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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2020; 22(1):71-81



Artigo de Revisao

Freud, a construção da neurose obsessiva nos primeiros escritos e as diferenças em relação ao TOC

Freud, the construction of obsessional neurosis in the first writings and the differences in OCD

Freud, la construcción de la neurosis obsesiva en los primeros escritos y las diferencias con relación al TOC

Ana Luiza Martins Ribeiro Pires; Jacqueline de Oliveira Moreira

Resumo

A neurose obsessiva é uma das estruturas clínicas evidenciadas por Freud em 1894, nas suas primeiras publicações, cujo foco predominante era a histeria. Com a proposta de rastrear as movimentações da construção do conceito de neurose obsessiva do período pré-psicanalítico até 1900, buscamos levantar as características dessa organização psíquica para diferenciá-la do Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC), que se encontra no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, 5ª edição (DSM-V). Dessa maneira, nos arriscamos a ampliar e a refletir sobre novas possibilidades de intervenção para além da medicalização.

Descritores: Neurose Obsessiva; Psicanálise; DSM-V; TOC; Obsessão

Abstract

Obsessive neurosis is one of the clinical structures evidenced by Freud in 1894, in his first publications, whose predominant focus was hysteria. With the proposal to trace the movements of the construction of the concept of obsessive neurosis of the pre-psychoanalytic period until 1900, we sought to bring up the characteristics of this psychic organization in order to differentiate it from the Obsessive Compulsive Disorder (OCD), which is found in the Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, 5th edition (DSM-V). In this way, we risk widening and reflecting on new intervention possibilities beyond medicalization.

Keywords: Obsessive neurosis; Psychoanalysis; DSM-V; TOC; Obsession

Resumen

La neurosis obsesiva es una de las estructuras clínicas evidenciadas por Freud en 1894, en sus primeras publicaciones, cuyo enfoque predominante era la histeria. Con la propuesta de rastrear los movimientos de la construcción del concepto de neurosis obsesiva del período pre-psicoanalítico hasta 1900, buscamos levantar las características de esa organización psíquica para diferenciarla del Trastorno Obsesivo Compulsivo (TOC), que se encuentra en el Manual Diagnóstico y Estadístico de los Trastornos Mentales, 5ª edición (DSM-V). De esa manera, nos arriesgamos a ampliar y a reflexionar sobre nuevas posibilidades de intervención más allá de la medicalización.

Descriptores: Neurosis obsesiva; Psicoanálisis; DSM-V; TOC; Obsesión

 

 

1. INTRODUÇÃO

A neurose obsessiva é um tema importante e muitas vezes confundido com o Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC) classificado pelo DSM-V. A psiquiatria caracteriza esse transtorno por ideia repetitiva e intrusiva que invadem a consciência, comportamento compulsivo com predominância de rituais comportamentais que prejudicam o funcionamento social, ocupacional e pessoal, provocando angústia no indivíduo.

Segundo o DSM-V:


Obsessões são pensamentos repetitivos e persistentes (p. ex., de contaminação), imagens (p. ex., de cenas violentas ou horrorizantes) ou impulsos (p. ex., apunhalar alguém). É importante observar que as obsessões não são prazerosas ou experimentadas como voluntárias: são intrusivas e indesejadas e causam acentuado sofrimento ou ansiedade na maioria das pessoas1.


Normalmente, a compulsão é uma resposta diante do pensamento obsessivo. Existe uma crença considerada nesse caso como disfuncional que funciona como especificador diagnóstico: varia de bom, razoável ou pobre de que seu pensamento obsessivo é verdadeiro e definitivo, ou seja, o indivíduo acredita que o pensamento obsessivo que o invade é real, mesmo que lhe pareça banal1.

