Rev. bras. psicoter. 2020; 22(2):115-120
A psicanálise na formação dos profissionais de saúde mental. Rev. bras. psicoter. 2020;22(2):115-120
Comunicaçao breve
A psicanálise na formação dos profissionais de saúde mental
Psychoanalysis in the training of mental health professionals
El psicoanálisis en la formación de profesionales en salud mental
Resumo
Abstract
Resumen
Por um lado, a psicanálise foi, e continua sendo, um dos mais influentes movimentos médicos intelectuais na história da humanidade1, com profundas e indeléveis repercussões na cultura ocidental. Por outro lado, contudo, a sua influência na prática da área da saúde mental, depois de décadas de grande impacto, tem vindo a diminuir. Atualmente a psicanálise está mesmo, e desde há algumas décadas, marginalizada e a lutar pela sua sobrevivência em meios institucionais hostis, sejam eles clínicos ou académicos2. Muitas vezes, também, porque as próprias instituições psicanalíticas, durante muito tempo, se isolaram e hostilizaram esses outros meios institucionais.
Diversos fatores poderão ter contribuído para o declínio da influência da psicanálise na área da saúde mental.Desde logo porque, ademais de ser um tratamento demorado e dispendioso, a sua cientificidade é, desde há anos, colocada em causa.
Tentando combater este ostracismo e esta posição, mais ainda num tempo em que se advogam "intervenções baseadas na evidência", tem-se observado um esforço, por parte de vários psicanalistas e investigadores,na tentativa de comprovar a eficácia de psicoterapias psicanalíticas ou psicodinâmicas de curta e de longa duração3-7. Os estudos relativos à eficácia da psicanálise são, todavia, raros, para tal contribuindo o fato de a diminuição ou o desaparecimento de um sintoma ser uma medida demasiado grosseira para avaliar um processo interpessoal tão complexo, intensivo e prolongado como é uma psicanálise3.
Daí que interesse, também,salientar que se alguns psicanalistas realizam estudos de eficácia de acordo com o paradigma positivista dominante, outros há que se colocam numa outra perspetiva, mais pós-moderna, que enfatiza a subjetividade.
No primeiro grupo, além de Peter Fonagy4 e Falk Leichesenring6,7, encontramos muitos outros investigadores, como Mark Solms8 ou Benjamin Libet9,que, ademais de tentarem avaliar os resultados de intervenções terapêuticas de orientação psicanalítica, dirigem os seus estudos para os mais recentes achados imagiológicos relacionados com a neuroplasticidade, numa tentativa de encontrar e demonstrar a existência de bases anatomofisiológicas para as teorias e conceitos psicanalíticos.
Neste grupo, Fonagy3 advoga, ainda, a integração de psicanalistas em equipas multidisciplinares de investigação, não para testar a teoria psicanalítica mas sim para identificar os mecanismos mentais que estão na base dos fenômenos descritos pela psicanálise. E chega mesmo a afirmar que a psicanálise, para ser levada a sério, como uma ciência de estudo da mente, deve envolver-se em estudos laboratoriais sistemáticos, em estudos epidemiológicos e também em investigações qualitativas das ciências sociais.
No segundo grupo (aquele que enfatiza a subjetividade e que integra alguns autores que nem sequer advogam a classificação da Psicanálise como ciência) começa-se por definir, desde logo, que a psicanálise não pode reger-se pelos métodos de investigação criados dentro de um paradigma que não é, de todo, o da Psicanálise. Se o paradigma psicanalítico é outro, os métodos de investigação deverão ser outros, também.
