criança. Nos casos em que a mãe não tem capacidade para entender e satisfazer às necessidades do filho, ela colocaria seu próprio gesto, submetendo, assim, a criança a ela, o que começaria a gerar um falso self 18:


"São o self e a vida do self que, sozinhos, fazem sentido da ação ou do viver desde o ponto de vista do indivíduo que cresceu até ali e está continuando a crescer, da dependência e da imaturidade para a independência e a capacidade de identificar-se com objetos amorosos maduros, sem perda da identidade individual." (1960, p. 210)


Bowlby (1969), em sua teoria do apego, postulava uma necessidade humana universal do ser humano em formar laços estreitos. Estudando comportamento de animais e bebês, ele defendia que a função primordial do apego (busca por sorriso, proximidade, agarramento) era assegurar que os bebês fossem protegidos dos predadores14. Porém, nos humanos, o apego parece ser muito mais do que um instinto de preservação da espécie, mas uma experiência de segurança. O sistema de apego seria um regulador da experiência emocional15.

Mais recentemente, Fonagy (1998) desenvolveu o conceito da mentalização, inspirado na teoria do apego de Bowlby e baseado nos conceitos teóricos dos autores psicanalíticos citados anteriormente. O autor descreve a mentalização como a capacidade de o indivíduo perceber seu estado mental e o dos outros. Tal capacidade, segundo ele, desenvolver-se-ia na relação com os objetos cuidadores. A capacidade da mãe de pensar sobre a mente do seu bebê facilitaria uma relação de apego segura e daria ao indivíduo adulto uma melhor capacidade de mentalizar16. Todas essas teorias ressaltam a importância do vínculo com a mãe e a sua capacidade de entender o mundo interno do bebê como cruciais para a formação de um self saudável.


UM CASO DE "NÃO SELF"?

M é uma paciente de 28 anos que iniciou tratamento psicoterápico em maio de 2015. M é uma moça bonita, com traços delicados, cabelos lisos e tratados, magra e com altura aproximada de 1,7 metros. O primeiro contato ocorreu pelo pai, que andava muito preocupado e já sem esperanças em relação à saúde mental da filha. A moça, que, desde muito pequena, frequentava psicólogos e psiquiatras por dificuldades nas relações afetivas, agora se apresentava seriamente deprimida e mais agressiva do que costumava ser.

Na primeira entrevista com a paciente, ela contou ser filha adotiva da família. Os pais adotivos tiveram problemas de fertilidade e adotaram as duas filhas, em anos consecutivos, quando já tinham cerca de 45 anos. A família possuía boa situação financeira e pôde oferecer às filhas boas condições de estudo e moradia. M estudou em escolas tradicionais de sua cidade e, embora muito inteligente, repetiu de ano no ensino médio.

Graduou-se no curso de Administração em universidade particular, o qual levou oito anos para concluir. Atribui suas dificuldades nos estudos a "crises pessoais".

Apesar da aparente boa estrutura da qual M dispunha, seu rendimento ficava aquém do esperado. Apresentava grande dificuldade de iniciar a vida profissional, pois sentia-se incapaz e burra. Não se mantinha em atividades laborais e mostrava-se apreensiva quanto às suas possibilidades de ser funcional em algum momento da vida.

Nos relacionamentos, mostrava pouca habilidade. Apresentava intensa dificuldade de manter relações interpessoais saudáveis e estáveis, trocando inúmeras vezes de grupos de amigos devido a desentendimentos. Qualquer desapontamento soava como traição, e ela reagia afastando-se, considerando que as pessoas iriam querer apenas se aproveitar do seu dinheiro. Teve um namorado com o qual esteve por 7 anos, entre os 18 e os 25 anos. Esserelacionamento é descrito pela paciente como uma relação paternal. Sentia-se cuidada com J e dizia que ele era capaz de tolerar suas crises.

Tinha discussões intensas e frequentes com os pais e a irmã, os quais, ora descrevia como insensíveis e incapazes de compreender seus sentimentos, ora como seus "únicos amores", preocupados e esforçados em agradá-la. Quando das discussões, ameaçava suicídio e até homicídio, embora nunca tivesse, de fato, feito alguma tentativa. Tal comportamento deixava os pais bastante assustados, trazendo-os ao consultório em duas ocasiões, a fim de se tranquilizarem acerca dos potenciais riscos da filha.