Outro critério diagnóstico para o TOC, segundo o DSM1 é não atribuir o efeito das obsessões e compulsões a nenhuma causa fisiológico que afeta diretamente o indivíduo através do uso de alguma substância. Além disso, as obsessões são consideradas indesejáveis para o paciente e ele não apresenta controle para impedir as ações e pensamentos obsessivos. A nova edição do DSM-V incluiu um subtipo de TOC relacionado a presença que varia de bom a ausente para tiques na história pessoal passada ou presente. Além disso, essa nova edição especifica um insight bom ou razoável para as crenças que o sujeito apresenta em relação à doença. Embora alguns indivíduos sintam alívio da ansiedade ou do sofrimento, a compulsão não é vivenciada com prazer.


A frequência e a gravidade das obsessões e compulsões variam entre os indivíduos com TOC (p. ex., alguns têm sintomas leves a moderados, passando 1 a 3 horas por dia com obsessões ou executando compulsões, enquanto outros têm pensamentos intrusivos ou compulsões quase constantes que podem ser incapacitantes)1.


Nesse raciocínio diagnóstico, as obsessões e compulsões devem durar aproximadamente mais de uma hora por dia e causar sofrimento e prejuízo significativo, social e profissional para o paciente. Os dados estatísticos do DSM-V2 afirmam uma prevalência maior de TOC no sexo feminino, embora nos indivíduos do sexo masculino há maior prevalência na infância. Nos Estados Unidos, "a idade média de início do TOC é 19,5 anos, e 25% dos casos iniciam-se até os 14 anos de idade"1.

Todavia, parece-nos interessante mencionar, conforme ressaltam Dunker e Kyrillos Neto3, o termo neurose como uma das categorias clínicas foi presente até a segunda versão do Manual de Diagnóstico DSM II. Nas versões posteriores o conceito de neurose não englobava o DSM. Entretanto, segundo Lima e Rudge2, a expressão neurose obsessiva foi extinta do DSM e substituída por Transtorno Obsessivo Compulsivo(TOC). Esse transtorno obsessivo compulsivo apresenta alguns sintomas similares já descritos por Freud como: compulsão de comportamento e obsessão de ideias intrusivas e persistentes no pensamento. Todavia, no mundo contemporâneo assistimos um processo de transformação de leitura destes sintomas como um transtorno neurológico, passível de tratamento medicamentoso e, em alguns casos mais graves, com proposta de intervenção cirúrgica.

Segundo Lima e Rudge2, "com o ato de se reduzir a complexidade da neurose obsessiva ao TOC, o sujeito se torna vítima de seu funcionamento cerebral e desacreditado da própria capacidade de mudança". Isso retira do sujeito a responsabilidade diante de seu sintoma. Aprendemos com as contribuições iniciais freudianas que a neurose obsessiva é fruto de ideias conflitivas que foram reprimidas.

Sem o intuito de demonizar a psiquiatria, fazemos uma breve análise do excesso que a medicalização poderá ocasionar com o apagamento do sujeito. Dunker e Kyrillos Neto3, anunciam que o DSM "é o sintoma maior da supressão individual dos múltiplos discursos sobre o mal-estar, o sofrimento e o sintoma, ou seja, do choque 'intercivilizações'". Após uma análise sobre o movimento de construção das diferentes versões do DSM, os autores ressaltam que a ideia de categorização das doenças se tornou mais evidente no DSM-III4. Porém, o termo neurose, que antes fazia parte dos quadros classificatórios, deixou de ser bem aceita pelo Conselho Administrativo da Associação Psiquiátrica Americana (APA) por se tratar de um termo vago e sem representatividade científica. A ideia defendida pelos autores não se trata de oposição à psiquiatria, mas uma crítica relevante sobre o uso exclusivo de medicamentos como método de tratamento das doenças4. Essa solução apaga o trabalho subjetivo de cada sujeito e impede novas formas de tratamento.

A ideia diagnóstica e terapêutica em psicanálise é clara para os autores:


O diagnóstico em psicanálise além de ser estrutural é também sob transferência, o que exige do analista um trabalho de produzir certa fala que possa indicar algo da posição do sujeito na fantasia. Falamos de um endereçamento da fala, de uma ultrapassagem dos fenômenos que nos permite formular um diagnóstico como função terapêutica e concomitantemente nos afasta das caricaturas engendradas pelos manuais como padrões de sofrimento psíquico3.


