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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2020; 22(1):15-24



Artigo Original

De Copérnico ao binarismo de gênero: o brincar e o brinquedo

From Copernicus to gender binary: play and toy

De Copérnico al género binario:el juego y el jugueteFelipe Canterji Gerchman

Felipe Canterji Gerchman

Resumo

Este trabalho visa apresentar algumas reflexões sobre leituras psicanalíticas em sua relação com as questões de gênero, em especial com o sistema de oposição binário, e defende o brincar como potente paradigma da escuta analítica da sexualidade. Inicialmente é apresentada uma breve seleção de contribuições críticas acerca das problemáticas do binarismo, seguido de algumas ideias sobre o descentramento do sujeito e o brincar. Duas vinhetas clínicas são utilizadas para ilustrar a discussão. Nas considerações finais, uma integração das contribuições apresentadas ao longo do trabalho permite pensar que, ainda que o Eu possua identidade de gênero, o sujeito não é determinado por esta identidade.

Descritores: Identidade de gênero; Inconsciente; Psicanálise; Sexualidade

Abstract

This paper aims to present some reflections on psychoanalytic readings and its relation to gender issues, especially the binary opposition system, and defends playing as a powerful paradigm for the analytical listening of sexuality. A brief selection of critical contributions on the issues of binaryism is presented, followed by some ideas about subject decentralization and playing. Two clinical vignettes are used to illustrate the discussion. In the final considerations, an integration of the contributions presented throughout the work allows us to think that, even if the Self has a gender identity, the subject is not determined by this identity.

Keywords: Gender identity; Psychoanalysis; Sexuality; Unconscious

Resumen

Este artículo tiene como objetivo presentar algunas reflexiones sobre las lecturas psicoanalíticas en relación con las cuestiones de género, especialmente el sistema binario de oposición, y defiende el juego como un paradigma potente para la escucha analítica de la sexualidad. Inicialmente, se presenta una breve selección de contribuciones críticas sobre los problemas del binario, seguida de algunas ideas sobre la descentralización del sujeto y el juego. Se utilizan dos viñetas clínicas para ilustrar la discusión. En las consideraciones finales, una integración de las contribuciones presentadas a lo largo del trabajo nos permite pensar que, incluso si el Yo tiene una identidad de género, el sujeto no está determinado por esta identidad.

Descriptores: Identidad de género; Inconsciente; Psicoanálisis; Sexualidad

 

 

I

Este escrito surge a partir de questões suscitadas durante um seminário de formação em psicanálise intitulado sexualidade feminina e masculina, e do convite realizado por uma colega do mesmo de ir repensando esta nomenclatura ao longo do semestre. Partindo dessa abertura, concorda-se com Sissi Castiel1 (p. 26) quando afirma "que precisamos fazer trabalhar a metapsicologia, pois existe sim a redução própria de alguns conceitos, mas também existem as leituras que reduzem os conceitos". Desta forma, este trabalho objetiva apresentar algumas reflexões sobre leituras psicanalíticas em sua relação com as questões de gênero, em especial com o sistema de oposição binário, e defende o brincar como potente paradigma da escuta analítica da sexualidade.

Para isso, trabalhos de autores clássicos e contemporâneos são utilizados como fundamentação teórica. Inicialmente é apresentada uma breve seleção de contribuições críticas acerca das problemáticas do binarismo e dos diálogos entre estudos de gênero e psicanálise, seguido de algumas ideias sobre o descentramento do sujeito. Propõe-se o brincar como paradigma de escuta, devendo este conceito ser entendido em sua complexidade, para além da clínica com crianças. Duas vinhetas clínicas são utilizadas para ilustrar a argumentação. Nas considerações finais, uma integração das contribuições apresentadas ao longo do trabalho permite pensar que, ainda que o Eu possua identidade de gênero, o sujeito não é determinado por esta identidade.


