ISSN 1516-8530 Versão Impressa
ISSN 2318-0404 Versão Online

Revista Brasileira de Psicoteratia

Submissão Online Revisar Artigo

Rev. bras. psicoter. 2020; 22(1):25-37



Artigo de Revisao

Três imagens para a Teoria das Funções de Wilfred R. Bion*

Three images for the Theory of Functions by Wilfred R. Bion*

Tres imágenes para la Teoría de las Funciones de Wilfred R. Bion*

Rafael Mondrzaka,b; Ruggero Levyb

Resumo

O estudo das teorias de Wilfred R. Bion é desafiador tanto para os iniciantes na psicanálise como para os mais experientes que estão em contato com sua obra há décadas. Ele demanda tolerância à não compreensão imediatista dos conceitos apresentados e paciência aos paradoxos propostos. Em sua obra, apresenta definições de extrema importância para o pensamento clínico e metateórico psicanalítico que justifica a necessidade visceral de aprofundamento em seus escritos. O presente trabalho pretende revisar os conceitos de função alfa, elementos alfa, elementos beta, barreira de contato, tela beta, reversão da perspectiva e de objetos bizarros expostos pelo autor em seu livro: Aprendendo com a Experiência. Para isso, o autor lança mão de três gráficos com o intuito de elucidar, de forma imagética, os conceitos citados em seu primeiro contato mais aprofundado com a Teoria das Funções.

Descritores: Elementos alfa; Elementos beta; Função alfa; Teoria das funções; Wilfred Bion

Abstract

The study of Wilfred R. Bion's theories is challenging for both beginners in psychoanalysis and the more experienced who have been in contact with his work for decades. It demands tolerance to non-understanding of the presented concepts and patience to the proposed paradoxes. In his work, he presents definitions of extreme importance for psychoanalytic clinical and metatheory thinking that justifies the need for deepening in his writings. The present work intends to review the concepts of alpha function, alpha elements, beta elements, contact barrier, beta screen, perspective reversal and bizarre objects exposed by the author in his book: Learning from Experience. For this, the author uses three graphs to elucidate, in an imaginary way, the concepts mentioned in his first more in-depth contact with the theory of functions.

Keywords: Alpha-elements; Beta-elements; Alpha function; Theory of functions; Wilfred Bion

Resumen

El estudio de las teorías de Wilfred R. Bion es desafiador tanto para los principiantes en el psicoanálisis y para los más experimentados que están en contacto con su obra desde hace décadas. Él demanda tolerancia a la no comprensión inmediatista de los conceptos presentados y paciencia a las paradojas propuestas. En su obra, presenta definiciones de extrema importancia para el pensamiento clínico y metateórico psicoanalítico que justifica la necesidad visceral de profundización en sus escritos. El presente trabajo pretende revisar los conceptos de función alfa, elementos alfa, elementos beta, barrera de contacto, pantalla beta, reversión de la perspectiva y de objetos bizarros expuestos por el autor en su libro: Aprendiendo con la Experiencia. Para ello, el autor lanza mano de tres gráficos con la intención de elucidar, de forma imagética, los conceptos citados en su primer contacto más profundo con la Teoría de las Funciones.

Descriptores: Elementos alfa; Elementos beta; Función alfa; Teoría de las funciones; Wilfred Bion

 

 

1. INTRODUÇÃO (MOTIVAÇÃO)

A motivação para a escrita de um trabalho é parte essencial para sua realização. Ela define a estrutura, molda a forma como iremos nos colocar à disposição para ele, seu estilo, o tempo que iremos nos dedicar, a velocidade com que iremos vencer nossos objetivos para esse trabalho e por aí segue. A motivação é como se fosse a utilização dos temperos ou do modo de preparo que diferencia um alimento - em sua forma bruta - e o transforma em um prato exclusivo, com sabor e criação únicos. Imaginemos se duas pessoas, em cantos opostos do mundo, decidem ao mesmo tempo realizar um trabalho, ou escrever um livro sobre o mesmo assunto, para mim, o que dará o sabor de cada, será a motivação que os possibilitou despender essa energia ao processo. Não existem somente motivações majestosas e oriundas de um algum grande insight, até então obscuro ao mundo, que de soco ilumina a mente e a põe a escrever, pintar, desenhar, esculturar por dias e dias a fio até que então a obra fique pronta. Os roteiros de filmes costumam retratar dessa forma que nos encanta, onde após um longo período de ócio subitamente um estalo criativo ocorre e o personagem passa a produzir sua arte incessantemente, de forma obstinada e cega, desejoso de atingir seu produto final. Grandes produções, das mais variadas possíveis, foram motivadas por desastres, tragédias, traumas, dores e perdas irreparáveis - experiências atravessadas pelo indivíduo que o atravessaram sem que ele as tivesse solicitado. Essas motivações também colocam a maquinar o que lhe acometeu e alguns tem a sorte de poder reparar em forma de elaboração, utilizando-se da criatividade como veículo motor. Nesses casos, a motivação talvez esteja recoberta pela necessidade de o conteúdo ser transformado em algo legível, palpável, comestível, visível. Portanto, para mim, é na motivação que encontramos nossa real autoria.