Mas, por que refletir sobre o tema da neurose obsessiva? Segundo Freud:


A neurose obsessiva é, indubitavelmente, o tema mais interessante e compensador da pesquisa analítica. Deve-se confessar que, se nos esforçarmos por penetrar mais profundamente em sua natureza, teremos de confiar em admissões duvidosas e suposições não confirmadas4.


Assim, motivados pela polêmica em torno dos termos TOC e neurose obsessiva e, ainda, pelo convite freudiano de pensar e repensar a clínica da neurose obsessiva, decidimos reconstruir a trajetória freudiana na construção do conceito de neurose obsessiva. Se por um lado encontramos um diagnóstico objetivo capaz de fundamentar um manual estatístico e classificatório além de uma base neurocientífica, por outro lado deparamos com o sofrimento psíquico particular e com o um mal-estar de cada sujeito. Em ambos os casos há rituais, compulsões e obsessões, entretanto, o diferencial está na maneira como cada referencial teórico compreende a origem desse sofrimento e na direção do tratamento. Nosso texto se define como uma pesquisa teórica que pretende reconstruir as movimentações teóricas freudianas no que se refere ao conceito de neurose obsessiva até 1900, com um segundo objetivo de diferenciar TOC da neurose obsessiva.


2. A NEUROSE OBSESSIVA, FOBIAS E HISTERIA: A DEFESA DO SEXUAL

A neurose obsessiva e fobias têm um sintoma principal considerado nuclear, a saber, a expectativa ansiosa. Mas, no texto "Obsessões e fobias", Freud5 postula as principais diferenças entre fobias e obsessões ressaltando que no primeiro caso a emoção sempre é acompanhada de ansiedade e temor. A ansiedade é um estado emocional que está por detrás de todas as fobias. Nas palavras dele: "As fobias são, então uma parte da neurose de angústia, e quase sempre outros sintomas do mesmo grupo as acompanham"5.

A terminologia "neurose obsessiva" foi utilizado por Freud pela primeira vez nesse texto, embora em uma carta à Fliess de 7 de fevereiro de 1894 ele já mencionou essa terminologia, assim como: "as neuropsicoses de defesa"6.

Quanto à neurose de angústia, ela apresenta semelhanças e diferenças com outras neuroses principais, como a histeria e à neurastenia5.

Em 1894, junto da histeria e das psiconeuroses de defesa, Freud instaurou uma nova definição de neurose obsessiva na qual sentiu a necessidade de iniciar um trabalho por uma "inovação nosográfica"6.

Apesar de muitos autores classificar a obsessão como uma síndrome que constitui a degenerescência mental ou confundir com a neurastenia, Freud situou a neurose das obsessões (Zwangsneurose) como uma afecção autônoma e independente7. Em "As neuropsicoses de defesa", Freud6 aponta a disposição de uma neurose quando uma ideia que seria incompatível e que é separada do afeto que permanece na esfera psíquica. A ideia então se enfraquece e permanece na consciência separada da associação. "Mas seu afeto, tornado livre, liga-se a outras ideias que não lhe sejam incompatíveis; e, graças a essa 'falsa conexão', tais ideias desenvolvem-se como obsessivas"6.

Entretanto, a ideia freudiana a princípio era diferenciar a obsessão da histeria. O foco de seu trabalho estava voltado para acompreensãodos fenômenos histéricos e compreender as semelhanças e diferenças das obsessões poderia contribuir para seu interesse inicial.

Nesse momento, Freud acreditava que o aparecimento das ideias incompatíveis estava diretamente relacionado à vida sexual do sujeito. Desse modo, a vida sexual desperta algo de aflitivo para o sujeito. Isso significa que a experiência sexual primária desperta uma satisfação prazerosa. Entretanto, a vivência da lembrança dessa experiência sexual na tenra infância produz desprazer, pois a consciência não aprova esse prazer e gera posteriormente auto recriminação, motivo pelo qual Freud atribui essa lembrança um valor traumático, como a origem de uma neurose obsessiva. O afeto ressurge na consciência e se manifesta como sentimento de autoacusação e vergonha. A obsessão representa, nesse caso, um substituto da ideia sexual incompatível que ocupa lugar na consciência6.