II

Para iniciar o pensar sobre as problemáticas do binarismo, vale destacar alguns trabalhos publicados sobre o tema em seu contato com a psicanálise. Dentre eles, Psicanálise e Transexualismo, de Patrícia Porchat2. Porchat propõe uma conceituação inicial para pensar "gênero", pontuando que este conceito "agrupa os aspectos psicológicos, sociais, históricos e culturais, associados à feminilidade e à masculinidade, por oposição ao termo "sexo", que designa os componentes biológicos e anatômicos" (p. 17). Refere o trabalho de Butler a partir daqueles que não se enquadram nas noções binárias de gênero, abjetos colocados fora da fronteira das identificações reconhecíveis pela sociedade, levando a pensar gênero como ato performativo, como categoria política.

Porchat2 faz um pequeno percorrido histórico, inicialmente retomando as contribuições de Thomas Laqueur para apontar que o dimorfismo sexual é mais recente do que pode parecer, datando do século XIX. A autora pontua que até então, o que predominava era o modelo hierárquico, no qual só há um sexo, visto que o feminino é entendido como uma inversão inferior do masculino. Com o dimorfismo sexual, o que se apresenta é a oposição binária, marcada pelo genital.Vale lembrar que é no contexto do dimorfismo sexual que nasce a psicanálise.

Porchat2 marca ainda que, mesmo não se referindo ao termo identidade de gênero, Freud faz importantes contribuições nesse âmbito, ao enfatizar que a transformação do menino em homem masculino e da menina em mulher feminina não é um processo natural e, ao destacar o conceito de pulsão, mostra que a sexualidade não cabe em uma identidade. A autora lembra uma nota de rodapé de Freud3 sobre o tema do feminino e do masculino, da qual destaca-se aqui alguns trechos:


É preciso distinguir pelo menos três usos. 'Masculino' e 'feminino' são usados por vezes no sentido de atividade e passividade, por vezes num sentido biológico e por vezes, ainda, num sentido sociológico. O primeiro destes três significados é o essencial e o mais útil na psicanálise. [...] nos seres humanos a masculinidade pura ou a feminilidade não se pode encontrar nem num sentido psicológico nem num biológico


Silvia Alonso4, parte da botânica para pontuar que "nem nas plantas o "destino anatômico" age sozinho, imaginem o que dizer quando inconsciente, linguagem e fantasmas estão presentes como acontece no ser humano" (p. 16). A autora marca conceitos da psicanálise e aponta que as identidades de gênero não se limitam à ordem da consciência, mas sexo, gênero e desejo se articulam de maneira complexa e é na inventividade e criatividade do sujeito que se encontra uma solução singular. Aqui vale acrescentar a questão proposta por Miriam Chnaiderman5 a partir da observação decross-dressers: "há um ritual em que a/o personagem é encarnado. Uma sexualidade construída, encenada. Mas existiria uma sexualidade que não fosse encenada?" (p. 45). Janete Dócolas6, retomando Freud e Laplanche, destaca que o tema da diferença em psicanálise é complexo, e se faz presente na constituição de cada um desde os primeiros encontros com o outro, encontros esses recheados por enigmas, frente aos quais a criança mobiliza variadas fantasias na tentativa de dar representação. A autora volta aos anos de 1908 e 1909, data em que Freud publica dois importantes trabalhos sobre o tema, o caso que ficou conhecido como O Pequeno Hans7 e o trabalho Sobre as Teorias Sexuais Infantis8, nos quais consta que a investigação sobre a origem dos bebês leva o pequeno investigador (Hans) a descobrir a diferença entre os sexos, e conduz Freudteorizar sobre a fantasia infantil quanto à hipótese do monismo fálico. Hoje podemos nos perguntar se a diferença marcada nesta etapa é uma descoberta ou se pode ser considerada mais uma das fantasias sexuais infantis, apoiada na percepção da diferença genital, mas colorida pelo discurso binário e heteronormativo.