Neste trabalho me propus a revisar parte dos meus estudos iniciais sobre Wilfred R. Bion motivado pela inundação de imagens que sofri e vivi emocionalmente enquanto lia: Aprendendo com a Experiência. Como referencial teórico, daqui para a frente, estarei sempre utilizando a versão em inglês, Learning from Experience, Medical Books, London, 19621, pois acredito que ela nos mantenha mais próximo dos conceitos expostos pelo autor e a tradução para o Português possa gerar ainda mais confusões. Este trabalho também pode ser visto como o que a minha mente alucinou/sonhou e a minha mão desenhou enquanto lia Bion.

Desde o meu primeiro contato com a obra de Bion, fui tomado de forma imagética e onírica por elementos alfa e beta circundantes em minha mente; sonhei com a barreira de contato viva; imaginei guerras entre os objetos bizarros e a realidade, vi os elementos beta tentando a qualquer custo conectarem-se sem sucesso enquanto os elementos alfa riam e exibiam-se pela sua representação, pelo seu simbolismo. De todas essas imagens, construí alguns gráficos que irei apresentar mais adiante no trabalho. Essa é a real autoria: além de realizar uma pequena revisão para esta parte inicial da obra bioniana, também tentar transpor entre texto e imagens minha mente enquanto estudava o Aprendendo com a Experiência pela primeira vez. Adjunta à motivação, houve também a necessidade de evacuar minha pouca compreensão do que lia para imagens a fim de tornar a leitura mais agradável, ainda que Bion tivesse me avisado nas primeiras páginas que não deveria me preocupar com isso. O contradisse e sofri: "O livro foi projetado para ser lido diretamente uma vez sem verificar as partes que podem ser obscuras no início. Algumas obscuridades se devem à impossibilidade de escrever sem pressupor familiaridade com algum aspecto de um problema que só será resolvido posteriormente." (p. 8, tradução própria)1. Foi melhor para mim ter tido a possibilidade de ler e desenhar ao mesmo tempo, do que ler e reler obsessivamente procurando entender.

A possibilidade para "desenhar textos" é rara na literatura psicanalítica, principalmente devido ao grau de abstração com que lidamos, mas também por uma filosofização do conteúdo. Se retornarmos ao positivismo Freudiano, encontraremos ao longo de sua obra inúmeros rabiscos, gráficos e imagens tanto de autoria própria como também de seus pacientes. Observei, portanto, dentro da obra de Bion, uma boa oportunidade para desenhar. No futuro, espero obter auxílio tanto quanto a localização dos conceitos dentro da imagem que apresentarei, como também para adições ou supressões de outros conceitos da obra de Bion os quais não incluí, conforme necessidade ou importância: "...ao oferecer seus pensamentos sobre como Bion gostaria que Aprendendo com a Experiência fosse lido, retrata um estado de mente (gerado no ato da leitura) que é ao mesmo tempo aberto a viver uma experiência emocional e ativamente engajado em esclarecer obscuridades e obscurecer (isto é, liberar-se dos fechamentos de) clarificações." (p. 288)2

Meu foco neste trabalho foi revisar principalmente alguns de seus conceitos centrais expostos nos primeiros dez capítulos do livro citado acima em que apresenta fundamentos centrais de sua obra. Ao longo do livro, Bion expõe o modo como o pensamento evolui para a abstração e a complexidade a partir de fontes experimentais rudimentares. O pensamento é o objeto de estudo, então nada mais coerente que estar atento (desenhar) os meus pensamentos enquanto estudava. Concordo com Giffney quando destaca que concomitantemente com a leitura consciente dos livros de Bion, devemos estar ainda mais atentos a valorizar o que a linguagem e as palavras nos fazem sentir em suas variadas possibilidades3. Por vezes, para mim, ler Bion aproxima-se da mesma atenção que dou à minha mente quando estou escutando meus pacientes. Ainda que os livros estejam escritos em palavras, eles raramente irão se limitar a uma só comunicação. Bion encaixa-se majestosamente para ler sentindo.