Parece-nos importante mencionar que em uma nota de rodapé do texto "As neuropsicoses de defesa"6 , aparece a primeira vez a ideia de um sistema inconsciente. A construção desta ideia se articula como a tentativa de explicação da existência de uma ideia sexual separada do seu afeto, e a ligação desse afeto a outra ideia ocorre fora da consciência. Ele irá classificar o afeto que aparece na obsessão como desalojado ou transposto como método de defesa8. Posteriormente, no fim do texto irá mencionar o termo deslocamento.

A distinção dos sintomas histéricos e obsessivos e fóbicos acontece pelo fato de toda alteração permanecer na esfera psíquica, no caso das fobias e obsessões. Já na histeria, não há nenhum tipo de mudança na relação: excitação psíquica e inervação somática6.

Em um dos casos mencionado por Freud ao longo do texto, há uma nota sobre sua comunicação com Fliess por meio de uma carta, em fevereiro de 1894, após concluir o texto sobre "As neuropsicoses de defesa" e afirma que a ligação na neurose obsessiva e a sexualidade nem sempre é fácil de se perceber.

Em 1896, Freud8 introduz: "Novos comentários sobre as neuropsicoses de defesa" cuja natureza da neurose obsessiva é definida sob a forma de autoacusações que o sujeito inflige a si mesmo. As ideias obsessivas são reprimidas e o sujeito as substitui por um sintoma primário de defesa. Neste ponto podemos localizar as primeiras formulações sobre o inconsciente. "A conscienciosidade, a vergonha e a autodesconfiança são sintomas dessa espécie, que dão início ao terceiro período - período de aparente saúde"8. Essa saúde é mascarada por uma defesa bem-sucedida. Freud ainda classifica a neurose obsessiva como uma atividade sexual relacionada a essa neurose mais presente em indivíduos do sexo masculino, ao passo que a histeria estaria ao lado da passividade sexual mais presente no sexo feminino. Dessa maneira, a repressão está relacionada à sexualidade obtida com prazer na tenra infância. O sofrimento aparece na medida em que as lembranças reprimidas retornam e a defesa fracassa.


As lembranças reativadas e as autoacusações delas decorrentes nunca reemergem inalteradas na consciência: o que se torna consciente como ideias e afetos obsessivos, substituindo as lembranças patogênicas, no que concerne à vida consciente, são estruturas que consistem em uma conciliação entre ideias reprimidas e repressoras8.


No início de sua obra, Freud8se interessava pela compreensão da etiologia das neuroses, desses quadros que não têm quadro orgânico. Sendo assim, não estava preocupado em desvendar os principais fenômenos da neurose obsessiva, mas ao contrário, os fenômenos histéricos.

Apesar dos "novos comentários sobre as neuropsicoses de defesa", ele ainda não compreende quais são os principais sintomas da neurose obsessiva. Ele faz apenas uma menção das observações de alguns pacientes histéricos que por sua vez tinham fenômenos obsessivos. Seu interesse era comprovar a etiologia sexual presente na neurose, em uma diferenciação entre atividade nas obsessões e passividade na histeria8.

Após analisar casos de treze pacientes histéricos, onde as ficções obsessivas emergem como um traço mnêmico relacionado com um trauma na infância*, Freud percebeu que não são necessariamente as experiências que são traumáticas, e sim a lembrança dessas experiências quando o sujeito entra na maturidade sexual. Essa teoria era chamada de teoria da sedução e foi o primeiro modelo de explicação sobre a etiologia das neuroses. Os traumas na tenra infância são vistos como casos de ofensas sexuais graves. É enfático ao dizer que a culpa estaria ao lado das babás, empregadas domésticas e governantas as quais as crianças teriam grande convívio. Em 21 de setembro de 1897, em carta a Fliess, ele relata que por algum tempo lhe acometia a ideia, por sua vez difícil de acreditar, que o pai tinha responsabilidade nos atos de perversão contra crianças8. Parecenos fundamental ressaltar o abandono da teoria da sedução para a construção da ideia de fantasia na cena edípica e no laço familiar. Os sintomas podem ser produzidos a partir da trama familiar, sem, necessariamente, acontecer um trauma real.