Os primeiros meses de tratamento foram de intensas reações emocionais, tal como aparecia o padrão de relacionamentos da paciente. A frequência das sessões era de duas vezes por semana. No entanto, faltas e atrasos eram a regra e deixavam a terapeuta com sensação de impotência diante do sofrimento "inalcançável" da paciente. A impressão era de que a relação terapêutica, que mal havia iniciado, estava sempre ameaçada a terminar. Ela pedia para trocar os horários, solicitava atendimento domiciliar, telefonemas em horários inadequados para fazer ameaças de suicídio e de que mataria os pais, entre outras tentativas de quebra do setting terapêutico.

O formato de relação proposto pela paciente foi o mesmo com o qual ela estava acostumada: sem regras, sem limites, sem poder considerar o outro como alguém com sentimentos e limitações. Impôs-se, então, a necessidade de um contrato claro, com limites estabelecidos quanto a ligações, faltas, tom de voz nas sessões etc. Essa medida foi o que possibilitou a continuidade do tratamento.

Sua queixa inicial mais frequente era a impossibilidade de vestir-se. Apesar das boas condições financeiras da família, ela não conseguia escolher peças que julgasse combinar consigo mesma. Algumas vezes, no horário da sessão, telefonava para a terapeuta e relatava estar desesperada após o banho, olhando para o guarda-roupa, sem conseguir escolher o que vestir. Por isso, ela começou a contar com auxílio de uma prima que trabalhava com moda, a qual montava combinações e deixava fotos sugerindo em que situações usá-las.

Vinheta 1 P:

Fico desesperada! Eu não tenho roupa! Aquele monte de roupas não serve para nada! Nada fica bem em mim! Não sei me vestir! Simplesmente não consigo olhar para uma roupa e achar que ela vai ficar bem em mim! Não sei o que combina com o quê, se está frio ou calor, se precisa se arrumar melhor ou pior!

Vinheta 2 P:

Quando me olho no espelho, fico em pânico! Não sei o que vestir! Tenho lavado o cabelo no salão pra não precisar me olhar no espelho na hora de secar. Tenho evitado ir ao shopping, pois sei que terei de olhar no espelho e me dá um desespero.

Nessas vinhetas, fica evidente o sofrimento da paciente diante da ausência de uma autoimagem. A dificuldade parece não ser exatamente o "não tenho roupa", e sim "quem eu sou?", ou ainda "será que existo?". O rechaço ao espelho, que, historicamente, agrada tanto às mulheres e é sinal de vaidade, alude à intensa sensação de vazio. A impressão ao ouvi-la falar do espelho era que, se ela olhasse, não veria nada refletido. Este parecia ser o maior medo da paciente: o medo de não existir.

Outro aspecto marcante em seu comportamento eram as reações agressivas. Qualquer situação em que se sentisse ameaçada despertava reações extremas, que, embora repletas de fantasias agressivas e sádicas, eram tão infantis que soavam inofensivas. Como poderíamos esperar, tal agressividade, muitas vezes, aparecia no setting sob forma de acusações e cobranças, na tentativa de resistir ao trabalho psicoterápico. Esse comportamento servia à sua dificuldade de pensar emocionalmente.

Vinheta 3:

(falando sobre situação de briga com uma amiga)
T: Como te sentiu com essa situação?
P: Ah, não sei! Droga, essa unha já está estragada! Aquela manicure é muito estúpida! Eu disse para ela como eu gosto a minha cutícula, tem que tirar bem pertinho da raiz, senão em 2 dias está feia, mas ela é tão burra que não consegue fazer como eu mando! Dá tanta raiva que tenho vontade de pegar um alicate e cravar, cravar, cravar na cabeça dela até destruir todo o cérebro daquela imbecil!

Vinheta 4:

P: Tenho tanta raiva da minha empregada que não limpa as coisas do jeito certo que um dia vou arrancar todos os órgãos dela! Ela que não fique sozinha comigo! Tenho vontade de amarrar ela em um pau e açoitar. Olha que sou contra a escravidão, mas ela está merecendo!