Para finalizar essa parte introdutória ressalto, após inúmeras releituras, a importância pessoal que senti do trabalho deixado por Bion para prática diária com meus pacientes e para comigo mesmo - minha mente como um todo. Sua aproximação com conceitos matemáticos, por exemplo, possibilitou a expansão do meu pensar e na forma como lido com objetos de dedução científica, processos intuitivos, dilemas entre o lógico e o ilógico, paradoxos e a própria abstração matemática, para citar alguns. Enfim, na forma como lido com a complexidade psíquica dos pacientes e de seus sofrimentos.

Bion inicia seu livro introduzindo ao leitor uma experiência do pensar através do que chamou Teoria das Funções. Para ele: "the theory of functions makes it easier to match the realization". Cabe ressaltar aqui que o termo realização, como se encontra nas notas, é referência à geometria Euclideana (também um grande motivador da minha geração de imagens ao longo da leitura) das duas ou três dimensões, como estrutura para formação de espaços dimensionais. Essa geometria é formulada conforme postulações (são 23 ao todo), como exemplo: (a) ponto é aquilo de que nada é parte; (2) e linha é comprimento sem largura; ... (23) paralelas são retas que, estão no mesmo plano, e sendo prolongadas ilimitadamente em cada um dos lados, em nenhum se encontram. Assim, também na nota, é esclarecido que o termo sistema dedutivo está ligado aos sistemas lógicos, tal como o sistema Euclideano, dos axiomas iniciais, em que surgem postulados e desses, passíveis de serem provados verdadeiro pelo sistema dedutivo, podem ser considerados teoremas. Para Bion, o uso de tais definições visa dinamizar a teoria do pensar, utilizando-se da abstração matemática das realizações.

O desenvolvimento das teorias das funções e da função alfa foi um desencadeamento de múltiplos aspectos da vida de Bion que agregaram-se como uma espécie de fato selecionado para seu desenvolvimento, principalmente entre 1958 e 1960 em seus escritos4. Os conceitos desenvolvidos estariam supostamente relacionados entre si a sentimentos dolorosos incapazes de serem pensados pelo autor. Um desses aspectos foi a influência sofrida pelo autor em relação a sua participação como comandante de tanque na Batalha de Amiens em 1918. Um segundo, foi a elaboração científica da função alfa realizada em Cogitações, entre 1959 e 1960 e um terceiro foi fruto do desenvolvimento dos trabalhos de Bion sobre esquizofrenia escritos ao longo de 1950. Concomitantemente, o casamento com Francesca em 1951 também contribuiu ao permitir que ele pudesse conter e elaborar sentimentos junto a elade seu passado traumatizante, agora também em estudo e observado em seus pacientes psicóticos4. Além disso, a função alfa deu o instrumento necessário para Bion poder pensar o pensamento psicótico enquanto o auxiliava a elaborar seus traumas da Primeira Guerra Mundial5.




2. ELEMENTOS ALFA, FUNÇÃO ALFA

Acima (figura 1 - função alfa operante) encontra-se o primeiro desenho digitalizado. Ele passou por inúmeras modificações e nasceu de infinitos rabiscos feitos a mão. Mais importante é o fato de eu não considerar a figura acabada e talvez nunca seja, pois inúmeros conceitos do Bion poderiam ser agregados a ela, bem como novas localizações dos próprios elementos dentro da figura poderiam ser propostas. Não deveríamos tomar como errado caso alguém desejasse colocar os elementos alfa dentro da barreira de contato, por exemplo. De modo operativo, a ideia é que se possa fazer a revisão teórica abaixo com a imagem impregnada na mente de forma não rígida e muito menos obsessiva.

A introdução do termo função alfa se dá no capítulo um da seguinte forma: "Eu chamo essa função de função alfa para que eu possa falar sobre ela sem ser restringido, como seria se eu usasse um termo mais significativo, pela penumbra de associação existente" (p. 2, tradução própria)1. Nos justifica, logo de início, a necessidade de usar um termo novo para que nenhum viesse carregado de pre-concepções. Para ele, a função alfa opera nas impressões sensórias e nas emoções, nas quais o paciente tem percepção a respeito. O livro introduz a função alfa como forma de expressão misteriosa, simbólica essencial para registrar, elaborar e comunicar as experiências favoráveis ao crescimento. Se a função alfa é bem-sucedida, então o paciente terá a sua disposição elementos alfa capazes de serem armazenados e utilizados nos pensamentos oníricos (dream thoughts). Serve ainda como forma de aliviar a consciência do fardo intelectual que qualquer aprendizado demanda6.