O binarismo e a heteronormatividade, como trabalhados por Butler e retomados por Porchat2, são marcados aqui, pois estão diretamente ligadas à cena primária proposta por Freud, sempre descrita como encenada por um homem e uma mulher, e tomada como generalização normativa - como solução (de compromisso?) ao enigma- por parte da criança. Além disso, se observamos nos adultos uma certa dificuldade na compreensão das discussões sobre sexo, gênero e orientação sexuali, o que dirá nas crianças dos tempos de Freud? Vale marcar ainda, que é dessa solução binária, cisnormativa e heteronormativa que advém a investigação sobre a diferença anatômica entre os sexos e é com base nelas, tal qual observado em Freud9 que se constrói o complexo de castração, seja pela via do temor de perder o pênis, seja pela inveja do mesmo.

Dócolas6 marca a abertura que a teoria freudiana trás, ao diferenciar necessidade biológica de experiência de satisfação, e afirma retomando texto sobre as pulsões e seus destinos (p. 14):


Os caminhos e objetos para obtenção de satisfação serão inventados singularmente. A sexualidade, que dita essas invenções, tem mais a ver com o pulsional (Freud, 1915) que com o corpo, mesmo que o corpo tenha sua parte nisso.


Talvez se possa entender que isso está de acordo com Porchat2, ao marcar que se por um lado o discurso não funda o corpo, por outro não há corpo puro.

Sissi Castiel1, ao tratar a questão das leituras atuais sobre complexo de édipo, também reforça o lugar do pulsional, que não se reduz as vicissitudes do corpo. A autora marca a necessidade de não equacionar a questão da alteridade com a questão da diferença anatômica, e afirma que seria empobrecedor reduzir à diferença anatômica, conceitos como os de sexualidade infantil, castração e édipo. Assinala ainda que se a sexualidade infantil foi formulada por Freud em uma época de vigência da família nuclear monogâmica, ela não precisar ficar condicionada a isso.

Dessa forma, vai-se percebendo que se a partir de certas leituras a psicanálise pode posicionar se de forma binária, cisnormativa e heteronormativa, por outro a obra freudiana abre a possibilidade de, como afirma EuremaMoraes11 (p. 34), surgir "o sujeito considerado em sua reflexão que dá ao humano uma singularidade intransferível, incorporando, por tanto, o estatuto da diferença". Aqui entrase na questão da diferença que, longe de reduzir o sujeito a somente duas possibilidades, propõe a diversidade das construções subjetivas. Isso parece estar em acordo com Sigal12, quando afirma que o sistema binário não deve ser a modalidade instituída, caso se queira analisar o campo da diversidade.

Sigal12 retoma uma diferenciação importante, ao tratar do tema da sexualidade. A autora lembra que, em psicanálise, a identidade diz respeito, sempre, ao Eu. Se por um lado pode abranger parte dos aspectos inconsciente do Eu ou do pré-consciente, não diz respeito ao inconsciente. Aqui lembramos que o sujeito do qual a psicanálise trata, é o sujeito do inconsciente. Já, de cara, vemos que o sujeito do inconsciente não possui identidade de gênero. Nesse sentido, concorda-se com a afirmativa de Julia Geyer13, na conclusão de seu trabalho Maria Marina: as encruzilhadas da construção da identidade sexual, quando afirma que "a psicanálise é queer por essência" (p. 51).

Não é caso de citar todos os desenvolvimentos realizados pelo contato entre psicanálise e estudos de gênero, mas vale mencionar o trabalho magistral de Cavalheiro14, intitulado Caos, norma e possibilidades de subversão: a psicanálise nas encruzilhadas do gênero. O autor realiza uma vasta revisão crítica da bibliografia psicanalítica em seu contato com as teorias de gênero, marcando os efeitos que o não reconhecimento dos pressupostos generificados que operam de forma subjacente nas teses psicanalíticas podem ter sobre a teoria e a clínica. O autor comenta como a questão do gênero é tratada de modos diferentes por distintas áreas de estudo: através dos processos de identificação na psicanálise, pela análise das regras e normas socioculturais por parte da antropologia, e em seu caráter político pelos estudos de gênero e teorias queer. Cavalheiro defende a importância dos estudos interdisciplinares para que a escuta analítica não se torne uma escuta prescritiva.