Nesse sentido, o reconhecimento dos aportes que as investigações experimentais e imagiológicas atráscitadas têm trazido, com resultados que apontam para o facto de as psicoterapias moldarem e alterarem aanatomofisiologia cerebral,vem dar suporte à ideia de que as relações interpessoais moldam e alteram a anatomofisiologia cerebral. E as relações têm especificidades individuais que se relacionam sobremaneira com a(s) subjetividade(s). Subjetividade que é, de fato, uma peça central na psicanálise10 e na prática psicanalítica, onde a procura da Verdade não é o objetivo, pois várias verdades podem ser encontradas em diferentes momentos e/ou em simultâneo. Ou seja, ainda que seguindo aquilo que podemos chamar de método razoavelmente científico, onde se colocam hipóteses que vão sendo testadas e validadas, ou não, pelo par analista/analisando, não procuramos a verdade objetiva.
A COMPREENSÃO DO SER HUMANO E DO SEU SOFRIMENTO
Mas então, como podemos nos manter fieis e convictos na defesa do papel da psicanálise num mundo dominado pelo paradigma positivista e com objetivos de classificar doenças e diminuir sintomas no mais curto período de tempo possível?
Foi Freud quem trouxe para a área da Psiquiatria e da Psicologia as chamadas doenças mentais mais prevalentes (como a depressão e a ansiedade), que anteriormente estavam "a cargo" da Medicina Interna ou da Neurologia. E tal só aconteceu porque Freud atentou ao sofrimento individual na base da manifestação sintomática e à compreensão desse sofrimento e da história de vida do (ou da) paciente na sua identidade.
Freud11,12 tentou, também ele, encontrar os correspondentes anatômicos para as suas teorias, chegando a colocar a hipótese de, no futuro, as suas teorias poderem ser objeto revisão por aquelas que agora chamamos de neurociências. Ainda que nem sempre corretos, à luz dos conhecimentos atuais, nos escritos de Freud, criador da primeiradas psicoterapias estruturadas em torno do discurso e da linguagem, continuamos a encontrar motivos para reflexão e compreensão do ser humano. Devemos, contudo, integrar as suas ideias no contexto científico-cultural da época em que foram elaboradas, sendo, por isso, compreensível que algumas estejam ultrapassadas e outros claramente erradas.
Outros autores, mais recentes, têm contribuído para o desenvolvimento da psicanálise, nomeadamente no campo do trabalho relacional e intersubjetivo. Mas se, por um lado, alguns aportes são verdadeiramente benéficos e avanços na compreensão do processo psicanalítico, outros, pela multiplicidade de conceitos (muitas vezes semelhantes) contribuem mais para que se instale alguma confusão e profusão de teorias e de técnicas que dificultam a integração de saberes e a sua transmissão.
Saliente-se, ainda, e a título de exemplo, que, depois de inúmeras críticas às teorias psicanalíticas e psicodinâmicas que alegadamente culpabilizariam as figuras paternas pela patologia dos seus filhos, se observa, atualmente, uma crescente investigação na área das dificuldades na infância como estando significativamente mais presentes em indivíduos que posteriormente, na idade adulta, desenvolvem uma diversidade de doenças mentais (desde psicoses a perturbações afetivas ou ansiosas).
Ainda que com as suas limitações a psicanálise deixou um legado significativo à Saúde Mental. Ensinou uma geração de psiquiatras e de psicólogos a compreender histórias de vida e a ouvir ativamente o que os pacientes diziam2. Escorados na psicanálise como uma teoria compreensiva (e não explicativa) na relação terapêutica vamos, muito mais do que o clássico "tornar consciente o inconsciente", co-construindo uma narrativa com o paciente. E é nesse caminho percorrido a dois que, numa era dominada pela neurociência, por listas de diagnósticos e por psicofármacos, temos que encontrar o lugar para reter a psicoterapia cujos conceitos básicos estão nos trabalhos de Freud e na base da psiquiatria e da psicologia modernas.
