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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2020; 22(2):1-14



Artigo Original

Associação entre traumas na infância e a representação de apego parental na vida adulta

Association between Trauma in childhood and an parental attachment representation in adult life

Asociación entre el trauma en la infancia y una representación del apego parental en la vida adulta

Fernanda Munhoz Driemeier Schmidta,b; Camila Piva da Costa Capellariª; Bruna Portal Ceconelloª; Júlia Camargo Contessaª; Jéssica Aronis Epszteinª; Paola Rodrigues Bottegaª; Maricéia Duarte Cossioª; Fernanda Barcellos Serraltaa,b

Resumo

A história pessoal do indivíduo, suas experiências na infância, influenciam e marcam o seu desenvolvimento psicológico. A vivência de traumas na infância é uma das possíveis adversidades que marcam o indivíduo e podem trazer implicações negativas em diversas áreas do seu funcionamento na vida adulta. Os pais apresentam um papel importante na modulação das respostas e funcionamento da criança frente ao trauma. O objetivo deste estudo foi avaliar a relação entre traumas na infância e estilos de apego parental em pacientes que buscam psicoterapia psicodinâmica. Foi realizado um estudo transversal e correlacional com 180 pacientes adultos que iniciaram psicoterapia psicodinâmica entre maio de 2015 e maio de 2016 em um ambulatório de saúde mental. Os resultados apontam que os traumas na infância apresentam correlação significativa com o estilo de apego com os pais. Quanto maior o controle materno e paterno maior o abuso emocional, negligência emocional e trauma total. O cuidado materno e paterno apresentou correlação inversamente proporcional com todas as dimensões do apego. Quanto maior o cuidado materno e paterno menor o abuso emocional, físico, sexual, negligência emocional, física e trauma total. Destacam-se características de controle na relação de apego como pai, no sentido de superproteção, que estão relacionadas a vivência de todos os tipos de trauma na infância.

Descritores: Apego; Trauma na infância; Psicoterapia psicodinâmica

Abstract

The individuals personal history as his or her childhood experiences influences psychological development. The experience of a trauma in childhood is one of the possible adversities that's mark the subject and can have negative implications in various areas of the functioning of the individual in adulthood. Parents play an important role in modulating the childs responses and functioning to trauma. The objective was to evaluate the relationship between childhood trauma and parenting attachment styles in patients seeking psychodynamic psychotherapy. A cross-sectional, correlational study was conducted with 180 adult patients who started psychodynamic psychotherapy between May 2015 and May 2016 at a mental health outpatient clinic. The results indicate that the majority of patients who underwent trauma in childhood are significantly correlated with the type of attachment to parents. The greater the maternal and paternal control, the greater the emotional abuse, emotional neglect and total trauma. Maternal and paternal care showed an inversely proportional correlation with all attachment dimensions. The greater maternal and paternal care, the lower the impact of the emotional, physical, sexual abuse, emotional neglect, physical and total trauma. There are control characteristics in the attachment relationship with the father, in the sense of overprotection, which are related to the experience of all types of trauma in childhood.

Keywords: Attachment; Childhood trauma; Psychodynamic psychotherapy

Resumen

La historia personal del individuo, sus experiencias infantiles, influyen en su desarrollo psicológico. La experiencia del trauma en la infancia es una de las posibles adversidades que marcan al individuo y puede tener implicaciones negativas en varias áreas de su funcionamiento en la vida adulta. Los padres juegan un papel importante en la modulación de las respuestas y el funcionamiento del niño ante el trauma. El objetivo de este estudio fue evaluar la relación entre el trauma infantil y los estilos de apego parental en pacientes que buscan psicoterapia psicodinámica. Se realizó un estudio transversal y correlacional con 180 pacientes adultos que comenzaron la psicoterapia psicodinámica entre mayo de 2015 y mayo de 2016 en una clínica de salud mental. Los resultados muestran que el trauma infantil tiene una correlación significativa con el estilo de apego con los padres. Cuanto mayor es el control materno y paterno, mayor es el abuso emocional, el abandono emocional y el trauma total. La atención materna y paterna mostró una correlación inversamente proporcional con todas las dimensiones del apego. Cuanto mayor es el cuidado materno y paterno, menor es el abuso emocional, físico, sexual, el abandono emocional, físico y el trauma total. Se destacan las características de control en la relación de apego con el padre, en el sentido de sobreprotección, que están relacionadas con la experiencia de todo tipo de trauma en la infancia.