O autor segue desenvolvendo sua crítica através da análise da evolução do contato entre psicanálise e estudos de gênero, percorrendo as contribuições de diversos autores, dentre os quais vale citar Moneyii, Stolleriii , Bleichmariv, Chodorowv, Ambravi, Zambranovii, Rubinviii, Scottix e Butlerx. Também realiza um percorrido sobre importantes contribuições providas por autores como Preciadoxi, Ayouchxii, Birmanxiii e Gherovicixiv. Cavalheiro lança olhar sobre o modo com que certas teorizações correram o risco de cair em uma equivalência entre heterossexualidade, norma e uma teleologia da ideia de saúde, mas também aponta para contribuições que reforçam o potencial da herança freudiana possui de ir mais além de uma posição generalista.


III

Sigal12 aponta que no diálogo com as teorias de gênero, há algo que a psicanálise não abre mão: o descentramento do Eu. A autora retoma as ideias laplanchianas ao apontar que a psicanálise realiza um deslocamento da concepção ptolomaica (terra/eu, centro do universo), o que auxilia na compreensão de que o objeto da pulsão é essencialmente vicário e contingente. Nesse ponto é valido retomar a ideia freudiana do polimorfismo, tal qual aponta Castiel1 (p. 27), quando entende que este "está aí para demonstrar que as posições relativas ao gênero são muitas e esse é um dos fundamentos que não podemos esquecer".

Esta afirmativa de Sigal parece encontrar ressonância tanto com Gayer, ao dizer que a psicanálise é queer por essência, como com o argumento de Cavalheiro14 (p. 90), ao citar as contribuições de Preciado:


É justamente contra isso que a multidão queer se oporia, contra qualquer binarismo essencializante e impermeável a uma análise histórico-contingente. Para o pensamento queer: "[...] não existe diferença sexual, mas uma multidão de diferenças, uma transversalidade de relações de poder, uma diversidade de potências de vida"


Vemos como essa linha de pensamento vai proporcionando enlaces possíveis entre os estudos de gênero e a psicanálise. Laplanche também contribui, ao trabalhar o deslocamento de centro, de uma perspectiva ptolomaica para a revolução copernicana, em seu artigo A Revolução Copernicana Inacabada15:


A ideia restrita de heliocentrismo era apenas uma etapa; a revolução copernicana abria parcialmente para a ausência de centro. Num mundo de distâncias quase infinitas, torna-se absurdo tentar conservar ainda uma das estrelas entre as outras, sol ou sistema solar, como centro.


Laplanche retoma isso que Freud16 chamou de ferida narcísica, ao mesmo tempo em que problematiza a obra freudiana, apontando estar presente nela tanto traços ptolomaicos como copernicanos.

Nesta via, Sigal12 refere a ênfase que Laplanche dá as atribuições de gênero marcadas pelas mensagens enigmáticas advindas do outro, mas que podem escapar, inclusive, ao outro, por dizerem respeito a sua sexualidade inconsciente. Nesse sentido, Alonso4 procura transmitir a dimensão dessa dinâmica, ao marcar que há um bombardeio dessas mensagens enigmáticas, estando o próprio adulto alheio a toda ambiguidade de suas atribuições. Neste ponto, retoma-se a contribuição de Laplanche17 quanto a ter um aval e um capital fantasmático a ser utilizado no processo de simbolização.

Assim, vai se entendendo que a revolução copernicana inacabada é um ponto chave para a diferenciação Eu x Sujeito, aspecto de grande importância para uma escuta não normativa ou prescritiva em psicanálise, bem como para o reconhecimento da abertura proposta pela obra freudiana para a possibilidade plural dos destinos pulsionais. Por onde vai, então, a escuta psicanalítica na clínica? Propõe-se que isto se encontra na clínica, através do que se poderia entender como a primazia do brincar sobre o brinquedo, conceitos entendidos em sua função, não reduzidos à clínica com crianças.