A PRIMAZIA DO RELACIONAL
Se pensarmos no desenvolvimento, que já decorre, de sistemas inteligentes (que aprendem a aprender) e que, na área médica, conseguem identificar a probabilidade da ocorrência de eventos específicos e de doenças, que avaliam da intervenção mais adequada para cada caso e até do estabelecimento de um prognóstico altamente individualizado; se associarmos a estes sistemas de inteligência artificial a possibilidade (já existente, mas em processo de crescente aperfeiçoamento) de automatização de atos médicos e cirúrgicos, poderíamos perspetivar o risco da quase inutilidade, num futuro mais ou menos próximo, das profissões ligadas à saúde, saúde mental incluída.
Ora, estes desenvolvimentos, inevitáveis, em vez de colocarem em risco a nossa profissão, pelo contrário, são uma oportunidade para que o profissional de saúde (e de saúde mental, por excelência) recupere o seu papel essencial (e definidor da profissão) na relação com o doente, uma vez que os sistemas de inteligência artificial não levam em conta a importância da relação terapêutica, limitando-se ao cumprimento de funções executivas.
A compaixão, a empatia, a sabedoria da experiência pessoal - por parte do técnico de saúde - e os conteúdos latentes relacionados com as emoções, as narrativas, os lapsos, as hesitações, as contradições e a ambivalência - por parte do paciente -, serão bem mais dificilmente percetíveis por modelos computacionais, uma vez que dependem da relação interpessoal estabelecida. E, no entanto, são fenômenos primordiais para a compreensão do ser humano e, consequentemente, para a prestação de cuidados. A complexidade do mundo psíquico do ser humano, não é traduzível no registo cognitivo e funcional dos sistemas inteligentes. A estes, ainda que analisem aprofundadamente o nível funcional, falta-lhes o significativo e fulcral mundo relacional, que constrói e modifica a identidade do ser humano13. E cuidar de um ser humano, na sua integridade e totalidade, só poderá ser concretizado (com a ajuda de toda a tecnologia possível) por um outro ser humano. E isto faz-se, por excelência na psicanálise, onde a relação tem um papel fundamental.
Daí que, agora, mais do que nunca, se deva investir na formação psicanalítica e psicoterapêutica. Para o autoconhecimento, é certo, mas sobretudo para melhor trabalhar na área da Saúde Mental, para compreender o sofrimento dos doentes e ajudá-los a lidar com ele, ao mesmo tempo que esta formação é uma ferramenta extremamente útil para a compreensão dos fenômenos institucionais e do mundo em que vivemos.
REFERÊNCIAS
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4. Fonagy P. The effectiveness of psychodynamic psychotherapy: un update. World Psychiatry. 2015;14(2):1137-1150. doi: 10.1002/wps.20235
5. Fonagy P, Lemma A. Does Psychoanalysis have a valuable place in modern mental health services? Yes. British Medical Journal. 2012 Feb 20;344:e1211. doi:10.1136/bmj.e1211
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8. Solms M. Dreaming and REM sleep are controlled by different brain mechanisms. Behavioral and Brain Sciences. 2000;23(6):843-850. doi: 10.1017/s0140525x00003988
9. Libet B. Uncouscious cerebral initiative and the role of conscious will in voluntary action. Behavioral and Brain Sciences. 1985;8:529-566. doi: 10.1017/S0140525X00044903
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11. Freud S. (1985). Projeto de uma psicologia científica. In S Freud, Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. I (pp. 333-468). Rio de Janeiro: Imago; 1996.
12. Freud S. (1938). Esboço de Psicanalise. In S Freud, Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. XXIII (pp. 151-221). Rio de Janeiro: Imago; 1996.
13. von Doellinger O. Inteligência artificial e psicanálise: do funcional e do relacional. Revista Portuguesa de Psicanálise. 2019;39(1):57-61.
Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa, Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental - Penafiel - Penafiel - Portugal
Correspondência
Orlando von Doellinger
e-mail: orlando.doellinger@chts.min-saude.pt / ovondoellinger@gmail.com
Submetido em: 15/01/2020
Aceito em: 10/06/2020
Contribuições: Investigação, Redação - Preparação do original, Redação - Revisão e Edição.
Instituição:Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa
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