A agressividade parece ser a reação mais familiar à paciente. O medo de aproximar-se das pessoas e de correr o risco de ter suas expectativas frustradas fazia-a agir com agressividade, como forma de manter as pessoas distantes. Além disso, a ideia de ser extremamente agressiva e capaz de destruir as relações forçava-a (inconscientemente) a manter-se distante dos outros, a fim de proteger as pessoas de tal destruição. Na relação terapêutica, a agressividade servia para protegê-la de aproximar-se da posição depressiva, e também para proteger a relação com a terapeuta, a qual, paradoxalmente, ficava impedida de ser aprofundada.

Vinheta 5:

P: Talvez eu tenha tanto medo que não gostem de mim porque já fui rejeitada. Fui doada. Nem a minha mãe me quis. Acho que isso pode ter ficado assim no meu inconsciente.
T: O que tu pensas sobre a tua adoção?
P: Olha, que algo de muito ruim tinha nessa história. Acho que uma mãe que dá um filho só pode ser ruim ou doente mental! Ela me deu nas primeiras horas já. Eu sei que ela era pobre e que meu pai biológico era alcoolista. Ela devia fazer faxinas por aí. Acho que ela fez um favor em me doar! Se bem que teria sido melhor ficar lá, assim eu pelo menos seria obrigada a trabalhar e talvez não fosse tão incapaz. Estaria limpando casas ou sendo garçonete, não sei, mas pelo menos mais ativa, feliz.

Nesse trecho, aparece a ambivalência em relação à sua adoção: a raiva da mãe biológica que não a pôde cuidar e a crítica à família adotiva, a qual, na visão negativa, tornou-a incapaz, dando tudo "de mão beijada". Talvez a perspectiva de ser feliz, caso tivesse permanecido com a família de origem, possa refletir o quanto o abandono e o consequente medo de tornar a ser abandonada traz sofrimento à M.

Vinheta 6:

P: Só tenho medo de ficar igual a ela (mãe biológica). Dizem que, para saber como a guria vai ser no futuro, é só olhar para a mãe dela! Nem quero conhecer!!
T: Curioso que a imagem que tens dela é de doente mental ou má. Só te sobrariam essas duas opções?
P: Faz sentido né? Acho que sou louca e má. Não sei se vou poder fugir disso!

Winnicott tem uma frase interessante a respeito do espelhamento da criança na mãe: "O primeiro espelho da criatura humana é o rosto da mãe, sobretudo o seu olhar. Ao olhar-se no espelho do rosto materno, o bebê vê a si mesmo [...] quando olho sou visto, logo existo. Posso agora me permitir olhar e ver"9. Podemos pensar em uma possível falha no processo de formação de uma identidade normal. A imagem da mãe biológica, que nunca teve e nunca terá, é desvalorizada, distorcida, considerada totalmente má. Essa ausência dificultou a possibilidade de ter uma identificação real, portanto ela teve de inventar uma M "má" - falso self. Uma mãe que não olhou para o seu bebê com empatia, não compreendeu suas necessidades e, por isso, deu-o para que outra mãe fizesse esse papel. Para M, parece ter ficado uma marca importante dessa fase. Talvez o medo da não existência venha da falta do olhar da mãe. O sentimento de não entender de onde vem parece ser superado, pela ideia de ter vindo de um "lugar" muito ruim, o qual, para ela, será determinante de toda sua vida.

Vinheta 7:

P: Raras vezes ela (mãe adotiva) consegue me acalmar. Nunca entende o que eu preciso. Ela não entende o que combina comigo. Traz presente rosa sendo que eu queria o azul. Até hoje é assim! Ela, muitas vezes, me deixa mais nervosa ainda! Me irrito de ela não saber o que eu gosto.

Vinheta 8:

P: Minha mãe se veste bem, ela sabe o que está na moda. Ela e o pai são os únicos que se preocupam comigo. Se não fossem eles, eu não estaria mais aqui! Mesmo com a idade avançada, vivem se preocupando comigo, querendo me ajudar, gastando comigo em cursos que não consigo terminar, em roupas e salão que nunca me satisfazem.

