Rev. bras. psicoter. 2020; 22(2):15-28
Zattiª C, Guimarães LSP, Bastos AG, Freitasª LHM. Associação entre precocidade do trauma psíquico e tentativas de suicídio: uma experiência de pesquisa . Rev. bras. psicoter. 2020;22(2):15-28
Artigo Original
Associação entre precocidade do trauma psíquico e tentativas de suicídio: uma experiência de pesquisa1
Association between precocity of psychic trauma and suicide attempts: a research experience
Asociación entre precocidad de trauma psíquico y intentos de suicidio: una experiencia de investigación
Cleonice Zattiª ;Luciano Santos Pinto Guimarãesb ;Andre Goettems Bastosc ;Lúcia Helena Machado Freitasª
Resumo
Abstract
Resumen
[...] uma agulhada num organismo desenvolvido é inofensiva; porém,
se for numa massa de células no ato da divisão celular, promoverá
uma profunda alteração do desenvolvimento daquele ser humano em formação." (Freud, 1940)
INTRODUÇÃO
O Rio Grande do Sul é um dos líderes em taxas de suicídio no Brasil, com índices que atingem o dobro da média nacional. Esses dados têm preocupado o governo estadual e intrigado pesquisadores em geral. O Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde indica hipóteses explicativas relacionadas com exposição a agrotóxicos, desemprego e crises econômicas1.
O suicídio pode ser contextualizado na história da civilização. A partir do pensamento de Santo Agostinho, na Idade Média, a morte de si passa a ter uma conotação pecaminosa, sendo que a ação passou ser compreendida como um crime, porque lesava os interesses da Coroa. Aqueles que se matavam tinham seus bens confiscados pela Coroa, em detrimento de suas famílias, e os cadáveres eram penalizados. Ao final desse período, com a separação entre a Coroa e a Igreja, o conhecimento médico assume um lugar privilegiado no controle da sociedade, deslocando o fenômeno do pecado à patologia e qualificando-o como loucura2. O suicídio também adentrou caminhos pelas tragédias gregas, passando também por peças de Shakespeare. No século XVIII, Goethe publicou Os sofrimentos do jovem Werther, e diversas pessoas se suicidaram na Europa, numa homenagem ao personagem.
Na Segunda Grande Guerra, em 1944, os pilotos japoneses receberam a denominação de "Kamikazes". Foi uma tática de guerra do Império Japonês em que os pilotos promoviam ataques suicidas. Alguns dos pilotos-suicidas foram recrutados em universidades, isso porque, se difundia a ideia de que o suicídio era uma escolha e não imposição por parte do Império Japonês. Aproximadamente 2.000 mil pilotos suicidaram-se em ataques desse tipo3.
Com o passar dos séculos, brota a psicologia moderna, que traz a compreensão de que o suicídio é um problema de saúde mental associado a fatores psicológicos e ao impacto dos transtornos mentais4. Nele a intenção de morrer é interpretada como um "grito de socorro", um pedido de ajuda.
Entretanto, as causas desencadeantes de uma tentativa de suicídio (TS) são múltiplas. Nos homens, a TS parece estar relacionada a motivos vinculados à masculinidade, ações de impulsividade e maior acesso aos meios letais violentos e/ou armas de fogo5,6. Por outro lado, nas mulheres, os métodos de escolha são considerados menos violentos, sendo o autoenvenenamento e a ingestão excessiva de medicamentos os mais frequentes7,8.
Essas assimetrias nos desencadeantes e métodos utilizados nas TS, bem como as diferenças entre homens e mulheres, carregam algum significado que poderia ser pensado como uma expressão da cultura em que tais estatísticas se inserem. Nesse sentido, Meneghel & Moura (2018) referem que, por exemplo, as altas taxas de mortalidade por suicídios no Rio Grande do Sul, estão localizadas sobretudo em regiões colonizadas pela cultura alemã. A ética protestante, o sofrimento no trabalho e a cultura germânica afetariam os pequenos agricultores que trabalham com o fumo. Em muitos casos, o suicídio é visto, nessa cultura, como um recurso usado para finalizar as dificuldades da vida9.
