Rev. bras. psicoter. 2020; 22(1):15-24
Gerchman FC. De Copérnico ao binarismo de gênero: o brincar e o brinquedo. Rev. bras. psicoter. 2020;22(1):15-24
Artigo Original
De Copérnico ao binarismo de gênero: o brincar e o brinquedo
From Copernicus to gender binary: play and toy
De Copérnico al género binario:el juego y el jugueteFelipe Canterji Gerchman
Felipe Canterji Gerchman
Resumo
Abstract
Resumen
I
Este escrito surge a partir de questões suscitadas durante um seminário de formação em psicanálise intitulado sexualidade feminina e masculina, e do convite realizado por uma colega do mesmo de ir repensando esta nomenclatura ao longo do semestre. Partindo dessa abertura, concorda-se com Sissi Castiel1 (p. 26) quando afirma "que precisamos fazer trabalhar a metapsicologia, pois existe sim a redução própria de alguns conceitos, mas também existem as leituras que reduzem os conceitos". Desta forma, este trabalho objetiva apresentar algumas reflexões sobre leituras psicanalíticas em sua relação com as questões de gênero, em especial com o sistema de oposição binário, e defende o brincar como potente paradigma da escuta analítica da sexualidade.
Para isso, trabalhos de autores clássicos e contemporâneos são utilizados como fundamentação teórica. Inicialmente é apresentada uma breve seleção de contribuições críticas acerca das problemáticas do binarismo e dos diálogos entre estudos de gênero e psicanálise, seguido de algumas ideias sobre o descentramento do sujeito. Propõe-se o brincar como paradigma de escuta, devendo este conceito ser entendido em sua complexidade, para além da clínica com crianças. Duas vinhetas clínicas são utilizadas para ilustrar a argumentação. Nas considerações finais, uma integração das contribuições apresentadas ao longo do trabalho permite pensar que, ainda que o Eu possua identidade de gênero, o sujeito não é determinado por esta identidade.
II
Para iniciar o pensar sobre as problemáticas do binarismo, vale destacar alguns trabalhos publicados sobre o tema em seu contato com a psicanálise. Dentre eles, Psicanálise e Transexualismo, de Patrícia Porchat2. Porchat propõe uma conceituação inicial para pensar "gênero", pontuando que este conceito "agrupa os aspectos psicológicos, sociais, históricos e culturais, associados à feminilidade e à masculinidade, por oposição ao termo "sexo", que designa os componentes biológicos e anatômicos" (p. 17). Refere o trabalho de Butler a partir daqueles que não se enquadram nas noções binárias de gênero, abjetos colocados fora da fronteira das identificações reconhecíveis pela sociedade, levando a pensar gênero como ato performativo, como categoria política.
Porchat2 faz um pequeno percorrido histórico, inicialmente retomando as contribuições de Thomas Laqueur para apontar que o dimorfismo sexual é mais recente do que pode parecer, datando do século XIX. A autora pontua que até então, o que predominava era o modelo hierárquico, no qual só há um sexo, visto que o feminino é entendido como uma inversão inferior do masculino. Com o dimorfismo sexual, o que se apresenta é a oposição binária, marcada pelo genital.Vale lembrar que é no contexto do dimorfismo sexual que nasce a psicanálise.
Porchat2 marca ainda que, mesmo não se referindo ao termo identidade de gênero, Freud faz importantes contribuições nesse âmbito, ao enfatizar que a transformação do menino em homem masculino e da menina em mulher feminina não é um processo natural e, ao destacar o conceito de pulsão, mostra que a sexualidade não cabe em uma identidade. A autora lembra uma nota de rodapé de Freud3 sobre o tema do feminino e do masculino, da qual destaca-se aqui alguns trechos:
É preciso distinguir pelo menos três usos. 'Masculino' e 'feminino' são usados por vezes no sentido de atividade e passividade, por vezes num sentido biológico e por vezes, ainda, num sentido sociológico. O primeiro destes três significados é o essencial e o mais útil na psicanálise. [...] nos seres humanos a masculinidade pura ou a feminilidade não se pode encontrar nem num sentido psicológico nem num biológico
Os caminhos e objetos para obtenção de satisfação serão inventados singularmente. A sexualidade, que dita essas invenções, tem mais a ver com o pulsional (Freud, 1915) que com o corpo, mesmo que o corpo tenha sua parte nisso.
É justamente contra isso que a multidão queer se oporia, contra qualquer binarismo essencializante e impermeável a uma análise histórico-contingente. Para o pensamento queer: "[...] não existe diferença sexual, mas uma multidão de diferenças, uma transversalidade de relações de poder, uma diversidade de potências de vida"
A ideia restrita de heliocentrismo era apenas uma etapa; a revolução copernicana abria parcialmente para a ausência de centro. Num mundo de distâncias quase infinitas, torna-se absurdo tentar conservar ainda uma das estrelas entre as outras, sol ou sistema solar, como centro.
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