Rev. bras. psicoter. 2020; 22(2):29-37
Gonçalves L, Rocha NS. A troca de psicoterapeuta e o impacto na condição global de pacientes em ambulatórios de residência em psiquiatria. Rev. bras. psicoter. 2020;22(2):29-37
Artigo de Revisao
A troca de psicoterapeuta e o impacto na condição global de pacientes em ambulatórios de residência em psiquiatria
The change of psychotherapist and the impact on the overall condition of patients in outpatient clinics in psychiatry
El cambio de psicoterapeuta y el impacto en el estado general de los pacientes en las clínicas ambulatorias en psiquiatría
Leonardo Gonçalves; Neusa Sica da Rocha
Resumo
Abstract
Resumen
INTRODUÇÃO
A psicoterapia de orientação analítica (POA) segue como modalidade de tratamento principal para os transtornos de personalidade de todos os níveis de gravidade1, apesar do surgimento de novas técnicas da terceira onda como mindfulness e terapia de aceitação e compromisso (chamadas terapias contextuais ou experienciais por se basear em essencialmente em técnicas de foco atencional no momento presente associado a postura de aceitaçãoe abertura à experiência, entre outros componentes2,3 e de outras tradicionais como a terapia cognitivo-comportamental (TCC) e terapia interpessoal (TIP). Sua base teórica e técnica é fundamentada a partir da psicanálise4. A POA na modalidade individual é uma ferramenta de tratamento para os casos mais complexos encaminhados da atenção primária, da interconsulta de outras áreas médicas e no tratamento de seguimento à internação psiquiátrica5. O pior prognóstico está relacionado a questões como comorbidades psiquiátricas e clínicas, abuso e dependência de substâncias, dificuldades financeiras e de acesso a serviços de saúde especializados, baixo suporte familiar e social5. Dada a complexidade do acompanhamento destes pacientes, o processo de transição para a troca de terapeuta pode se tornar um estressor adicional considerável por ocorrer por fatores externos ao tratamento, como por um protocolo das instituições de residência médica em psiquiatria6-10.
O tema da troca de terapeutas é relativamente pouco discutido na literatura. Em virtude disso, foi realizada pesquisa nas principais bases de dados tanto nacionais (BIREME e SCIELO) quanto internacionais (Medline, Lylacs e Scielo) com os seguintes termos: mudança, troca, interrupção, (psico)terapeuta, psicoterapia e seus correspondentes em inglês, encontrou-se apenas 10 artigos. O tema também é pouco abordado nos manuais de técnica psicanalítica, sendo geralmente discutido indiretamente nos capítulos que tratam do término da psicoterapia11,12. No trabalho de Lhullier et al7, um dos poucos estudos quantitativos do tema, o grupo revisou prontuários de pacientes que permaneceram em terapia e dos que abandonaram. O objetivo era saber que diferenças entre os pacientes contribuíram para que uma parte deles permanecesse em terapia. Observou-se que parte dos pacientes em que a troca de terapeuta foi realizada com um processo de adaptação com um coterapeuta provisoriamente até a designação do novo profissional, o índice de abandono foi significativamente menor (27 %) do que o grupo que não teve (49%) (x2=5,371 e p=0,02).
A troca também implica em uma série de modificações do setting, e na dinâmica do processo psicoterápico dos fenômenos de transferência, caracterizada pelo fenômeno ubíquo de experiências passadas do pacientes que afetam a relação atual com a terapeuta13, contratransferência, descrita como o conjunto de reações conscientes e inconscientes despertados no terapeuta em relação ao paciente e que podem ser usados pra compreensão do mesmo; resistências e término. Isso gera a necessidade do terapeuta estar atento e podendo relacionar as vicissitudes desta transição com a estrutura de personalidade do paciente, seu momento atual na ciclo vital, motivação e objetivos do tratamento7,9,14. Caso contrário, pode se deparar com um impasse ou abandono relacionado com a não elaboração do processo anterior11,15. Se manejado adequadamente, pode ser uma oportunidade para crescimento através de uma experiência emocional corretiva, em que o terapeuta ajuda o paciente através de seu relacionamento terapêutico a reparar experiências passadas traumáticas com figuras parentais intimidadoras, mostrando a ele mais tolerância e simpatia e incentivando sua autoafirmação16.
