Rev. bras. psicoter. 2020; 22(1):25-37
Mondrzak R, Levy R. Três imagens para a Teoria das Funções de Wilfred R. Bion. Rev. bras. psicoter. 2020;22(1):25-37
Artigo de Revisao
Três imagens para a Teoria das Funções de Wilfred R. Bion*
Three images for the Theory of Functions by Wilfred R. Bion*
Tres imágenes para la Teoría de las Funciones de Wilfred R. Bion*
Rafael Mondrzaka,b; Ruggero Levyb
Resumo
Abstract
Resumen
1. INTRODUÇÃO (MOTIVAÇÃO)
A motivação para a escrita de um trabalho é parte essencial para sua realização. Ela define a estrutura, molda a forma como iremos nos colocar à disposição para ele, seu estilo, o tempo que iremos nos dedicar, a velocidade com que iremos vencer nossos objetivos para esse trabalho e por aí segue. A motivação é como se fosse a utilização dos temperos ou do modo de preparo que diferencia um alimento - em sua forma bruta - e o transforma em um prato exclusivo, com sabor e criação únicos. Imaginemos se duas pessoas, em cantos opostos do mundo, decidem ao mesmo tempo realizar um trabalho, ou escrever um livro sobre o mesmo assunto, para mim, o que dará o sabor de cada, será a motivação que os possibilitou despender essa energia ao processo. Não existem somente motivações majestosas e oriundas de um algum grande insight, até então obscuro ao mundo, que de soco ilumina a mente e a põe a escrever, pintar, desenhar, esculturar por dias e dias a fio até que então a obra fique pronta. Os roteiros de filmes costumam retratar dessa forma que nos encanta, onde após um longo período de ócio subitamente um estalo criativo ocorre e o personagem passa a produzir sua arte incessantemente, de forma obstinada e cega, desejoso de atingir seu produto final. Grandes produções, das mais variadas possíveis, foram motivadas por desastres, tragédias, traumas, dores e perdas irreparáveis - experiências atravessadas pelo indivíduo que o atravessaram sem que ele as tivesse solicitado. Essas motivações também colocam a maquinar o que lhe acometeu e alguns tem a sorte de poder reparar em forma de elaboração, utilizando-se da criatividade como veículo motor. Nesses casos, a motivação talvez esteja recoberta pela necessidade de o conteúdo ser transformado em algo legível, palpável, comestível, visível. Portanto, para mim, é na motivação que encontramos nossa real autoria.
Neste trabalho me propus a revisar parte dos meus estudos iniciais sobre Wilfred R. Bion motivado pela inundação de imagens que sofri e vivi emocionalmente enquanto lia: Aprendendo com a Experiência. Como referencial teórico, daqui para a frente, estarei sempre utilizando a versão em inglês, Learning from Experience, Medical Books, London, 19621, pois acredito que ela nos mantenha mais próximo dos conceitos expostos pelo autor e a tradução para o Português possa gerar ainda mais confusões. Este trabalho também pode ser visto como o que a minha mente alucinou/sonhou e a minha mão desenhou enquanto lia Bion.
Desde o meu primeiro contato com a obra de Bion, fui tomado de forma imagética e onírica por elementos alfa e beta circundantes em minha mente; sonhei com a barreira de contato viva; imaginei guerras entre os objetos bizarros e a realidade, vi os elementos beta tentando a qualquer custo conectarem-se sem sucesso enquanto os elementos alfa riam e exibiam-se pela sua representação, pelo seu simbolismo. De todas essas imagens, construí alguns gráficos que irei apresentar mais adiante no trabalho. Essa é a real autoria: além de realizar uma pequena revisão para esta parte inicial da obra bioniana, também tentar transpor entre texto e imagens minha mente enquanto estudava o Aprendendo com a Experiência pela primeira vez. Adjunta à motivação, houve também a necessidade de evacuar minha pouca compreensão do que lia para imagens a fim de tornar a leitura mais agradável, ainda que Bion tivesse me avisado nas primeiras páginas que não deveria me preocupar com isso. O contradisse e sofri: "O livro foi projetado para ser lido diretamente uma vez sem verificar as partes que podem ser obscuras no início. Algumas obscuridades se devem à impossibilidade de escrever sem pressupor familiaridade com algum aspecto de um problema que só será resolvido posteriormente." (p. 8, tradução própria)1. Foi melhor para mim ter tido a possibilidade de ler e desenhar ao mesmo tempo, do que ler e reler obsessivamente procurando entender.