Descriptores: Apego; Trauma infantil; Psicoterapia psicoanalítica

 

 

INTRODUÇÃO

A história pessoal do indivíduo, incluindo suas experiências na infância,influenciam o seu desenvolvimento psicológico1. A vivência de traumas, nesta fase da vida, é uma das possíveis adversidades que marcam o sujeito e podem trazer implicações negativas nas mais diversas áreas do funcionamento do indivíduo2,3,4.

A ocorrência de trauma na infância é um fenômeno universal, com relatos em todas as etnias e classes sociais e pode ser definido como precoce quando ocorre antes dos seis anos de idade5. Além disso, constitui em um fenômeno complexo e multifatorial, com consequências graves para o desenvolvimento6. Os traumas na infância podem ser abrangentes, como uma exposição da criança à violência física, psicológica, sexual e/ ou negligência e, em geral, envolve ameaça à vida ou à integridade de quem o experimenta7,8. Nesse sentido, são considerados um problema de saúde pública pela Organização Mundial de Saúde (OMS)9.

Muitas são as consequências que a vivência do trauma pode ocasionar na vida da criança. Diversas pesquisas demonstram que crianças traumatizadas podem vir a apresentar déficits no desenvolvimento intelectual, cognitivo10,11 e em questões de saúde física12. Com experiências de traumas elas também podem vir a apresentar dificuldades acadêmicas, delinquência e abuso de substâncias13,14. Além disso, podem desenvolver um padrão de vinculação desorganizado15, problemas na área social e nos relacionamentos tanto na escola como com a família16, desregulação emocional17, baixa autoestima e perturbações psicológicas18.

Nas últimas décadas, estudos epidemiológicos e ensaios clínicos sobre trauma na infância têm associado esta vivência a uma série de transtornos psiquiátricos e a estilos de vida inadequados em todas as fases do desenvolvimento19,4. Assim, é comum encontrarmos pacientes adultos que relatam a presença de eventos traumáticos na infância, apresentando piores desfechos clínicos e gravidade de sintomas20,21,22,23.

É importante ressaltar também que os pais apresentam um papel importante na modulação das respostas e funcionamento da criança frente ao trauma24,25,26 e são um importante preditor de desfechos pós-traumáticos infantis20,27,28,29. Diante disso, o apoio materno após abuso sexual infantil está associado a um menor sofrimento da criança30,31 e a um número menor de sintomas32, enquanto rejeição ou culpa parental pelo trauma exercem influências prejudiciais33. Ainda, respostas parentais superprotetoras e/ou preocupadas/assustadas podem exacerbar os sintomas da criança34. Consistentemente, pesquisas demonstraram que as respostas dos pais e das crianças no pós trauma estão relacionadas24.

Nesse sentido,ateoriadoapegoforneceumabaseteóricaimportante para compreenderasconsequências do trauma no desenvolvimento ulterior do indivíduo. Desde sua concepção inicial, Bowlby35 considerou que a teoria do apego era fundamental tanto para o desenvolvimento normativo como para o desenvolvimento psicopatológico. Assim, vínculo de apego se estabelece com uma pessoa específica claramente diferenciada e preferida, formando uma segurança afetiva. Este vínculo é estável e se mantém ao longo da vida36. Essa base segura, de confiança, que o indivíduo tem numa figura particular protetora e de apoio, que está disponível e é acessível, permite exploração coparticipativa do mundo36.

O apego vivenciado na infância seria subjacente à capacidade posterior de estabelecer ligações afetivas, bem como a toda uma gama de disfunções para adultos, incluindo problemas conjugais, sintomas neuróticos e transtornos de personalidade. Assim, as experiências iniciais de apego têm efeitos duradouros que tendem a persistir ao longo da vida, estando entre os principais determinantes da organização da personalidade36. Essas experiências de dificuldades iniciais de apego afetam o padrão de apego do indivíduo ao longo de sua vida e aumentam a vulnerabilidade à posterior psicopatologia36.

Pesquisas desenvolvidas a partir da teoria do apego identificaram quatro estilos de apego frente ao desenvolvimento infantil. O apego seguro é caracterizado por um discurso bem organizado, não defensivo, com expressão livre das emoções e com um alto grau de coerência no discurso37. No apego inseguro evitativo há a desvalorização da importância das relações de apego ou uma idealização das pessoas, sendo que, geralmente, esses indivíduos apesentam um histórico precoce de rejeição. Já no apego ansioso preocupado há a dificuldade em falar sobre o apego e expressar sentimentos relacionados ao mesmo, além de as descrições de seu relacionamento atual com os pais serem, muitas vezes, caracterizadas por raiva generalizada, passividade, além de tentativas de agradá-los. O apego desorganizado caracteriza-se por um indivíduo que exibe lapsos no raciocínio lógico ou no discurso ao abordar experiências de perda e abuso37,38.