A partir da revisão da escassa literatura disponível descrita acima, com apenas 10 artigos entre periódicos nacionais e internacionais, e considerando a ausência de consenso sobre o tema, foram eleitas quatro questões mais relevantes observadas nestes estudos, abordando a troca de terapeuta. O objetivo deste trabalho visa realizar uma revisão narrativa abordando estas quatro questões norteadoras da troca de terapeuta e suas consequências para o processo terapêutico do paciente tanto do ponto de vista sintomático quanto psicodinâmico: 1) A troca como elemento que incrementa as dificuldades emocionais do paciente; 2) A troca vivenciada como abandono; 3) A troca intensificando a transferência; 4) O terapeuta como pessoa real.
1. A TROCA COMO ELEMENTO QUE INCREMENTA AS DIFICULDADES EMOCIONAIS DO PACIENTE
As instituições de residência em psiquiatria se vinculam a ambulatórios e hospitais gerais do SUS e, portanto, isso acarreta uma série de limitações quanto a questão da demanda excessiva da população, a qual não consegue atendimento especializado nos níveis de atenção primário e secundário, além de limitações de espaço físico para os atendimentos em virtude do investimento cada vez mais escasso na atenção à saúde mental17,18. Isso faz com que essas instituições adotem medidas de limite de tempo de atendimento em psicoterapia que em geral varia de 1 a 3 anos. Além disso, os programas de residência são divididos em estágios para que os residentes faças rodízio e passem por todas as áreas do programa, o que acarreta a necessidade do término da terapia ao final do período e passagem do paciente para um colega caso não haja possibilidade de término, situação corriqueira dada a gravidade dos casos atendidos.
Os exemplos do caso citado a seguir neste trabalho referem-se a paciente atendido por psiquiatra residente em especialização de psicoterapia no ambulatório do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA). Os pacientes são encaminhados de outros ambulatórios dos serviços de Psiquiatria e de alguns ambulatórios de Medicina Interna, como o Ambulatório da Dor e do Ambulatório de Avaliação Pré-operatória de Cirurgia Bariátrica. Estes pacientes são avaliados numa Triagem em Psicoterapia pelos residentes por 2-5 sessões para definir a indicação e a modalidade de psicoterapia mais adequada, que compreende POA (Psicoterapia de Orientação analítica), TCC (Terapia Cognitivo-comportamental) ou TIP (Terapia Interpessoal). Todos os casos são discutidos com os preceptores do ambulatório tanto na avaliação quanto no seu posterior acompanhamento deles em supervisões semanais. A orientação deste ambulatório é de que o tempo total de tratamento do paciente no serviço não ultrapasse dois anos. Como se tratam de casos graves, há necessidade de troca de terapeuta quando o residente conclui o ano de formação e estes são encaminhados para algum outro residente do serviço ou menos comumente para continuidade em outro serviço, como nos Centros de Atenção Psicossociais (CAPS) ou Unidades Básicas de Saúde (UBS) do SUS. As sessões têm duração de 45-50 minutos, podendo ser semanais ou com maior frequência caso seja indicado. As durações dos tratamentos na TCC e TIP seguem os protocolos de duração de destas modalidades. No ambulatório de Psicoterapia do HCPA encontram-se em andamento estudos de investigação longitudinal destas três modalidades de psicoterapia, com protocolo descrito em Gonçalves et al19.