Por outro lado, a função alfa, segundo Bion, pode também ser destruída pelo paciente, perdendo-se assim a capacidade do pensar, principalmente como forma de não ter que lidar com o medo, a inveja e o ódio por exemplo. Neste caso, a necessidade é a de que os objetos bons possam ficar separados dos maus, situação em que o paciente poderá afastar-se da realidade em função do seu desejo de saciar-se somente daquilo que é bom. Até aqui, então, por enquanto, temos um conjunto de elementos (alfa) e uma função estabelecida pela mente que permite operar em nível sensório-emocional e coloca à disposição para o indivíduo a experiência como possibilidade de aprendizado. Um pequeno exemplo prático sobre a operacionalidade da função alfa é o trazido pela criança que tem a experiência emocional do aprender a caminhar e, em resultado dessa operação, pode armazenar tal experiência. Portanto, ela poderá guardar todos os aspectos necessários para a experiência do caminhar, sem após ter que estar cônscia dessa função.

A função alfa também pode ser vista como geradora de abstrações que serão utilizadas pelo analista para descrever uma função da qual ele ainda não sabe a natureza (Seria o meu sonhar com as imagens e os elementos de Bion?). Até um determinado momento, em que ele se sinta na posição para trocar por fatores os quais foi obtendo evidência ao longo de sua investigação utilizando-se das próprias abstrações produzidas. Inclui, por exemplo, a função do ego, transformando experiências sensoriais em elementos alfa. Bion destaca que tais elementos são compostos de imagens visuais, padrões auditivos, olfatórios e são funcionais para serem empregados nos pensamentos oníricos, unconscious waking thinking, nos sonhos, na barreira de contato e para a memória.

Sobre uma possível explicação da origem dessa função, a maioria dos autores percebe a função alfa originada no bebê através da introjeção da função materna da função alfa; no entanto, a função alfa é formada também pela internalização de um relacionamento intersubjetivo4. A função alfa pode somente se desenvolver em contato com outra mente7. A soma desses dois processos permitirá a internalização da relação continentecontido, fator chave para o desenvolvimento da função alfa.


3. ELEMENTOS BETA

Bion descreve os elementos beta de forma distinta dos alfa, incialmente como não qualificáveis para serem utilizados nos pensamentos oníricos, no entanto, são recrutados para a identificação projetiva (acting out). São elementos funcionais como substituto ao pensar, às palavras e às ideias. Para ele, os elementos beta são armazenados não como forma de memória, mas como em fatos não digeridos, enquanto os elementos alfa foram digeridos e servem ao propósito do pensar. Bion ainda postula que o paciente incapaz de transformar sua experiência emocional em elementos alfa, não poderá sonhar. No capitulo sete, novamente nos reforça a ideia de que se uma pessoa tem uma experiência emocional, seja dormindo ou acordado, e consegue convertêla em elementos alfa, ela pode tanto viver essa experiência inconscientemente como torná-la consciente. Joga com a nossa mente ao propor o estado e a possibilidade de se estar acordado sonhando, utilizando-se do discurso e da fala, para permanecer assim. O sonho em si para Bion estabelece uma barreira para que a consciência não supere a possibilidade de tolerância do paciente sobre suas fantasias. Nos resume dizendo que o sonho, juntamente com a função alfa, a qual torna o sonho possível, é central para a operação da consciência e do inconsciente. À luz da teoria da função alfa, a mesma opera nos ajudando a manter a diferença entre ambos. A possibilidade de sonhar, portanto, preserva a personalidade do que poderia ser um estado psicótico. Sobrepondo com a visão clássica freudiana, a função alfa estaria próxima à resistência e à repressão como são representadas no processo elaborativo onírico.