As principais características da neurose obsessiva em 1896 ainda podem ser classificadas como uma experiência prazerosa que mais tarde será "experenciada" como recriminação8. A fórmula postulada como: "Desprazer-prazer-recalcamento" pode ser decifrada levando em consideração a experiência de passividade que é agregada posteriormente a uma vivência de prazer que gera desprazer por causa da recordação da lembrança prazerosa. Seria, nas palavras de Freud, "uma condição clínica da neurose obsessiva que a vivência passiva aconteça tão cedo, que não seja capaz de impedir a ocorrência espontânea da vivência de prazer"8. Importante ressaltar que Freud menciona a idade de oito anos aproximadamente para a presença inicial do que estamos classificando como neurose obsessiva.

Pela primeira vez será mencionado a terminologia "retorno do reprimido", característico do processo de repressão. Ainda nesse texto de 1896, são postuladas duas formas de neurose obsessiva. E as ideias se reprimidas derivam de ideia sexuais conflitivas, sobretudo com ideias edípicas8.

A primeira caracterizada pelas ideias obsessivas que comprometem a atenção do paciente. Nesse caso, o ego é capaz de alterar o passado pelo contemporâneo e o conteúdo sexual é substituído pelo não sexual. O afeto, sentido como um desprazer e a obsessão que surge no psiquismo é decorrente do mecanismo de repressão. As ideias obsessivas apresentam um componente compulsivo devido à fonte que derivam.

A segunda forma se apresenta quando o afeto da autoacusação se transforma em qualquer outro tipo de afeto desagradável. O afeto substituto tenta se tornar consciente e romper com as barreiras da repressão. Isso pode influenciar na transformação de autoacusação por vergonha, ansiedade hipocondríaca, ansiedade social, assim como pode se apresentar em ansiedade religiosa, delírio de ser observado, medo da tentação e outros sintomas comum a essa neurose8.

Os sintomas apresentados são sintomas de conciliação marcados pelo colapso da defesa e um retorno do conteúdo reprimido. A neurose obsessiva apresenta outros sintomas diversos cuja origem é diferente. "O ego procura afastar os derivados da lembrança inicialmente reprimida e, nessa luta defensiva, cria sintomas que podiam ser classificados conjuntamente como 'defesa secundária'"8. Essas medidas protetoras tentam lutar contra as ideias e os afetos obsessivos. Se ocorrer a repressão dos sintomas do conteúdo reprimido que tentam invadir o ego, teremos a obsessão transferida às medidas protetoras e cria-se uma terceira forma dessa neurose classificada pelas ações obsessivas. Nesse caso é possível destacar os rituais nos quais o sujeito se impõe para defender-se das ideias que lhe afligem. Ele se esforça para controlar cada ideia obsessiva que se lhe apresenta unicamente pelo trabalho lógico e nas palavras de Freud, "pelo recurso às lembranças conscientes. Isso leva a um pensamento obsessivo, a uma compulsão de testar coisas e à mania de duvidar"8.

Na tentativa de defesa secundária contra os afetos obsessivos, o sujeito adota medidas protetoras passíveis de se transformar em atos obsessivos. Segundo Freud, podem ser agrupados levando em consideração o objetivo:


Medidas penitenciais (cerimoniais opressivos, observação de números); medidas de precaução (todas as espécies de fobias, superstição, minuciosidade, incremento do sintoma primário da conscienciosidade); medidas relacionadas ao medo de delatarse (colecionar aparas de papel, misantropia), ou para assegurar o entorpecimento [da mente] (dipsomania)8.