Com base nestas considerações, esse estudo teve como objetivo avaliar a relação entre traumas na infância e estilos de apego parental em pacientes adultos que procuraram psicoterapia psicodinâmica. Além disso, buscou, secundariamente, descrever as características sociodemográficas e clínicas destes pacientes.


MATERIAL E MÉTODO

Delineamento

Tratou-se de um estudo quantitativo, transversal e correlacional realizado em ambulatório de saúde mental no sul do Brasil. Este ambulatório integra uma instituição de ensino que forma psicoterapeutas psicodinâmicos em uma especialização de três anos. Os atendimentos têm término aberto e os honorários e frequência das sessões são estipuladas entre cada terapeuta e paciente nas primeiras sessões.


AMOSTRA

Esse estudo incluiu 180pacientes adultos(67% do sexofeminino) que iniciaram psicoterapiapsicodinâmica entre maio de 2015 e maio de 2016. A idade média dos participantes foi de 32 anos (DP=10,3) e em termos de escolaridade, 73% apresentou ensino superior.


INSTRUMENTOS

Foram utilizados para a coleta de dados um questionário sociodemográfico derivado da própria clínica e dois instrumentos psicométricos de auto relato: Childhood Trauma Questionnaire - CTQ39 e o Parental Bonding Instrument - PBI40.

O Questionário sobre traumas na infância (QUESI)/ Childhood trauma questionnaire (CTQ)41 é composto por 28 questões que avaliam a presença de experiências traumáticas (abusos e negligências) na infância e adolescência. Os itens do instrumento investigam a ocorrência abuso emocional, físico , sexual, negligência emocional e física com cinco itens para cada tipo de experiência traumática, e mais três questões para controle de confiabilidade das respostas. As questões são do tipo likert de cinco pontos. Estudos de validade e de confiabilidade atestam as propriedades psicométricas do instrumento original. A versão em português denomina-se QUESI42. Neste estudo de validação com pacientes adultos apresentou fidedignidade, avaliada com coeficiente alpha de Cronbach, de 0,93 para a escala total e entre 0,66 e 0,94 nas subescalas42.

O instrumento sobre o vínculo parental - Parental Bonding Instrument40 é de auto relato com 25 perguntas do tipo likert (variação entre 0 e 3) em relação ao pai e à mãe, no qual o sujeito é inquerido sobre o quão parecido aquele comportamento é com o comportamento dos seus pais até os seus 16 anos. O PBI mede dois construtos: afeto e controle ou proteção40. A versão em português do Brasil foi elaborada por Hauck e colaboradores43. Os diversos estudos realizados com o instrumento atestam que este se trata de uma medida psicometricamente robusta, estável ao longo do tempo e cujo constructo se mantém nas diversas versões para outras línguas já realizadas e validadas43.

O estudo de validação43 atestou a equivalência conceitual, semântica e funcional e operacional do instrumento. Os pontos de corte são: para mães, um escore de cuidado acima de 27 e proteção/controle acima de 13.5 são considerados altos. Para pais, um escore de cuidado acima de 24 e proteção/controle acima de 12.5 são considerados altos. Os estilos podem ser classificados em: Controle afetivo = alto cuidado e alta proteção/ controle; Controle sem afeto = alta proteção/controle e baixo cuidado; Cuidado ótimo = alto cuidado e baixa proteção/controle; Negligente = baixo cuidado e baixa proteção/controle.


PROCEDIMENTOS DE COLETA E ANÁLISE DOS DADOS

De acordo com a rotina da instituição, os pacientes que ingressam são recepcionados por uma equipe de triagem que explica os procedimentos, avalia a busca de atendimento e elabora hipótese diagnóstica pela CID-10. Os profissionais que realizam a triagem já são especialistas em psicoterapia psicanalítica e receberam treinamento para condução de entrevistas inicias e diagnóstico. Após essa avaliação, é realizada a indicação terapêutica e o paciente é encaminhado para psicoterapia. Após a quarta sessão, os instrumentos foram entregues pela equipe de pesquisa em envelope fechado com instruções para seu preenchimento em local de sua preferência e foram devolvidos na sessão seguinte. Para análise dos dados, utilizou-se estatística descritiva e correlacional com o coeficiente de Person com nível de significância de 5%. A análise estatística foi realizada através do programa SPSS versão 23.0


PROCEDIMENTOS ÉTICOS

Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da universidade de origem do projeto (protocolo no 14/184). Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Foram garantidos o sigilo, privacidade dos mesmos e que a escolha de participação ou não na pesquisa não implicaria prejuízo no tratamento prestado.


