Rev. bras. psicoter. 2020; 22(2):1-14
Schmidt FMD, Capellariª CPC, Ceconelloª BP, Contessaª JC, Epszteinª JA, Bottegaª PR, et al. Associação entre traumas na infância e a representação de apego parental na vida adulta. Rev. bras. psicoter. 2020;22(2):1-14
Artigo Original
Associação entre traumas na infância e a representação de apego parental na vida adulta
Association between Trauma in childhood and an parental attachment representation in adult life
Asociación entre el trauma en la infancia y una representación del apego parental en la vida adulta
Fernanda Munhoz Driemeier Schmidta,b; Camila Piva da Costa Capellariª; Bruna Portal Ceconelloª; Júlia Camargo Contessaª; Jéssica Aronis Epszteinª; Paola Rodrigues Bottegaª; Maricéia Duarte Cossioª; Fernanda Barcellos Serraltaa,b
Resumo
Abstract
Resumen
INTRODUÇÃO
A história pessoal do indivíduo, incluindo suas experiências na infância,influenciam o seu desenvolvimento psicológico1. A vivência de traumas, nesta fase da vida, é uma das possíveis adversidades que marcam o sujeito e podem trazer implicações negativas nas mais diversas áreas do funcionamento do indivíduo2,3,4.
A ocorrência de trauma na infância é um fenômeno universal, com relatos em todas as etnias e classes sociais e pode ser definido como precoce quando ocorre antes dos seis anos de idade5. Além disso, constitui em um fenômeno complexo e multifatorial, com consequências graves para o desenvolvimento6. Os traumas na infância podem ser abrangentes, como uma exposição da criança à violência física, psicológica, sexual e/ ou negligência e, em geral, envolve ameaça à vida ou à integridade de quem o experimenta7,8. Nesse sentido, são considerados um problema de saúde pública pela Organização Mundial de Saúde (OMS)9.
Muitas são as consequências que a vivência do trauma pode ocasionar na vida da criança. Diversas pesquisas demonstram que crianças traumatizadas podem vir a apresentar déficits no desenvolvimento intelectual, cognitivo10,11 e em questões de saúde física12. Com experiências de traumas elas também podem vir a apresentar dificuldades acadêmicas, delinquência e abuso de substâncias13,14. Além disso, podem desenvolver um padrão de vinculação desorganizado15, problemas na área social e nos relacionamentos tanto na escola como com a família16, desregulação emocional17, baixa autoestima e perturbações psicológicas18.
Nas últimas décadas, estudos epidemiológicos e ensaios clínicos sobre trauma na infância têm associado esta vivência a uma série de transtornos psiquiátricos e a estilos de vida inadequados em todas as fases do desenvolvimento19,4. Assim, é comum encontrarmos pacientes adultos que relatam a presença de eventos traumáticos na infância, apresentando piores desfechos clínicos e gravidade de sintomas20,21,22,23.
É importante ressaltar também que os pais apresentam um papel importante na modulação das respostas e funcionamento da criança frente ao trauma24,25,26 e são um importante preditor de desfechos pós-traumáticos infantis20,27,28,29. Diante disso, o apoio materno após abuso sexual infantil está associado a um menor sofrimento da criança30,31 e a um número menor de sintomas32, enquanto rejeição ou culpa parental pelo trauma exercem influências prejudiciais33. Ainda, respostas parentais superprotetoras e/ou preocupadas/assustadas podem exacerbar os sintomas da criança34. Consistentemente, pesquisas demonstraram que as respostas dos pais e das crianças no pós trauma estão relacionadas24.
Nesse sentido,ateoriadoapegoforneceumabaseteóricaimportante para compreenderasconsequências do trauma no desenvolvimento ulterior do indivíduo. Desde sua concepção inicial, Bowlby35 considerou que a teoria do apego era fundamental tanto para o desenvolvimento normativo como para o desenvolvimento psicopatológico. Assim, vínculo de apego se estabelece com uma pessoa específica claramente diferenciada e preferida, formando uma segurança afetiva. Este vínculo é estável e se mantém ao longo da vida36. Essa base segura, de confiança, que o indivíduo tem numa figura particular protetora e de apoio, que está disponível e é acessível, permite exploração coparticipativa do mundo36.
O apego vivenciado na infância seria subjacente à capacidade posterior de estabelecer ligações afetivas, bem como a toda uma gama de disfunções para adultos, incluindo problemas conjugais, sintomas neuróticos e transtornos de personalidade. Assim, as experiências iniciais de apego têm efeitos duradouros que tendem a persistir ao longo da vida, estando entre os principais determinantes da organização da personalidade36. Essas experiências de dificuldades iniciais de apego afetam o padrão de apego do indivíduo ao longo de sua vida e aumentam a vulnerabilidade à posterior psicopatologia36.
Pesquisas desenvolvidas a partir da teoria do apego identificaram quatro estilos de apego frente ao desenvolvimento infantil. O apego seguro é caracterizado por um discurso bem organizado, não defensivo, com expressão livre das emoções e com um alto grau de coerência no discurso37. No apego inseguro evitativo há a desvalorização da importância das relações de apego ou uma idealização das pessoas, sendo que, geralmente, esses indivíduos apesentam um histórico precoce de rejeição. Já no apego ansioso preocupado há a dificuldade em falar sobre o apego e expressar sentimentos relacionados ao mesmo, além de as descrições de seu relacionamento atual com os pais serem, muitas vezes, caracterizadas por raiva generalizada, passividade, além de tentativas de agradá-los. O apego desorganizado caracteriza-se por um indivíduo que exibe lapsos no raciocínio lógico ou no discurso ao abordar experiências de perda e abuso37,38.