Se pensarmos assim e lidarmos com sua visão restrita da funcionalidade dos elementos beta, aproximamonos dos conceitos de psicose: a percepção não está conectada ao sujeito como parte de um mundo com realidade externa. Para Bion, os elementos beta subexistem e não podem ser trabalhados pela função alfa nem mesmo na criação de objetos bizarros (será visto adiante). Ou seja, existe uma forma em como a realidade externa penetra no sujeito como um não-objeto, principalmente quando ocorre o excesso de frustração e intolerância para lidar com ela. De forma oposta ao descrito, o senso da realidade é atribuído a função alfa, pois seu atributo é lidar com a frustração ao invés de transformá-la em um objeto que seja somente passível de evacuação. Chama-se de dessimbolização ou desrepresentação aquilo que permanece no quarto sentido do negativo: o do nada. O que não pode existir na mente, como irrepresentável, ou como desrepresentado. Essa negatividade no âmbito do mental costuma ser ou estar "positivida" no território do corpo, da conduta ou do alucinatório8. Essa descrição (negativa) aproxima-se de uma materialização dos elementos beta em si

Os elementos beta são derivados de estímulos sensórios que não foram modificados pela pessoa que os percebe - pensamentos sem um pensador - e portanto padecem de utilidade para a psicanálise sob o ponto de vista restrito à linguagem verbal até que sejam convertidos pela função alfa: "sua marginalização dos sentidos na situação clínica, justamente devido à inclusão de elementos beta como componentes da mente, representando acesso não mediado ao mundo externo, merece mais estudos". (p. 168, tradução própria)9

Bion também recorre a uma característica em separado para esses elementos. Segundo ele, resistem em se ligar através de cadeias associativas e introduzem-se como parte da psique na forma de elementos (coisa-em-si) ao invés de percepções. Nesse ponto, assemelham-se também aos fenômenos alucinatórios, pois aparecem como reais, mas sem conexão para aquele que os vê ou os escuta. Portanto, como as alucinações, os elementos beta aproximam-se da percepção ou sensação sem a intromissão de um pensamento, ou seja, são experienciados como uma realidade não gerada pelo sujeito que a está vivendo. Se a mente opera sob a influência de elementos beta como irreconhecíveis, inanimados e sem sentido, existe uma forma de hipersensitividade que não conecta a mente com a realidade. Logo, não há a possibilidade de contato consigo mesmo e nem com o outro7. Essa definição possui uma vasta aplicação clínica, principalmente com pacientes mais graves.

A ideia de energia psíquica livre sem possibilidade de ligação entre esses elementos esta implícita na teoria de Bion. Não parece ser possível divorciar a ideia de elementos beta com o de pulsão. A pulsão é um beta. Existe uma importante correlação entre ambos: esses elementos devem ser entendidos como tendo um aspecto econômico, tanto quanto o da pulsão. Como as pulsões, eles são irreconhecíveis, a não ser pela sensação de pressão que exercem e podem vir a ser reconhecidos ou então deverão ser evacuados do psíquico. Logo, há uma correlação entre elementos beta e a pulsão freudiana se pensarmos que os impulsos do id não podem ser diretamente conhecidos e seu destino é permanecer inconscientemente representados (parte inconsciente do ego) ou descarregados de alguma forma que contorne sua passagem pelo ego10. Os elementos beta indicam o que restou antes ou "de fora" dessas partes conscientes e inconscientes do ego, criadas pela função da barreira de contato/função alfa. De forma análoga, os elementos beta não são sentidos como partes do self.

Quanto a sua localização psíquica, os elementos beta fazem e não fazem parte da vida mental. Mais uma vez não pude desenhá-los com uma garantia ou sensação de que os estava posicionando corretamente. Bion fará isso comigo toda vez que eu tentar definir, localizar, restringir ou correlacionar logicamente seus conceitos. Trata-se de um conceito limite, entre o mental e o corporal, em que a psique não pode ser descrita como representacional. Talvez seja o espaço próprio do protomental. Se os elementos beta não forem convertidos em alfa e representados na mente para a possibilidade de sonhar e palavrear, existirá uma urgência em aliviar a tensão dolorosa7.