Considerando as limitações necessárias para o funcionamento de um ambulatório de psicoterapia no SUS, sabe-se que estabelecer um tempo de duração já previamente estabelecido cria uma dificuldade a mais para o paciente, pois o paciente sabe que mesmo não tendo atingido os principais objetivos do início da psicoterapia, terá que lidar, muitas vezes prematuramente, com uma ruptura. Segundo Etchegoyen20, considerase que, quando a terapia for imposta for fatores externos ou alheios a terapeuta e paciente, não ocorre um término e sim uma interrupção ou término irregular. Nestes casos, o tempo pode ser um fator limitante a atuar em favor da piora do paciente e aumento de suas dificuldades emocionais. Como uma paciente costumava dizer: "o tempo é como uma espada na minha cabeça". Para esta paciente, o fator tempo adquiriu tamanha importância que numa sessão contou que me compraria uma ampulheta a qual sugeria colocar em qualquer lugar do consultório. Sua ruptura poderia ser particularmente traumática. Quando finalmente conseguia voltar a confiar e investir num novo objeto, sofria nova perda e reexperienciava a perda de seus objetos primitivos. Sua situação real (troca/perda do terapeuta) de certa forma concretizaria uma fantasia destrutiva muito poderosa de que ao nascer matara a mãe e sua raiva matara o pai aos 15 anos. Não surpreendentemente, cada aniversário era acompanhado de imenso pavor, a surpresa que deveria ser agradável, um tormento pela possível investigação e revelação de seu passado e, portanto, de sua culpa.
A questão é o quanto a troca contribuiu para psicopatologia e se tal, o quanto deve ser investido pelo terapeuta atual na elaboração da perda de terapeuta anterior para que o processo possa ser reiniciado. Há de se considerar também, se o período disponível de tratamento com nova troca subsequente, são suficientes para casos complexos como este, ou se o melhor seria a escolha por um terapeuta que permanecesse por mais tempo, evitando uma nova ruptura traumática. E assim, consolidando um ciclo interminável de nascimento e morte prematura e corroborando com a fantasia destrutiva da paciente21,22.
2. A TROCA VIVENCIADA COMO ABANDONO
A experiência de troca de terapeutas deve ser considerada de acordo com nível de funcionamento e integração da personalidade dos pacientes. Pacientes mais regressivos como os borderline podem reagir à troca como um abandono real. Pacientes neuróticos tendem a apresentar manifestações mais sutis de ressentimento em relação à perda de seu terapeuta. De acordo com a teorias de apego de Bowlby23,24, uma criança que se separa de uma figura materna a qual estava apegada demonstra aflição. Após isso, ela segue uma sequência de protesto, desespero e por fim, desapego, que seria a defesa contra o sofrimento pelo abandono. Considerando o funcionamento primitivo de muitos pacientes, supomos que eles passem por sentimentos semelhantes durante uma ruptura, porém com mais recursos de repressão que as crianças. Fonagy et al demonstram que a teoria de apego de Bowlby está relacionada a teoria de mentalização (i.e. a capacidade do indivíduo de compreender a representação dos seus estados mentais e dos outros através de pensamentos e sentimentos intencionais)25 e ambas são fatores de vulnerabilidade para transtornos de personalidade graves. Estes pacientes por terem capacidades de ego prejudicadas tendem a encarar a troca como um grave abandono e temer um novo vínculo. Os que tem mais recursos de ego, de simbolização e habilidades interpessoais podem se beneficiar da elaboração de seus conflitos e perdas6,18.
3. A TROCA INTENSIFICANDO A TRANSFERÊNCIA
A troca de terapeutas, por vezes, intensifica o processo de transferência à medida que o novo terapeuta pode se tornar na fantasia do paciente um "salvador", um pai ou uma mãe idealizada que resolverá o que ficou pendente com o terapeuta anterior26. Poderá vir a suprir o que a "mãe" substituta não gratificou. Ou um pai protetor, que garantirá a segurança de que tudo transcorrerá bem. Se observam aí fenômenos primitivos como descrito por Winnicott21: "No estado primitivo, que pode ser retido na doença e para qual pode ocorrer uma regressão, o objeto se comporta de acordo com as leis mágicas, isto é, existe, quando é desejado, se aproxima quando é aproximado, machuca quando é machucado". E ainda em Zimerman27, a respeito da teoria dos vínculos de Bion.