Em "Obsessões e fobias" Freud caracteriza dois aspectos presentes em toda obsessão: 1º "uma ideia que se impõe ao paciente"; 2º "um estado emocional associado"5. A ideia que se desloca, encontra um substituto associado à ideia que não era considerada apropriada. Mas é interessante ressaltar a observação freudiana na qual as ideias substituídas apresentam algo em comum, elas representam alguma experiência desagradável de natureza sexual para o sujeito cujo esforço do ego é tentar esquecê-la. É possível perceber que nesse texto o autor deixa os fenômenos histéricos mais distante da discussão para tentar enfatizar as principais diferenças entre as fobias e as obsessões.

Nesse período Freud defende a disposição mental herdada específica para explicar o mecanismo da substituição dos pacientes com obsessões, cujo motivo se deve à defesa do ego para reprimir a ideia incompatível à consciência. A persistência desse estado emocional se justifica pelo próprio mecanismo da substituição que não permite o desaparecimento desse estado emocional5.

Até 1897 em sua teoria da sedução, Freud diferenciava a histeria como referência ao feminino e a neurose obsessiva em relação ao masculino. Na primeira pode-se dizer que há uma consequência de um pavor pré-sexual, já na obsessão, há uma consequência de um prazer sexual pré-sexual que se transformou em recriminação. Desse modo, na sexualidade das meninas existe um pavor e ao mesmo tempo passividade. Por outro lado, nos meninos, há um prazer ativo vivido sob a forma de pecado6.

Após rejeitar a posição dual da histeria relacionada ao feminino e neurose obsessiva ao masculino, Freud iniciou uma nova ideia sobre a teoria da sexualidade e a neurose obsessiva desde então afeta homens e mulheres e tem sua origem em um conflito psíquico. No texto da obra "Um caso de histeria: três ensaios sobre a teoria da sexualidade e outros trabalhos" de 1905descreveu sexualidade infantil e foi criticado por explicitar a perversão e o erotismo anal9. Nesse período, Freud9 passou a reformular sua ideia sobre a teoria da sedução e percebeu que muitos relatos de pacientes histéricas eram na realidade, fantasias.

Importante deixar claro ao leitor que as discussões que levantamos sobre a neurose obsessiva se situam no momento anterior a 1900. Após essa data, essa neurose ganha com Freud, uma definição ampla e mais compreensiva sobre a estrutura da neurose obsessiva. Todavia, algumas dessas teses freudianas do período pré-psicanalítico revelam a riqueza na concepção sobre a neurose obsessiva.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Através do que exploramos ao longo desse texto, podemos elucidar alguns sintomas que consideramos nucleares da neurose obsessiva. Entretanto, esses sintomas englobam apenas o período pré-psicanalítico, ou seja, antes de 1900, data marcante para o avanço da compreensão dessa neurose.

Segundo Freud, a cura ou o tratamento da neurose obsessiva pode acontecer da seguinte forma:


[...] fazendo-se retroceder todas as substituições e transformações de afeto encontradas, até que a recriminação primária e sua vivência sejam libertadas e possam ser colocadas diante do Eu para novo julgamento. Para isso, é preciso elaborar a fundo um número inimaginável de representações intermediárias ou de compromisso que fugazmente podem se tornar representações obsessivas8.


Diferente do TOC, com uma sintomatologia e uma descrição acompanhada de obsessões e ou compulsões que causam sofrimento e prejuízo social e profissional para o indivíduo, a neurose obsessiva tem uma natureza que se expressa através de ideias obsessivas "invariavelmente autoacusações transformadas que reemergiram da repressão e que sempre se relacionam a algum ato sexual executado com prazer na infância"8. Apesar de alguns sintomas em comum entre neurose obsessiva e TOC, como por exemplo, obsessão de pensamentos considerados como tabus e compulsão por contar, elas diferem na compreensão da natureza da doença e no tratamento endereçado a elas. Enquanto o DSM identifica alguns pensamentos como crenças disfuncionais, a psicanálise identifica o sintoma peculiar do sujeito como resposta diante de alguma situação traumática.