Outra forma interessante de pensar os elementos beta foi exposto por Korbivcher, em que a autora tenta aproximar a área dos fenômenos autísticos do referencial bioniano11. Para isso, ela também se apropria de correlações com a grade desenvolvida por Bion que tem por objetivo construir uma linguagem comum entre os analistas, equivalente a uma tabela periódica dos pensamentos e dos não pensamentos. Em seu trabalho, Korbivcher questiona-se qual a relação entre os fenômenos autísticos e os elementos beta e onde situá-los na gradebioniana. Para ela, os elementos beta abrangem uma ampla gama de fenômenos relativos a diferentes níveis de desenvolvimento mental como transformações em alucinose e transformações projetivas. Chegou inclusive a propor uma 'gradação de elementos beta' sem discorrer mais profundamente sobre o assunto12. Propõe, ao invés do agrupamento dos elementos alfa e beta formadores da barreira de contato e da tela beta, o agrupamento dos fenômenos autísticos que dará origem a uma barreira protetora, a qual denomina "barreira autística". Diferentemente dos elementos beta em si, os fenômenos autísticos não tem função de descarga ou de alivio, mas sim de obter, através deles, proteção. Tal fenômeno, anterior mesmo à presença dos elementos beta, estaria localizado em uma área de tropismo da mente, em que há apenas o movimento de aproximação e de afastamento do organismo com relação a fonte de um estímulo. Essa área constitui uma matriz a partir da qual brota a vida mental e a personalidade será organizada. Respondendo à própria pergunta, a autora propõe a linha A0, anterior a linha A, na qual se situariam tanto os tropismos como os fenômenos autísticos. Seriam os tropismos que buscariam encontrar um objeto capaz de modificá-los e de torná-los elementos psíquicos. Se isso ocorrer, tornam-se elementos beta (linha A), caso contrário, teríamos os elementos autísticos como propõe denominá-los. Eles estariam representados no eixo vertical da grade, em A01 como hipóteses definitórias e em nenhuma outra coluna e os tropismos em A01, A02...


4. Barreira de contato, tela beta e psicose




Acima, (figura 2 - função alfa inoperante) encontra-se o segundo desenho.

Sobre a barreira de contato, Bion reforça sua existência devido a proliferação de elementos alfa oriundos da função alfa, que por sua funcionalidade permeável e composição, separa os fenômenos mentais em dois grupos: de funções conscientes e de funções inconscientes. É fundamental que exista uma resistência atuando na barreira de contato para que memória e repressão sejam possíveis e estabeleçam a distinção entre as duas funções. A função alfa transforma as impressões sensoriais ligadas a uma experiência emocional em elementos alfa: esses se aglomeram e, à medida que proliferam, formam a barreira de contato. Os elementos, portanto, passam seletivamente do inconsciente para o consciente e vice-versa. Ela impede que as emoções e as fantasias de origem interna venham emergir às percepções da realidade acorrentadas às leis da natureza. Em contrapartida, a barreira de contato também não permite que as emoções endopsíquicas sejam invadidas por uma visão realista.

A função alfa nestas definições pode ser vista como um pedaço do aparato mental produzindo a barreira de contato. Tentar observar essa função como uma estrutura, nos confronta com a mesma problemática quando tentamos diferenciar o ego da consciência e da própria função alfa. Para ele, essa problemática ocorre por tentarmos nomear de forma que se assemelha a uma máquina, como se fossem estruturas e funções inanimadas e, como estamos lidando com seres humanos, todas são inundadas por características de vida. Ou seja, essa problemática não necessariamente é uma problemática e pode ser vista mais como uma limitação do pensar lógico ou da própria linguagem.

A barreira de contato realiza uma função crucial por realizar a intermediação da relação e da preservação da crença como um evento na realidade, sujeito às leis da natureza, sem que essa visão seja invadida por emoções e fantasias originadas do inconsciente. A barreira de contato passa então a ser formada pela função alfa e é tomada por elementos alfa que necessitam ser armazenados. Ao mesmo tempo, esses elementos demandam ser inibidos de intrusão no consciente, onde esse evento poderia ser sentido pelo homem como irrelevante ou como um deslocamento da função do pensamento. (Ter que pensar para poder caminhar?)

Para Bion existe, na incapacidade de um paciente sonhar, a ausência ou déficit de elementos alfa formadores da barreira de contato. Forma-se um consciente incapaz de assegurar as funções da consciência, enquanto o outro se revela um inconsciente incapaz de assegurar as funções da inconsciência. Em situações como esta, em que o paciente é incapaz de sonhar, ou que possui um distúrbio da função do pensar e que nada aprendiam ou vivenciavam com as interpretações de Bion, que ele pode conceber situações não correspondentes a noção de barreira de contato saudável.

Bion então visualiza um estado de mente em que a barreira de contato é tomada por elementos beta que coíbe a possibilidade de discriminação entre funções conscientes e funções inconscientes. Inexiste a possibilidade de se estabelecer conexões simbólicas, representacionais entre os elementos beta, agora tomando posse da barreira de contato. Clinicamente, esse estado coloca o pensar e o homem em um estado confusional novamente lembrando o sonhar. Bion cita alguns exemplos perceptíveis desse estado:


1. Uma enxurrada de frases desconexas e imagens, que se o paciente estivesse dormindo, nós teríamos uma boa evidencia de que ele estaria sonhando.