Com base nestas considerações, esse estudo teve como objetivo avaliar a relação entre traumas na infância e estilos de apego parental em pacientes adultos que procuraram psicoterapia psicodinâmica. Além disso, buscou, secundariamente, descrever as características sociodemográficas e clínicas destes pacientes.
MATERIAL E MÉTODO
Delineamento
Tratou-se de um estudo quantitativo, transversal e correlacional realizado em ambulatório de saúde mental no sul do Brasil. Este ambulatório integra uma instituição de ensino que forma psicoterapeutas psicodinâmicos em uma especialização de três anos. Os atendimentos têm término aberto e os honorários e frequência das sessões são estipuladas entre cada terapeuta e paciente nas primeiras sessões.
AMOSTRA
Esse estudo incluiu 180pacientes adultos(67% do sexofeminino) que iniciaram psicoterapiapsicodinâmica entre maio de 2015 e maio de 2016. A idade média dos participantes foi de 32 anos (DP=10,3) e em termos de escolaridade, 73% apresentou ensino superior.
INSTRUMENTOS
Foram utilizados para a coleta de dados um questionário sociodemográfico derivado da própria clínica e dois instrumentos psicométricos de auto relato: Childhood Trauma Questionnaire - CTQ39 e o Parental Bonding Instrument - PBI40.
O Questionário sobre traumas na infância (QUESI)/ Childhood trauma questionnaire (CTQ)41 é composto por 28 questões que avaliam a presença de experiências traumáticas (abusos e negligências) na infância e adolescência. Os itens do instrumento investigam a ocorrência abuso emocional, físico , sexual, negligência emocional e física com cinco itens para cada tipo de experiência traumática, e mais três questões para controle de confiabilidade das respostas. As questões são do tipo likert de cinco pontos. Estudos de validade e de confiabilidade atestam as propriedades psicométricas do instrumento original. A versão em português denomina-se QUESI42. Neste estudo de validação com pacientes adultos apresentou fidedignidade, avaliada com coeficiente alpha de Cronbach, de 0,93 para a escala total e entre 0,66 e 0,94 nas subescalas42.
O instrumento sobre o vínculo parental - Parental Bonding Instrument40 é de auto relato com 25 perguntas do tipo likert (variação entre 0 e 3) em relação ao pai e à mãe, no qual o sujeito é inquerido sobre o quão parecido aquele comportamento é com o comportamento dos seus pais até os seus 16 anos. O PBI mede dois construtos: afeto e controle ou proteção40. A versão em português do Brasil foi elaborada por Hauck e colaboradores43. Os diversos estudos realizados com o instrumento atestam que este se trata de uma medida psicometricamente robusta, estável ao longo do tempo e cujo constructo se mantém nas diversas versões para outras línguas já realizadas e validadas43.
O estudo de validação43 atestou a equivalência conceitual, semântica e funcional e operacional do instrumento. Os pontos de corte são: para mães, um escore de cuidado acima de 27 e proteção/controle acima de 13.5 são considerados altos. Para pais, um escore de cuidado acima de 24 e proteção/controle acima de 12.5 são considerados altos. Os estilos podem ser classificados em: Controle afetivo = alto cuidado e alta proteção/ controle; Controle sem afeto = alta proteção/controle e baixo cuidado; Cuidado ótimo = alto cuidado e baixa proteção/controle; Negligente = baixo cuidado e baixa proteção/controle.
PROCEDIMENTOS DE COLETA E ANÁLISE DOS DADOS
De acordo com a rotina da instituição, os pacientes que ingressam são recepcionados por uma equipe de triagem que explica os procedimentos, avalia a busca de atendimento e elabora hipótese diagnóstica pela CID-10. Os profissionais que realizam a triagem já são especialistas em psicoterapia psicanalítica e receberam treinamento para condução de entrevistas inicias e diagnóstico. Após essa avaliação, é realizada a indicação terapêutica e o paciente é encaminhado para psicoterapia. Após a quarta sessão, os instrumentos foram entregues pela equipe de pesquisa em envelope fechado com instruções para seu preenchimento em local de sua preferência e foram devolvidos na sessão seguinte. Para análise dos dados, utilizou-se estatística descritiva e correlacional com o coeficiente de Person com nível de significância de 5%. A análise estatística foi realizada através do programa SPSS versão 23.0
PROCEDIMENTOS ÉTICOS
Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da universidade de origem do projeto (protocolo no 14/184). Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Foram garantidos o sigilo, privacidade dos mesmos e que a escolha de participação ou não na pesquisa não implicaria prejuízo no tratamento prestado.
RESULTADOS
Foram investigadas as vivências de traumas na infância em 180 pacientes adultos que estavam iniciando psicoterapia psicodinâmica em uma clínica vinculada a uma instituição de ensino de psicoterapia. Os dados sociodemográficos e clínicos, obtidos na triagem, podem ser visualizados na Tabela 1.
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