DISCUSSÃO

João é uma criança que, em uma das sessões finais de seu tratamento, entra na sala e vai até a caixa de brinquedos. Escolhe brincar com espadas. Pega uma para si, e me entrega outra. Mas que brincadeira João propõe brincar? Ele diz que as espadas na verdade são instrumentos musicais, que nós somos uma banda, e que vamos criar uma música para falar sobre como foi bom estar naquele espaço durante o seu tempo de tratamento. Vamos co-criando uma letra para a música, cantando e fazendo sons de guitarras, através dos quais expressamos emoções referentes ao vínculo vivido ali. João me convida a brincar de amor, de vínculo, de cuidado, etc.

Maria é uma criança que, em certa sessão, entra na sala e vai até a caixa de brinquedos. Escolhe brincar com bonecas e casinha. Mas que brincadeira Maria propõe brincar? Ela diz que há inimigos na casa que querem roubar as coisas, e que precisamos mata-los, cortar todo os seus corpos em pedacinhos com uma faca, colocar suas partes retalhadas em sacos de lixo e esconder no quintal. Maria me convida a brincar de morte, violência, competição, etc.

O objetivo destes recortes não é interpretar o significado preciso dos conteúdos propostos por Maria e João, mas assinalar a manifestação observada em ambos os casos quanto às problemáticas do binarismo e o descentramento do sujeito. João escolhe brinquedos em acordo com o que a cultura atribui como escolhas possíveis para a identidade de gênero que lhe foi atribuída, as espadas. Maria também, as bonecas. Mas isso diz respeito ao Eu. A partir desse ponto, a sessão se torna espaço para manifestação do sujeito do insciente, não somente do Eu. O sujeito é queer, subverte as identificações do Eu, e é Maria quem brinca de assassinato - culturalmente colocado como "coisa de menino" e João quem brinca de vínculos de amor - culturalmente colocado como "coisa de menina".

Defende-se aqui que não é o mais importante, à priori, para a escuta analítica na clínica, se a cultura atribui determinadas brincadeiras como "coisa de menino" ou "de menina", pois entende-se que o sujeito do inconsciente vai - no melhor dos casos - descentrar o Eu e subverter o sistema de oposição binária. Há atribuições de gênero na escolha do brinquedo. Mas o que importa, em uma sessão de análise, é que a brincadeira do João é "coisa do João", e que a da Maria é "coisa da Maria", de forma que João também poderia ter pego as bonecas, e Maria as espadas.

Mas não pegaram. João escolheu as espadas, e Maria, as bonecas. O que isso no diz? Neste ponto retoma-se o conceito de violência primária, proposto por Piera Aulagnier. Como explica Rosa18, Piera traz a ideia de que as palavras e os atos maternos que proporcionam cuidado ao recém-nascido, são anteriores à sua capacidade de os entender e, desta forma, violentos, mas necessários para a constituição do Eu. No caso da violência secundária, o excesso ou a falta impossibilita que o infans venha a decodificar os enunciados, que chegam de forma intrusiva. Assim sendo, pode-se pensar que é esperado que o Eu apresente certas características atribuídas pela cultura, inclusive determinado conflito com esta, mas é sobre a primazia do sujeito do inconsciente que a escuta analítica opera. No caso do excesso, João e Maria não conseguiriam utilizar as "coisas da cultura" para falar sobre as suas "coisas", o sujeito estaria alienado não só ao outro, mas ao Eu.

Por isso, defende-se aqui a primazia da capacidade de brincar e da análise da brincadeira frente ao brinquedo. Se é com espada, boneca, pênis, anus, seio, cabelo, etc. que o sujeito opera a sua sexualidade, não é tão importante como o que se dá nessa brincadeira. Isso, é claro, não se reduz ao atendimento de crianças, estando também presente na fala dos adultos.