2. Um estado mais perceptível em que o paciente apareceria estar fingindo um sonhar.

3. Um derramamento que evidencia uma alucinação.


Os estados descritos acima estão relacionados ao medo de que a posição depressiva precipitaria um superego assassino. Portanto, existiria a necessidade do paciente de ter a experiência emocional, como a evacuação de elementos beta, por exemplo, na presença do analista, para que o mesmo possa garantir a sua segurança. Aqui Bion nos referencia com uma sutil dica técnica. Primeiramente diz poder ser útil pensar que o paciente está derramando um material com a intenção de reduzir a potência psicanalítica do analista. Essas interpretações, no entanto, conhecidas, têm uma característica comum em que todas são acusatórias, ou alternativamente, elogiosas, como se fossem forçadas à intenção de tranquilizar o paciente de sua real bondade. Nesse estado, uma tela beta provoca uma resposta no paciente inesperada para ele mesmo, assim como respostas do analista carregadas contratransferencialmente. O paciente é incapaz de compreender o seu próprio estado mental ainda que seja informado do mesmo pelo analista. A utilização que ele faz da palavra esta mais próxima da ação que visa descarregar a tensão psíquica do que de um autêntico discurso. Uma mudança drástica é proposta por Bion neste ponto, onde o que antes era visto como ataque à análise e ao analista, para ele, passa a ser entendido como ataque à função simbólica do próprio paciente8.

Para ele é a tela beta que possibilita o paciente psicótico evocar emoções no analista tão vívidas e intensas. Suas associações são os próprios elementos beta que pretendem despertar tais sentimentos no analista que não são relacionados necessariamente com a sua necessidade de interpretações psicanalíticas. Cabe ressaltar que Bion, em uma nota no final do livro, sugere que esse funcionamento, por poder ter uma conduta proposital, deveria ser controlado e ditado pela parte não psicótica da personalidade. A evocação peculiar da tela beta, se bem-sucedida, significa que o paciente esta faminto de material terapêutico genuíno - a verdade- e o resto de seus impulsos são direcionados para tentar extrair a cura de um material terapeuticamente pobre. A tela beta tem a propriedade de suscitar justamente o tipo de resposta emocional que o paciente deseja6.

Dentro desse campo das emoções vividas pelo analista, faz um gancho com o conceito de contratransferência e nos revela o que considera ser as limitações dela. Para ele, o conceito oferece somente de forma parcial a explicação, pois deixa a contribuição do paciente para o fenômeno de lado, dando ênfase as manifestações como um sintoma inconsciente do paciente. A esses exemplos que estão sendo discutidos, cabe-se destacar serem possivelmente de pacientes que estão com seu discurso prejudicado, incapazes de compreender seu próprio estado de mente, mesmo quando apontado a ele. Seu uso de palavras esta a serviço para aliviar a psique de acréscimos de estímulos, mais do que a fala em si. Bion ainda destaca que esta comunicação não esta ali para possivelmente manipular o analista da forma como o paciente neurótico é capaz.


5. REVERSÃO DA FUNÇÃO ALFA E OBJETOS BIZARROS




A reversão da função alfa ocorre quando, ao invés das impressões sensórias serem transformadas em elementos alfa para o uso em pensamentos oníricos e o sonhar inconsciente acordado, a barreira de contato é substituída pela sua destruição. Portanto, na reversão da função alfa, a barreira de contato, dream thoughts e os pensamentos inconscientes acordado são retransformados em elementos beta com aspectos de ego e superego, desvestido de suas características originais então formando a tela beta. A reversão da função alfa sugere também a dispersão da barreira de contato e o estabelecimento de objetos bizarros.

A barreira de contato para Bion é uma função e o ego uma estrutura e não devem ser vistos como termos intercambiáveis. A reversão da função alfa afeta o ego e, portanto, não produz um simples retorno aos elementos beta, mas sim em objetos que diferem dos elementos beta originais, pois esses não possuem a tintura da personalidade aderido a eles, enquanto os da reversão da função alfa sim.

Para o autor, o mais próximo que podemos chegar dos elementos beta é a observação dos objetos bizarros (elementos beta mais traços do ego e do superego). Os elementos beta se referem a algo intrinsicamente além da possibilidade representacional, ou linguagem simbólica.7Portanto, os elementos beta diferem dos objetos bizarros, pois os objetos bizarros são os elementos beta somados a esses traços de ego e de superego. A reversão da função alfa agrega violência a estrutura associada a função alfa.