A caracterização do TOC, no DSM IV, não incorpora conceitos freudianos como: recalque, defesa, deslocamento, recriminação, conscienciosidade, vergonha e outros sintomas nucleares dessa neurose. O conceito de TOC parece estar restrito a uma descrição de fenômenos, sem discutir as dinâmicas psíquicas subjacentes.

Dessa maneira, destacamos ao longo dessa pesquisa alguns sintomas principais da neurose obsessiva. A conscienciosidade, a vergonha, a autodesconfiança, autoacusações, sintomas de conciliação. Esses sintomas geram outros sintomas secundários como as medidas protetoras, mania de duvidar e atos obsessivos. A mania por limpeza, mania por contar, sintomas comuns nessa neurose, por sua vez também presente na sintomatologia do TOC assim como os rituais religiosos. Apesar da peculiaridade de cada sujeito na manifestação dos sintomas, esses que descrevemos se apresentam na maioria dos casos.

Ao contrário de crenças disfuncionais em relação a si mesmo ou em relação ao mundo, a psicanálise propõe o tratamento através da associação livre, permitindo nesse caso tornar a conexão reprimida na infância consciente, fazendo com que a ideia ou afeto substituto chegue a aquele que ocasionou a eclosão da neurose. Segundo Dunker e Kyrillos Neto3 é considerar o caso a caso, o particular de cada sujeito sem desconsiderar seu sofrimento.


REFERÊNCIAS

1. American Psychiatric Association. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais: DSM-5 5. ed. Porto Alegre: Artmed; 2014.

2. Lima JM, Rudge AM. Neurose obsessiva ou TOC?. Tempo Psicanal [internet]. 2015 [citado 18 mar 2019];47(2):171-87. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-48382015000200012&lng=pt&tlng=pt.

3. Dunker CIL,Kyrillos Neto F. A crítica psicanalítica do DSM-IV-breve história do casamento psicopatológico entre psicanálise e psiquiatria. Rev Latinoam Psicopatol Fundam. 2011;14(4): p. 611-26.

4. Freud S. Inibições, sintomas e ansiedade, 1926 [1925]. In: Um estudo autobiográfico. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol XX. Rio de Janeiro: Imago; 1996. p. 79-168.

5. FreudS. Obsessões e Fobias. In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol III. Rio de Janeiro: Imago; 1895.

6. Freud S. As neuropsicoses de defesa. In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, Vol III. Rio de Janeiro: Imago; 1894.

7. Roudinesco E, Plon M. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 1998.

8. Freud S. Novos comentários sobre as neuropsicoses de Defesa. In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, Vol III. Rio de Janeiro: Imago; 1896.

9. Freud S. Um caso de histeria: três ensaios sobre a teoria da sexualidade e outros trabalhos. In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, Vol VII. Rio de Janeiro: Imago; 1905.










Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Pós Graduação em psicologia (mestrado/doutorado) PUC Minas - Belo Horizonte - MG - Brasil

Correspondência
Ana Luiza Martins Ribeiro Pires
e-mail: nana_mrpires@yahoo.com.br / e-mail alternativo: jackdrawin@yahoo.com.br

Submetido em: 17/06/2019
Aceito em: 13/02/2020

Contribuições: Ana Luiza Martins Ribeiro Pires - Conceitualização, Investigação, Metodologia, Redação - Preparação do original, Redação - Revisão e Edição, Visualização; Jacqueline de Oliveira Moreira - Superfisão.

Instituição: Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Minas - Belo Horizonte - MG - Brasil


* O termo "ficções obsessivas" aparece em uma nota de rodapé do "Novos comentários sobre as neuropsicoses de defesa", quando Freud se refere à algumas histórias de assalto comumente inventadas por pacientes histéricos e sugere que "possam ser ficções obsessivas que emergem do traço de memória de um trauma da infância"8. Além disso, Freud afirma que em todos os casos de pacientes neuróticos obsessivos ele encontrou "um substrato de sintomas histéricos"8.

 

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