IV

Cabe, neste ponto, um breve adendo. No momento que este artigo está sendo revisado, ocorre no mundo uma pandemia pelo vírus COVID-19. Isto é citado pois o tema se relaciona. Justamente neste delicado momento, fica exposta a importância de preservar o caráter analítico que diferencia Eu x Sujeito, para não cair em uma escuta prescritiva e generalizante. A importância do reconhecimento da situação real é inquestionável, entretanto também o é a necessidade de escutar o sujeito, para além das aparências ptolomaicas induzidas pela situação pandêmica.


V

Entende-se que não seria possível, em um escrito desta extensão, esgotar a discussão proposta, ou dar o devido valor a todas as contribuições relevantes sobre o tema. Espera-se, entretanto, ter sido possível explorar algumas propostas úteis para a clínica psicanalítica. A partir das contribuições apresentadas, entende-se que a revolução copernicana inacabada é um ponto chave para a diferenciação Eu x Sujeito, necessária para ir além de uma perspectiva binária, cisnormativa e heteronormativa em psicanálise. Constata-se que, de Freud aos psicanalistas contemporâneos, muitas são as discussões e chaves de leitura possíveis, sendo esse um tema essencial para que a psicanálise não se torne prática de exclusão, de produção de abjetos, mas para que também não se torne uma fábrica alienante de objetos, inteligíveis, pois, tal como marca a teoria freudiana, nenhuma sexualidade é completamente inteligível.

De todo modo, finaliza-se retomando o importante apontamento de Freud19, no capítulo 7 da Interpretação dos Sonhos, ao alertar aqueles que buscassem encontrar a tópica freudiana através de estudos anatômicos, de que aquilo do qual falava tinha a ver com analogias e representações provisórias ou, como aparece na tradução para o espanhol20, representações auxiliares. Vê-se, então, que mesmo Freud, ao postular o funcionamento do aparelho psíquico, teria em mente que o mais importante não era a concretude de seus brinquedos/representações auxiliares, mas a brincadeira que poderia se desenvolver através deles.


REFERÊNCIAS

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18. Rosa, LW. Por que Piera Aulagnier? Rev. da SBPdePA, 2009. 11(1): 207-217.

19. Freud, S. A interpretação dos sonhos. (1900) Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago; 1974. (Edição Standard Brasileira, IV).

20. Freud, S. La interpretación de los sueños. (1900) Obras Completas. Buenos Aires: Amorrortu; 1978-85.Sigmund Freud Associação Psicanalítica, Formação em Psicanálise - Porto Alegre - RS - Brasil










Correspondência

Felipe Canterji Gerchman
e-mail: fcgerchman@gmail.com

Submetido em: 07/12/2019
Aceito em: 06/05/2020

Contribuições: Felipe Canterji Gerchman - Investigação

Instituição: Sigmund Freud Associação Psicanalítica - Porto Alegre - RS - Brasil


i Um exemplo desta dificuldade é a reação à visita da filósofa Judith Butler ao Brasil, quando manifestantes contrários queimaram uma boneca com o rosto de Butler aos gritos de "queima, bruxa", tal qual noticiado em https://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,judith-butler-protesto-saopaulo,70002075046

ii Money, J. Gay, Straight, and in-between: the sexology of erotic orientation. New York: Oxford University Press, 1988.

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vii Zambrano, E. Diálogos de uma psicanalista com a Antropologia: um relato pessoal. In C. Françoia, P. Porchat & P. Corsetto (Orgs.). Psicanálise e gênero: narrativas feministas e queer no Brasil e na Argentina. (pp. 17-33). Curitiba: Calligraphie, 2018.

viii Rubin, G. Políticas do Sexo (1975). São Paulo: Ubu Editora, 2017.

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x Butler, J. Undoing gender. New York and London: Routledge, 2004.

xi Preciado, P. B. Manifesto contrassexual (2004). São Paulo: n-1 edições, 2014.

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