RESULTADOS

Foram investigadas as vivências de traumas na infância em 180 pacientes adultos que estavam iniciando psicoterapia psicodinâmica em uma clínica vinculada a uma instituição de ensino de psicoterapia. Os dados sociodemográficos e clínicos, obtidos na triagem, podem ser visualizados na Tabela 1.




De acordo com a avaliação do CTQ, chamou a atenção como esta população clínica apresentou experiências de traumas diversos. Apenas 5% relataram nunca ter sofrido nenhum tipo de traumas na infância. Com relação a negligência, 46,1% relataram não ter sofrido a negligência física, enquanto que 16,7% relataram não ter sofrido a negligência emocional. Apenas 15% não sofreram abuso emocional e 73,7% não sofreram abuso sexual.

Com relação ao estilo de apego com a mãe, 53,9% apresentaram controle sem afeto; 32,2% referiram controle afetivo; 7,2% Negligente e 6,7% cuidado ótimo. Com o pai, o estilo de apego que prevaleceu foi, assim como o da mãe, o controle sem afeto com 34,4%. Por outro lado, as demais categorias de apego diferiram na ordem de frequência em que apareceram: negligente com 25,6%, controle afetivo 21,1% e cuidado ótimo 18,9%.

Os resultados das correlações entre traumas na infância (avaliados pelo CTQ) e a representação do tipo de cuidado parental (avaliados pelo PBI), mostraram que há uma correlação positiva e significativa entre os diferentes traumas e uma percepção de alto controle parental. Também foi encontrada a correlação negativa entre traumas na infância e representação de cuidado parental na infância, conforme tabela 2.




DISCUSSÃO

Algumas experiências vividas na infância como abusos físicos, psicológicos e sexuais, geram traumas e podem refletir de forma desastrosa na subjetividade do indivíduo6,7. Nessa população estudada, observouse um número expressivo de participantes mulheres, na maioria com ensino superior, solteiras e com renda entre 2 a 6 salários mínimos. Essas características mostraram-se semelhantes em diversas pesquisas44,45,46. Com relação à especificidade de estudos de população que refere traumas na infância, sabe-se que as meninas demonstram historicamente um maior número de vivências traumáticas, principalmente o abuso sexual, apesar dos meninos apresentarem mais resistência em relatarem a vivência traumática47.

Evidencia-se alta taxa de pacientes com ensino superior. Pode-se levantar a hipótese de que sejam pessoas com maiores capacidades de flexibilidade do pensamento e abstração, tendo estudos que mostram a associação entre habilidades cognitivas e escolaridade48. A literatura aponta que traumas na infância não estão relacionados à classe social, anos de estudo e/ou localização geográfica49.

Com relação à hipótese diagnóstica, prevalecem os transtornos neuróticos e os transtornos de humor. Os motivos de busca relatados pelos pacientes, vão em uma direção parecida com as hipóteses diagnósticas, estão na sua maioria relacionados a autoconhecimento, problemas depressivos e ansiedade. Estas hipóteses também são comuns de serem encontradas na maioria dos estudos que abordam pacientes que buscam psicoterapia psicanalítica em ambulatórios de saúde mental50,51,52.

Os resultados encontrados demonstram e reforçam a teoria de que as características e a qualidade do relacionamento entre pais e filhos estão associadas a vivências traumáticas na infância que repercutem na vida adulta. Da mesma forma, essa associação importante pode ser encontrada na literatura53. Em estudo realizado com esse grupo de pacientes já foi constatada relação entre trauma na infância e sofrimento psicológico derivado dos sintomas na vida adulta54

Quanto aos dados de trauma e apego, destaca-se que o tipo de trauma referente à mãe são os ditos emocionais (AE e NE) e estão relacionados a um alto controle da mãe. Esse dado informa a intensidade de vigilância da mãe em um extremo que pode causar prejuízos no desenvolvimento emocional24. Levanta-se a hipótese que sejam mães com características mais operativas do que afetivas. Pesquisas apontam que o funcionamento reflexivo materno está associado à sensibilidade parental e à vinculação segura e inversamente associado a fatores de risco sociodemográficos, psicossociais e à negatividade parental55,56. Apesar disso, a função reflexiva (FR) não foi associada com história de maus-tratos maternos ou TEPT. A sensibilidade dos pais mediava a relação entre o funcionamento reflexivo e o apego do bebê, controlando os fatores de risco sociodemográficos e psicossociais. Essa característica pode estar ligada às adversidades ambientais das mães, que tendem a usar a linguagem de maneira mais instrumental do que reflexiva56.