Aparece a cisão que a paciente faz dos pais, ora como "todo bons", ora como "todo ruins". A mãe, de maneira geral, é vista como alguém que sabe se vestir, ou seja, alguém com identidade clara. Porém, apesar disso, ela é sentida por M como alguém que tem dificuldade de entender o seu mundo interno, incapaz de acalmála, da mesma forma que o terapeuta, que, muitas vezes, sente-se como incapaz de tratá-la adequadamente. Após alguns meses de tratamento, já afrouxadas as resistências, começa a aparecer a fragilidade.

Vinheta 9:

P: Esse fim de semana foi bem legal. Minha amiga ficou comigo lá em casa, jantamos juntas, passeamos à tarde. Acho que fiquei feliz por ela ter me aguentado mesmo.
T: Tu tens a ideia de que as pessoas não vão te aguentar? P: É... Pelo menos não por muito tempo. T: E talvez tu tenhas pensado que eu também não fosse te aguentar depois das faltas.
P: O Dr. A., quando eu estava faltando, disse que ia ter que me passar pra outro psiquiatra, porque achava que o tratamento não estava mais dando certo. Eu fiquei chocada! Fiquei bem mal! Eu não estava mesmo indo. Faltava quando precisava. Tenho dificuldade com horários. Eu sempre tive problemas com isso. Quando vai chegando a hora de sair, eu começo a me enrolar. Fico nervosa, principalmente com isso de não saber que roupa pôr! Daí meus pais começam a ir no quarto dizer: "Vamos, M, já são tantas horas. Vais te atrasar!". Aí sim que eu fico nervosa. Dá um desespero. Que droga ter que levantar! Uma coisa de criança sabe? Vontade de ficar debaixo das cobertas!
T: Parece que sim. Parece que é assim que ainda hoje tu te sentes, como uma criança. Te dá vontade de te esconder debaixo das cobertas.
P: É verdade. Meu pai diz que pareço uma criança, que até voz de criança eu faço. Mas eu não percebo. Começo a fazer birra e pirraça. Quero que eles me ajudem, mas daqui a pouco até eles vão desistir de mim.
T: Também ficas com medo que eu possa desistir de ti?
P: Sim. Sei que tem coisas que eu não devia fazer, que tu não tens obrigação de aguentar minha falta de educação, mas quando vejo, já estou fazendo. Vem tanta angústia que preciso de uma resposta na hora, algo que me acalme!

Vinheta 10:

P: Fui na minha ex-cunhada que teve bebê conhecer a criança. Fiquei com tanto medo de pegar ela no colo! A P insistiu para eu pegar, mas sabe quando a gente é pequena e a mãe não deixa pegar outro nenê de pé? Era assim, precisava ficar sentada com ela e quase sem me mexer, tinha medo que ela caísse, se machucasse. Fiquei pensando que nunca vou poder ser mãe! Não tenho condições de pegar um bebê no colo. Me deu um desespero só de pensar! E se ela chorar? Só de pensar ter de vestir aquela criança... Mal consigo me vestir, como vou vestir outra criança?

Quando ela fala de "vestir outra criança", fica evidente a sua autoimagem distorcida, a imagem de um bebê que mal consegue sobreviver sem auxílio. O medo do desamparo aparece também na comunicação das férias da terapeuta. Em sobressalto, a paciente diz: "Férias? E eu? Vou morrer?". A comparação, aqui, pode ser feita literalmente com um bebê que, se não alimentado, aquecido, higienizado em tempo integral pela mãe, morrerá. Após seis meses de tratamento, pela primeira vez, aparece a capacidade de simbolizar.

Vinheta 11:

P: Na época em que eu namorava o J, a mãe dele me deu um anel que foi o primeiro presente que ela recebeu do marido. Ela me deu dizendo que eu era muito especial e por isso seria a pessoa ideal para guardar esta memória. Agora que nasceu a netinha dela, eu pensei que seria um momento legal de retribuir o carinho. Fiz um pacotinho e dei para a menininha. Achei bem legal, minha ex-sogra até chorou. Acho que aquele anel é bacana porque representa a história dela. O avô deu para a avó e de lá surgiu a família de onde ela veio. Mesmo que fosse um anel de plástico, seria legal!
T: Fiquei aqui pensando na tua história. De como, talvez, tu ficarias feliz de poder ter um anel que representasse a tua história, mesmo que fosse de plástico.
P: (Silêncio longo).
Acho que seria de latão o anel! Dá até medo de descobrir o que tem por trás da minha história. Mas talvez eu quisesse ter a mesma sorte da bebê.



