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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2020; 22(1):103-106



Resenha

A metamorfose em "A Vegetariana" de Han Kang

The metamorphosis in Han Kang's "The Vegetarian"

La metamorfosis en "La Vegetariana" de Han Kang

Bárbara Joana Almeida; Gustavo França Santos

 

 

Publicada em 2007 e premiada em 2016 com o Prémio Internacional Man Booker, a obra "A Vegetariana" da sul-coreana Han Kang, centra-se na jovem Yeong-hye1. Divide-se em três partes: A Vegetariana, Mancha Mongólica e Árvores Flamejantes. A protagonista apenas tem voz em pequenos fragmentos, desconexos, dispersos pelas três partes do livro. Conta-nos num desses excertos o sonho, o sonho que a perturba e que dará início ao seu processo de metamorfose.

Neste sonho, "uma longa vara de bambu cheia de bocados de carne vermelha espetados, com sangue ainda a escorrer. Tento passar para lá da carne, mas esta nunca mais acaba e não há saída (.) As minhas mãos sujas de sangue. Sangue na minha boca." Como forma de diminuir a angústia suscitada, torna-se vegetariana. Esta decisão, obrigatória e inquestionável para Yeong-hye, mudará irreparavelmente a sua estrutura familiar. Assistimos, num ambiente crescentemente hostil, à violência a que foi e é sujeita. Os homens à sua volta objetificam, desprezam e brutalizam a protagonista, sob o olhar débil e impotente das mulheres. Contudo, apesar de sozinha, incompreendida e hostilizada, Yeong-hye manter-se-á inabalável na sua escolha. Mas não se trata de uma opção alimentar, de uma simples recusa em ingerir carne; trata-se de um processo de autodestruição com uma força indomável.

Constringem o leitor a violência e solidão, mas também a aparente tranquilidade da protagonista. Mas percebemos que a serenidade é superficial, interiormente cresce e domina uma força inabalável, que a conduz à sua morte. Contudo, não podemos negar a beleza da metáfora de Yeong-hye (que surgiu, também, num momento onírico) para explicar os seus comportamentos - não ser um animal, mas sim uma árvore; enterrar os membros superiores no solo, "afundar-me na terra", onde as suas mãos se transformarão em raízes e da sua púbis nascerão flores. Procura transformar-se, voltar à terra inorgânica onde "as palavras e os pensamentos também irão desaparecer." Suspeitamos que procura anular, assim, o seu mundo interno, povoado de afetos e memórias que, de tão negativas, se tornam intoleráveis. Questiona "É assim tão mau morrer?".

O mergulhar (retomar) à terra, o retrair da vida, remete-nos para a pulsão de morte - um tema central e controverso na teoria de Freud. No seu livro Para além do Princípio do Prazer, explica "Se (.) tudo o que vive morre por razões intrínsecas e regressa ao estado inorgânico, só nos resta concluir que o objetivo da vida é a morte e retrospetivamente que a vida é precedida por um estado inorgânico"2. Assim, desde o início, estabelece-se uma disputa entre pulsões vitais (Eros) e de morte (Thanatos), dois processos em direções opostas - um construtivo, outro destruidor3. Que forças movem Yeong-hye para a destruição do ser? Vamos tendo acesso, sobretudo pela voz da sua irmã mais velha, ao ambiente tirano em que cresceu "Dócil e ingénua (.) limitara-se as absorver todo aquele sofrimento até à medula." Vislumbramos um pai, embotado pelo álcool, que agride e brutaliza a filha, perante uma mãe "exausta", uma sombra que geme e vira à cara, também ela agressiva na sua passividade. Parece-nos que as suas experiências precoces, com um objeto abusivo e punitivo, a levaram a internalizar um self mau e merecedor do abuso. As três figuras masculinas (pai, marido e cunhado) exercem sobre Yeong-hye uma violência angustiante e repulsiva, que esta aceita sem confronto. Mas esta agressividade move-se e expressa-se: o processo autodestrutivo que elimina o self, eliminará também o objeto sádico internalizado3. A irmã questiona "Seria possível essas coisas imagináveis se tivessem enraizado tão profundamente em Yeong-hye, ao ponto de se apoderarem dela?". A literatura científica é clara neste ponto: as relações precoces, no processo de vinculação, modelam a representação do self e dos outros e os modelos internos, que serão os pilares para a existência do individuo, que lhe permitem entender o seu mundo interno e estar no externo4,5. Mas estas "raízes", que fixam e alimentam o ser, poderão ser frágeis e débeis, irreparavelmente doentes e contaminantes.