Recentemente, o Brasil se deparou com um fenômeno silencioso que invadiu diversas comunidades. Um "vírus" duplo que atacou famílias de forma sorrateira: Momo e o jogo Baleia Azul. Muitos casos de suicídio foram vinculados a esses "vírus". Percebe-se visivelmente na clínica a preocupação dos pais em relação aos filhos com acesso livre aos aparelhos de celulares e suscetíveis ao "vírus". A influência da internet e bullying e cyberbullying têm sido causa de TS e suicídios levados a cabo.
No ano de 2020, não podemos deixar de citar outro vírus que tem provocado inúmeras mortes. A COVID-19 adentrou as comunidades de forma repentina e modificou a maneira de convivência das pessoas, trazendo mudanças forçadas nos hábitos diários e impactos sociais, bem como traumas e perdas irreparáveis sociais e financeiras, com consequente aumento nos índices de desemprego e da desconfiança da população em relação aos governos. A COVID-19 não deu "avisos". Todos os países sofreram e ainda estão sofrendo com as decisões políticas de combate à pandemia. Além da COVID-19, tem outro aspecto que preocupa as autoridades médicas: o suicídio. Notícias publicadas no final de março e início de abril de 2020 mostraram casos envolvendo COVID-19 e suicídio, por exemplo, o do médico francês que, ao receber a notícia de contaminação por COVID-19, cometeu suicídio10. Na Alemanha, o ministro das finanças tirou a própria vida devido a preocupações econômicas em virtude da pandemia11. Na Itália, muitos profissionais da área da saúde foram infectados e pelo menos duas enfermeiras cometeram suicídio, uma delas por medo de ter passado a doença aos pacientes12. E no Brasil existe uma cidade mineira onde o que mais aterroriza as pessoas é o suicídio, e não a COVID-1913.
Assim, é possível constatar que ao longo do tempo o suicídio e as TS mostram-se de forma complexa quanto as suas causas, momento histórico, religião, cultura, abrangendo uma ameaça ao viver. Uma questão levantada a partir do referencial psicanalítico, desde o início das observações de Freud, seguindo a evolução de autores clássicos e contemporâneos14-17, foi desvendando a importância negativa que o trauma na infância ocupa no psíquico, levando ao campo psicopatológico e, como parte deste, à tentativa de acabar a vida.
Na literatura, investigações que comparam traumas na infância em pacientes com TS e sem TS mostram que há risco aumentado significativo de uma pessoa realizar a tentativa de tirar a própria vida caso tenha sofrido eventos traumáticos na infância18-20. Historicamente, estudos no campo psicanalítico também referenciaram que a dor psíquica proveniente dos traumas precoces pode ocasionar sérios danos nas etapas do desenvolvimento humano, envolvendo prejuízos no desenvolvimento cognitivo e afetivo, e podendo levar a pessoa a ter uma atitude de violência contra si21.
Tendo em vista o problema de saúde pública que as tentativas de suicídio e o suicídio representam4, o presente estudo foi desenvolvido com base num banco de dados que avaliou os pacientes que ingressaram na internação de um hospital de emergência de grande porte na cidade de Porto Alegre/RS. A partir da hipótese amplamente descrita na literatura da relação entre traumas precoces e posterior TS, o estudo teve como objetivo principal estudar a correlação entre traumas na infância perpetrados por figuras parentais e a TS na adultez, em uma amostra de pessoas que internaram como sobreviventes de TS. Como objetivos secundários, buscamos estudar a relação dos traumas na infância perpetrados por figuras parentais com a qualidade da rede de apoio, bem como identificar perdas de figuras parentais na infância.
MÉTODOS
Delineamento: estudo de caso-controle (28 casos; 56 controles) analisado a post facto, em pacientes adultos.
Cálculo amostral:
O cálculo amostral foi realizado com base no estudo de Roy (2011), que comparou traumas na infância em pacientes com TS e sem TS. O desvio-padrão da variável "trauma na infância" nos grupos com e sem TS foi de ±3,24 e ±5,07, respectivamente. Considerando um poder de 80% e nível de significância de 5%, usando uma proporção de 2 controles para 1 caso e com o objetivo de encontrar uma diferença de 3 pontos no escore geral do Questionário de Trauma na Infância (CTQ), o cálculo amostral foi de 84 sujeitos (56 controles e 28 casos). Tal cálculo foi realizado pelo WINPEPI versão 11.43.1419,20,22.