Em relação à figura paterna, o alto controle do pai está fortemente associado a todos os tipos de traumas na infância. Destacou-se a importância do papel do pai para a proteção ou exposição da criança ao trauma.

Na direção oposta, o cuidado das figuras parentais está inversamente relacionado a traumas na infância. Ou seja, crianças que recebem cuidado/afeto parecem estar mais protegidas da vivência de traumas na infância do que aquelas que são "superprotegidas" e/ou "controladas" pelas figuras parentais. Nesse sentido, esses resultados estão em consonância com a teoria do apego e da mentalização. Os pais exercem o papel de dar afeto e cuidado, bem como de poder compreender os estados mentais da criança de forma afetiva e cognitiva e traduzí-los para a mesma de maneira compreensível. Essa "tradução" estaria relacionada à modulação das respostas da criança frente ao trauma24.

Segundo Bowlby36, as relações com os cuidadores primários durante o desenvolvimento inicial influenciam as respostas emocionais e comportamentais ao longo da vida através de um sistema comportamental que influencia as expectativas de si e dos outros em relacionamentos íntimos. O apego consiste em um tipo de vínculo no qual o senso de segurança está estreitamente ligado à figura de apego. No relacionamento com esta, a criança pode experimentar segurança e o conforto quando aquela se mostra presente, formando assim, uma "base segura"36.

Sendo assim, o trauma relaciona-se com o relacionamento de apego na medida em que abrange, por consequência, uma disfunção da capacidade de desenvolver apegos seguros, com o prejuízo concomitante da mentalização e da capacidade de regulação das emoções24. Portanto crianças que sofreram abandonos na infância, possuirão, provavelmente, uma maior dificuldade em estabelecer vínculos, caracterizando um apego inseguro15,24.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esse estudo buscou avaliar a relação entre traumas na infância e estilos de apego parental em pacientes adultos atendidos em psicoterapia psicodinâmica. Os resultados mostram que há associação entre traumas na infância e a vinculação de apego da criança com seus pais. A partir desses dados pode-se pensar que situações de abandono e trauma podem gerar consequências negativas no desenvolvimento afetivo e intelectual da criança e, consequentemente, do adulto que irá se tornar. Portanto, investigar e compreender esses fenômenos relacionados às vivências traumáticas durante a infância e seus efeitos na vida adulta, como foi realizado nesse estudo, mostra-se bastante relevante para auxiliar os psicoterapeutas no entendimento do funcionamento dos pacientes que os procuram.

Uma limitação importante do estudo é que a amostra é clínica e por conveniência, o que pode restringir a generalização dos achados. Sendo assim, estudos semelhantes são necessários em outros contextos para melhor estimar a relação entre apego e trauma em pacientes que buscam psicoterapia.

Sugere-se estudos futuros no sentido de verificar se essas representações repercutem na relação com o psicoterapeuta durante o processo de tratamento a fim de desenvolver estratégias mais efetivas que contribuam para uma maior aliança terapêutica e, por conseguinte, um processo psicoterápico com êxito. A partir disso, ferramentas terapêuticas mais assertivas para a evolução dos tratamentos podem ser desenvolvidas para orientar a direção do tratamento.


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ªContemporâneo: Instituto de Psicanálise e Transdiciplinaridade, Departamento de Pesquisa - Porto Alegre - RS - Brasil
bUniversidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica - São Leopoldo - RS - Brasil

Correspondência

Fernanda Munhoz Driemeier Schmidt
e-mail: fernandadriemeier@hotmail.com

Submetido em: 29/01/2020
Aceito em: 12/05/2020

Contribuições: Fernanda Munhoz Driemeier Schmidt - Análise estatística, Gerenciamento do Projeto, Redação - Preparação do original, Redação - Revisão e Edição; Camila Piva da Costa Capellari - Coleta de Dados, Gerenciamento do Projeto, Supervisão;Bruna Portal Ceconello - Redação - Preparação do original, Redação - Revisão e Edição; Júlia Camargo Contessa - Redação - Preparação do original, Redação - Revisão e Edição; Jéssica Aronis Epsztein - Redação - Preparação do original, Redação - Revisão e Edição; Paola Rodrigues Bottega - Redação - Preparação do original, Redação - Revisão e Edição; Fernanda Barcellos Serralta - Análise estatística, Coleta de Dados, Gerenciamento do Projeto, Redação - Revisão e Edição.

Instituição: Contemporâneo: Instituto de Psicanálise e Transdiciplinaridade, Departamento de Pesquisa - Porto Alegre - RS - Brasil

 

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