Bion deteve-se mais particularmente no vínculo "-K", ou seja, quando este está a serviço do que ele denominou de "ataque aos vínculos perceptivos", especialmente no que se refere à desvitalização (por exemplo, o que um determinado paciente pode fazer com as interpretações do seu analista) e à anulação dos significados das experiências emocionais, a serviço de uma defesa de "negação".
O terapeuta precisa estar atento a qual papel será "convidado" a representar no conflito atual do paciente de acordo com seus objetos e relações de objetos internalizadas: será o de uma mãe crítica ou de um pai distante? Ou de um pai autoritário? A troca poderá reativar fantasias de abandono, necessidade de reparação ou de identificação com o objeto perdido. Sentimentos de hostilidade, angústia e desapego poderão ser despertados23,24,28, reeditando vivências traumáticas infantis com possibilidade de elaboração ou de intensificação dos mesmos, e consequentemente, piora do quadro clínico.
4. O TERAPEUTA COMO PESSOA REAL
O conceito do terapeuta como pessoa real se torna importante quando nos deparamos com pacientes com sérias limitações para a vida independente29, que colocam no terapeuta a solução para seus problemas. Para alguns, representa o único momento em que alguém a escuta em seu sofrimento, que conseguem falar sobre seus sentimentos negativos de raiva, baixa-autoestima, frustrações com familiares e consigo mesmos. O papel do terapeuta, conforme descreve Winnicott30, pode ser o de uma mãe suficientemente boa para conter as angústias arcaicas de nossos pacientes e promover um holding.
5. CONCLUSÕES
Os autores concordam que as maiores dificuldades com a troca de terapeuta se dão com os pacientes mais regressivos como os borderline do que com os que apresentam funcionamento neurótico6. Os pacientes com história de perdas/separações traumáticas também sofrem com a adaptação ao novo vínculo, possivelmente por reviverem esses eventos na própria terapia10,15,31.
Os programas de residência exigem uma rotatividade dos médicos em formação, portanto, a troca de terapeutas é inevitável. É necessário nesse caso promover adaptações no contrato terapêutico já prevendo a troca ao final de cada ciclo, principalmente nos casos mais complexos. Outras questões como qual a melhor forma de passagem do caso para o outro colega e talvez até o término (considerando o limite de recursos no sistema público) devem ser consideradas.
Qual o impacto dessas modificações na efetividade da psicoterapia não está estabelecido. Talvez, a melhor forma seria de que os próprios programas de residência realizassem algum método de avaliação/ questionário ao início, no decorrer e ao fim do processo psicoterápico como medida objetiva de efetividade. Apesar de pouco comum na prática psicoterápica, já existem instrumentos de avaliação validados e com boa confiabilidade como o OPD32. Eles combinam medidas objetivas e subjetivas e podem ser realizados de forma seriada, acompanhando a evolução do paciente no processo psicoterápico, como nível de sintomas, mudanças dos padrões relacionais e conflitos e até quanto ao nível de integridade da personalidade33.
O fenômeno de troca de terapeutas é relativamente pouco estudado na literatura, necessitando de uma maior compreensão de sua repercussão no processo psicoterápico e, dessa forma, da elaboração de intervenções precoces para minimizar seus prejuízos e poder aproveitá-lo como uma experiência de amadurecimento e elaboração dos conflitos do paciente.
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Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Programa de Pós Graduação em Psiquiatria e Ciências do Comportamento - Porto Alegre - Rio Grande do Sul - Brasil
Correspondência
Leonardo Gonçalves
e-mail: leogonc@ibest.com.br / leogonc84@gmail.com
Submetido em: 15/01/2020
Aceito em: 26/05/2020
Contribuições: Leonardo Gonçalves - Conceitualização, Redação - Preparação do original; Neusa Sica da Rocha - Redação - Revisão e Edição, Supervisão.
Instituição: Universidade Federal do Rio Grande do Sul - Porto Alegre - Rio Grande do Sul - Brasil
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