A coleta foi realizada no Hospital de Pronto Socorro (HPS) de Porto Alegre/RS, durante o período de agosto de 2015 a março de 2016.
Critérios de inclusão e exclusão: Os casos incluídos foram aqueles de pacientes que ingressaram no Hospital por ter realizado uma TS e que aceitaram participar desta pesquisa. Foram excluídos aqueles que recusaram ou que não estavam responsivos verbalmente devido à gravidade do quadro clínico. O grupo controle formou-se com pacientes que ingressaram por outro motivo, balanceados por sexo e idade (classe de 10 anos para mais ou para menos).
Instrumentos:
a) Questionário de Trauma na Infância (CTQ): avaliação de abusos e traumas infantis através de cinco dimensões: abuso físico, abuso emocional, abuso sexual, negligência física e negligência emocional. O CTQ é composto por 28 assertivas relacionadas com situações ocorridas na infância, apresentadas em uma escala Likert de cinco pontos. Os escores totais variam de 25 (ausência de qualquer trauma) a 125 (escore máximo para presença de todos os traumas). Para a aplicação, foi obtida licença da Person Education e os formulários originais em inglês foram adquiridos nos EUA23.
b) Medical Outcomes Study (MOS): escala de apoio social que avalia as seguintes dimensões: apoio material, afetivo, emocional, informação e interação social positiva. Apoio material: provisão de recursos práticos ou ajuda material; afetivo: demonstrações físicas de amor e afeto; emocional: capacidade da rede social em atender às necessidades individuais em relação a problemas emocionais; informação: pessoas que aconselham, informam e orientam; interação social positiva: saída com pessoas para relaxar e se divertir. É composto por 21 perguntas, apresentadas em uma escala Likert de cinco pontos24.
ASPECTOS ÉTICOS
O estudo foi regido pelo Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) com o seguinte registro: 44823315.1.0000.5327, via plataforma Brasil, aprovado em 2015 pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) do HCPA. Contém a aprovação do CEP da Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre/RS com o parecer de número 1.180.317, relatado em 30 de junho de 2015. Os Comitês de Ética foram informados sobre os dados obtidos neste trabalho.
ANÁLISE ESTATÍSTICA
As variáveis quantitativas foram representadas por média e desvio-padrão ou mediana e intervalo interquartílico, segundo os resultados do teste de normalidade de Shapiro-Wilk.
Foi realizada a correlação de Pearson para verificar o grau de associação entre os domínios dos instrumentos Questionário de Trauma na Infância (CTQ) e Medical Outcomes Study (MOS) discriminados pelos fatores grupo e sexo. Quando significativa, a intensidade da correlação pode ser classificada como: 0 - 0,3 = fraca; 0,4 - 0,6 = regular; 0,6 - 0,9 = forte; e 0,9 - 1,0 = muito forte25.
RESULTADOS
A amostra (n=84) obteve uma distribuição semelhante em relação ao gênero (M/F = 46,4%/53,6%) e idade com média de 35,6 anos (DP=12,8; min: máx = 19:71 anos). Estavam empregados 61,9% e 27,4% estavam desempregados, sendo que 79,8% residiam na cidade de Porto Alegre/RS (PoA). Os grupos foram pareados pela idade e sexo, portanto as médias nos grupos foram iguais, inclusive os anos de estudo (casos: 9,7; controles: 10,1). Os valores para mínimo e máximo para os casos foram de [2,0 - 17,5], respectivamente [1,0 - 25,0] para os controles (tabela 1).
Conforme Tabela 2, que discrimina grupo e sexo, podemos verificar uma correlação negativa de intensidade regular na maioria das combinações das variáveis dentro do grupo controle feminino. Isso significa que quanto menor os escores do CTQ, maior é o escore de MOS, ou seja, nesta pesquisa mulheres que não sofreram abuso e/ou negligência na infância contaram com mais apoio social durante o desenvolvimento. Já na análise do grupo clínico feminino não identificamos nenhuma correlação significativa, ou seja, os escores não possuem força para estabelecer uma correlação entre as variáveis.
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