DISCUSSÃO DO CASO

O caso descrito evidencia falhas importantes na formação do self. Cabe pensarmos a dificuldade de vestirse como uma analogia à ausência de uma identidade estável. Embora as teorias brevemente descritas neste trabalho possam guiar o início da compreensão do caso, não há a pretensão de chegar a ideias conclusivas, porque o objetivo, em psicoterapia de orientação analítica, não é encontrar respostas, e sim alcançar mudanças.

Algumas questões que surgiram sobre o caso de M: teria a adoção, como um trauma precoce, influenciado a formação da psicopatologia? Poderíamos atribuir a patologia de identidade à dificuldade dos pais adotivos em formar um vínculo seguro, dificultando, assim, a introjeção de objetos bons e empáticos? Podemos atribuir a dificuldade da paciente à sua essência eminentemente agressiva e voraz, impossibilitando a aproximação com os pais adotivos e, consequentemente, a estruturação de sua mente? Poderíamos chamar esse caso de um "não self " pela aparente ausência de um sentido integrado de sentir-se alguém e reconhecer suas características e as dos outros? Poderia a paciente ter criado um falso self na tentativa de reparar suas falhas de identificação, no sentido "Winnicottiano", e M má seria uma invenção para proteger seu verdadeiro self frágil?

Talvez seja interessante pensarmos em uma participação de cada um desses aspectos na formação do self tão primitivo de M, o qual parece, em alguns momentos, não existir. A ausência de autorrepresentação e de representações integradas de partes boas e más dos objetos fazem pensar que esse caso, por tratar-se de um self tão rudimentar, possa mesmo ser classificado como "não self ". Essa argumentação apoia-se na angústia referida diante do espelho, sendo este considerado como aquilo que denunciaria sua não existência. Outro ponto fundamental é a incapacidade de sentir-se "eu" capaz de sobreviver separada de um objeto, mostrando a sua sensação de extrema fragilidade. Talvez a soma de três principais fatores - o abandono, os instintos agressivos e a impossibilidade de formar um vínculo seguro - possam estar na base do entendimento desse caso, embora não saibamos exatamente o peso que cada um deles possa ter tido.

No início do tratamento, apresentava-se um mundo interno tão caótico que precisaria, tal qual um bebê, de um terapeuta/mãe exercendo a função continente e que, ativamente, funcionasse como mente em muitos momentos, podendo pensar e entender seus sentimentos e, aos poucos, devolver as dores mentais de modo mais "metabolizável". Esse processo, assim como no bebê, é lento. Ao longo do tratamento, quando tudo parecia estar indo bem, o processo terapêutico era ameaçado pelas atuações da paciente. Estas foram reduzindo de intensidade e frequência, conforme ela foi adquirindo confiança de que não seria abandonada e de que a relação não estaria fadada ao fracasso se ela se aproximasse, emocionalmente, do terapeuta. O desafio maior era conter a forma como a mente de M, de maneira primitiva, comunicava suas emoções em vez de pensá-las, atuando-as e projetando, maciçamente, muitos aspectos maus e outros tantos idealizados no terapeuta.

Apesar das dificuldades encontradas, assim como um bebê desesperado em seus primeiros enfrentamentos de vida, o paciente estrutura-se com o aconchego de um ambiente terapêutico suficientemente bom. Fica evidente a importância do entendimento mais profundo sobre a formação da mente para que o desafio de reestruturação de self, na relação terapêutica, seja satisfatório.


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18. Winnicott DW. Mirror-role of mother and family in child development (1967) In: Playing and Reality London: Tavistock, 1971 (pp. 111-118)

Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Departamento de Psiquiatria - Porto Alegre - Rio Grande do Sul - Brasil










Correspondência

Larissa Ferreira
e-mail: larissarios@hotmail.com / E-mail alternativo: larissafrios@gmail.com

Submetido em: 08/05/2019
Aceito em: 01/07/2020

Contribuições:Larissa Ferreira Rios - Coleta de dados, metodologia, redação, preparação do original;
Tais Biazus - Redação, revisão e edição;
Paulo Silva Belmonte de Abreu - Redação, revisão e edição, supervisão.

Instituição: Hospital de Clínicas de Porto Alegre

 

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