A possibilidade para "desenhar textos" é rara na literatura psicanalítica, principalmente devido ao grau de abstração com que lidamos, mas também por uma filosofização do conteúdo. Se retornarmos ao positivismo Freudiano, encontraremos ao longo de sua obra inúmeros rabiscos, gráficos e imagens tanto de autoria própria como também de seus pacientes. Observei, portanto, dentro da obra de Bion, uma boa oportunidade para desenhar. No futuro, espero obter auxílio tanto quanto a localização dos conceitos dentro da imagem que apresentarei, como também para adições ou supressões de outros conceitos da obra de Bion os quais não incluí, conforme necessidade ou importância: "...ao oferecer seus pensamentos sobre como Bion gostaria que Aprendendo com a Experiência fosse lido, retrata um estado de mente (gerado no ato da leitura) que é ao mesmo tempo aberto a viver uma experiência emocional e ativamente engajado em esclarecer obscuridades e obscurecer (isto é, liberar-se dos fechamentos de) clarificações." (p. 288)2
Meu foco neste trabalho foi revisar principalmente alguns de seus conceitos centrais expostos nos primeiros dez capítulos do livro citado acima em que apresenta fundamentos centrais de sua obra. Ao longo do livro, Bion expõe o modo como o pensamento evolui para a abstração e a complexidade a partir de fontes experimentais rudimentares. O pensamento é o objeto de estudo, então nada mais coerente que estar atento (desenhar) os meus pensamentos enquanto estudava. Concordo com Giffney quando destaca que concomitantemente com a leitura consciente dos livros de Bion, devemos estar ainda mais atentos a valorizar o que a linguagem e as palavras nos fazem sentir em suas variadas possibilidades3. Por vezes, para mim, ler Bion aproxima-se da mesma atenção que dou à minha mente quando estou escutando meus pacientes. Ainda que os livros estejam escritos em palavras, eles raramente irão se limitar a uma só comunicação. Bion encaixa-se majestosamente para ler sentindo.
Para finalizar essa parte introdutória ressalto, após inúmeras releituras, a importância pessoal que senti do trabalho deixado por Bion para prática diária com meus pacientes e para comigo mesmo - minha mente como um todo. Sua aproximação com conceitos matemáticos, por exemplo, possibilitou a expansão do meu pensar e na forma como lido com objetos de dedução científica, processos intuitivos, dilemas entre o lógico e o ilógico, paradoxos e a própria abstração matemática, para citar alguns. Enfim, na forma como lido com a complexidade psíquica dos pacientes e de seus sofrimentos.
Bion inicia seu livro introduzindo ao leitor uma experiência do pensar através do que chamou Teoria das Funções. Para ele: "the theory of functions makes it easier to match the realization". Cabe ressaltar aqui que o termo realização, como se encontra nas notas, é referência à geometria Euclideana (também um grande motivador da minha geração de imagens ao longo da leitura) das duas ou três dimensões, como estrutura para formação de espaços dimensionais. Essa geometria é formulada conforme postulações (são 23 ao todo), como exemplo: (a) ponto é aquilo de que nada é parte; (2) e linha é comprimento sem largura; ... (23) paralelas são retas que, estão no mesmo plano, e sendo prolongadas ilimitadamente em cada um dos lados, em nenhum se encontram. Assim, também na nota, é esclarecido que o termo sistema dedutivo está ligado aos sistemas lógicos, tal como o sistema Euclideano, dos axiomas iniciais, em que surgem postulados e desses, passíveis de serem provados verdadeiro pelo sistema dedutivo, podem ser considerados teoremas. Para Bion, o uso de tais definições visa dinamizar a teoria do pensar, utilizando-se da abstração matemática das realizações.
O desenvolvimento das teorias das funções e da função alfa foi um desencadeamento de múltiplos aspectos da vida de Bion que agregaram-se como uma espécie de fato selecionado para seu desenvolvimento, principalmente entre 1958 e 1960 em seus escritos4. Os conceitos desenvolvidos estariam supostamente relacionados entre si a sentimentos dolorosos incapazes de serem pensados pelo autor. Um desses aspectos foi a influência sofrida pelo autor em relação a sua participação como comandante de tanque na Batalha de Amiens em 1918. Um segundo, foi a elaboração científica da função alfa realizada em Cogitações, entre 1959 e 1960 e um terceiro foi fruto do desenvolvimento dos trabalhos de Bion sobre esquizofrenia escritos ao longo de 1950. Concomitantemente, o casamento com Francesca em 1951 também contribuiu ao permitir que ele pudesse conter e elaborar sentimentos junto a elade seu passado traumatizante, agora também em estudo e observado em seus pacientes psicóticos4. Além disso, a função alfa deu o instrumento necessário para Bion poder pensar o pensamento psicótico enquanto o auxiliava a elaborar seus traumas da Primeira Guerra Mundial5.
1. Uma enxurrada de frases desconexas e imagens, que se o paciente estivesse dormindo, nós teríamos uma boa evidencia de que ele estaria sonhando.
2. Um estado mais perceptível em que o paciente apareceria estar fingindo um sonhar.
3. Um derramamento que evidencia uma alucinação.
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