Clinicamente os objetos bizarros que são impregnados com características do superego poderiam ser considerados o mais próximo da realização do conceito de elementos beta. Mesmo assim, o conceito de elementos beta inclui somente as impressões sensórias.


6. CONCLUSÃO

A Teoria das Funções de Bion é um desafio aos meus olhos de leitor psicanalítico. O confronto com o paradoxal em sua obra põe a forma como lidamos com a aprendizagem em teste, pois ela passa a depender da experiência vivida na leitura e não apenas da compreensão lógica do conteúdo ou da sensatez. Algum grau de loucura talvez seja necessário para a leitura de Bion, bem como tolerância ao desconhecido e a não procura voltada unicamente para o domínio do conhecimento. Deparar-se com as inúmeras terminologias propostas por ele e com seus conceitos em Aprendendo com a Experiência despertou em mim um método de estudo imagético e onírico para tolerar as angústias do não entender.

Por fim, nesse trabalho pude materializar em imagens e palavras minha revisão sobre suas teorias. Em três figuras tentei sintetizar a importância da função alfa e dos elementos alfa e beta e da barreira de contato, assim como seus desdobramentos e um pouco de sua aplicação clínica. Ainda que minha motivação estivesse calcada na dificuldade, o objetivo era alcançar a facilitação para o estudo de uma teoria tão rica e complexa.


REFERÊNCIAS

1. Bion, W. R. (1962). Learning From Experience (1st ed.). London: William Heinemann - Medical Books - Limited.

2. Ogden, T. H. (2004). An introduction to the reading of Bion. International Journal of Psychoanalysis, 85, 285-300.

3. Giffney, N. (2013). Desiring (with) bion: An experience in reading. American Journal of Psychoanalysis, 73(3), 288-304. https://doi.org/10.1057/ajp.2013.16

4. Brown, L. J. (2012). Bion's discovery of alpha function: Thinking under fire on the battlefield and in the consulting room. International Journal of Psychoanalysis, 93(5), 1191-1214. https://doi.org/10.1111/j.17458315.2012.00644.x

5. Tarantelli, C. (2011). Personal Communication.

6. Bléandonu, G. (1993). Wilfred R. Bion - A vida e a Obra (1st ed.). Rio de Janeiro: Imago.

7. Kohon, S. J. (2014). Making contact with the primitive mind: The contact-barrier, beta-elements and the drives. International Journal of Psychoanalysis, 95(2), 245-270. https://doi.org/10.1111/1745-8315.12140

8. Levy, R. (2014). Do simbolizar ao não simbolizar no âmbito de um vínculo: do sonho ao grito de terror por uma presença ausente. Livro Anual de Psicanálise, XXVIII(2), 231-251.

9. Oliner, M. M. (2013). An Essay on Bion's Beta Function. The Psychoanalytic Review, 100(1), 167-183. https://doi.org/10.1521/prev.2013.100.1.167

10. Green, A. (2007). The death drive: Meaning, objections, substitutes. (D. Birksted-Breen, S. Flanders, & A. Gibeault, Eds.), Reading French psychoanalysis. Hove: Routledge, 2010.

11. Korbivcher, C. (1999). Mente primitiva e pensamento. Revista Brasileira de Psicanálise, 33(4), 687-707.

12. Korbivcher, C. F. (2007). Bion e Tustin . Os fenômenos autísticos e o referencial de Bion : uma proposta de aproximação, 41, 54-62.










a Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre, Instituto de Psicanálise da SPPA - Porto Alegre - Rio Grande do Sul - Brasil
b Associação de Psiquiatria do Rio Grande do Sul, Membro da Diretoria - Porto Alegre - Rio Grande do Sul - Brasil

Correspondência

Rafael Mondrzak
e-mail: mondrzak@hotmail.com

Submetido em: 05/05/2019
Aceito em: 12/05/2020

Contribuições: Rafael Mondrzak - Redação - Preparação do original, Redação - Revisão e Edição; Ruggero Levy - Redação - Preparação do original, Redação - Revisão e Edição.

Instituição: Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre, Instituto de Psicanálise da SPPA - Porto Alegre - Rio Grande do Sul - Brasil

* Trabalho de conclusão relativo ao terceiro ano de formação pelo Instituto de Psicanálise da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA).

 

artigo anterior voltar ao topo próximo artigo
     
artigo anterior voltar ao topo próximo artigo