Yeong-hye, sujeita à intrusão dos objetos, desrespeitadores dos limites e da sua individualidade e autonomia, parece encontrar o sentido de agência (sense of agency) através da sua crescente resistência em comer "É a única coisa em que és livre de fazeres o que quiseres". Torna-se pela primeira vez mestre de si, com uma determinação de ferro incorrompível. O que inicialmente era apenas uma recusa em comer carne, transforma-se na crença da inutilidade de ingerir qualquer alimento, uma certeza inabalável perante a lógica, delirante. A mente sobre o corpo, a clivagem impossível do ser. O corpo emaciado comunica a dor que não pôde ser elaborada e verbalizada.

A pulsão destruidora na protagonista é implacável. A psiquiatria é chamada a atuar, munida com os seus diagnósticos - tratar-se-á de uma Anorexia Nervosa e Esquizofrenia. Há coletes de forças, comprimidos, medicação intravenosa, sondas nasogástricas, internamentos em alas fechadas - nada demove Yeong-hye. Um dos médicos "parece esgotado com o esforço de tentar esconder a raiva que sente em relação àqueles doentes que não conseguem corresponder às suas expetativas. Olha de relance para o relógio." Este excerto espelha bem a realidade da prática clínica com alguns doentes com comportamentos autodestrutivos graves. Como gerir a frustração do técnico, a sua incapacidade para "manter os doentes vivos"? Um equilíbrio muitas vezes frágil - entre sermos absorvidos pela espiral aniquiladora do doente ou optarmos por uma abordagem manualizada e asséptica, assim mais protegidos dos movimentos transferenciais (e contratransferenciais) esmagadores6.

Transpondo para a clínica, a co-morbilidade de doenças psicóticas com anorexia nervosa é complexa. Apesar de várias hipóteses serem propostas na literatura, esta relação é ainda pouco compreendida7. Na presente obra, as motivações para a restrição alimentar parecem ter características delirantes, sendo a anorexia secundária à actividade psicótica. A consequente inanição a que a protagonista se submete, exacerba a sintomatologia delirante, perpetuando este ciclo e agravando o prognóstico. Contudo, apesar dos diagnósticos psiquiátricos estabelecidos, questionamos, como no artigo de Daniel Marchalik sobre esta obra8, o papel desta família, das suas relações mutuamente destrutivas e do estigma em relação a doença mental, na evolução do quadro clínico. Será apenas a protagonista a necessitar de intervenção?

A "Vegetariana" é uma obra riquíssima e poderosa. Impressiona pela sua beleza e causticidade, escrita numa narrativa simples, mas esmagadora. Acaba suspensa, deixando ao leitor a possibilidade de diferentes finais. Yeong-hye, uma personagem agridoce, mantém-se na memória mesmo após o término do livro. Uma personagem que, apesar de quase sem voz, comunica de forma ensurdecedora a sua dor.


REFERÊNCIAS

1. Kang H. A Vegetariana. Alfragide, Portugal: Dom Quixote; 2016.

2. Freud S. Para Além do Princípio do Prazer Londres: Imago; 1947.

3. Kernberg O. The concept of the death drive: A clinical perspective. The International Journal of Psychoanalysis. 2009;90(5):1009-23.

4. Bateman A, Fonagy P. Psychotherapy for Borderline Personality Disorder: Mentalization-based Treatment: Oxford University Press; 2004.

5. Gomez L. An introduction to object relations. London: Free Association Books; 1997.

6. Gabbard GO. Psiquiatria psicodinâmica na prática clínica. 5ª ed. Porto Alegre: Artmed; 2016.

7. Morylowska-Topolska J, Zieminski R, Molas A, Gajewski J, Flis M, Stelmach E, et al. Schizophrenia and anorexia nervosa - reciprocal relationships. A literature review. Psychiatriapolska. 2017;51(2):261-70.

8. Marchalik D, Jurecic A. Mental illness in Han Kang's The Vegetarian. Lancet (London, England). 2017;389(10065):147.










Hospital Magalhães Lemos, Psiquiatria de Adultos - Porto - Portugal

Correspondência
Bárbara Joana Almeida
e-mail: bjglalmeida@gmail.com

Submetido em: 02/09/2019
Aceito em: 15/01/2020

Contribuições: Bárbara Joana Almeida - Conceitualização, Redação - Preparação do original, Software; Gustavo França Santos - Conceitualização, Redação - Revisão e Edição, Supervisão.

Instituição: Hospital Magalhães Lemos, Psiquiatria de Adultos - Porto - Portugal

 

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