Rev. bras. psicoter. 2019; 21(3):93-98
Arruda IV. A arte de fingir dor: o que diz o poema Autopsicografia sobre quem somos como humanos. Rev. bras. psicoter. 2019;21(3):93-98
Resenha
A arte de fingir dor: o que diz o poema Autopsicografia sobre quem somos como humanos
The art of feigning pain: what the poem Autopsycography tells us about who we are as humans
El arte de fingir dolor: lo que dice el poema Autopsicografía sobre quiénes somos como humanos
Isadora Vilela de Arruda
Resumo
Abstract
Resumen
INTRODUÇÃO
O poema 'Autopsicografia' é uma das obras mais conhecidas e constantemente relembradas de Fernando Pessoa. Em três curtas estrofes de quatro versos, o poeta se posiciona quanto ao fazer poético, delicadamente abordando o contato com a realidade, com o outro e com quem se é. Ou, ao menos, a tentativa de contato, pois segundo o autor tudo não passa de um fingimento alimentado pela interação entre razão e emoção.
O enfoque usualmente utilizado para compreender a obra prioriza a função catártica apresentada por ela como objetivo da poesia. A possibilidade de reestabelecer o equilíbrio interno pela purgação das emoções e paixões na interação com o imaginário, o não-real, o fingimento. Tal prisma interpretativo estabelece a estética como uma das principais dimensões do texto e não deixa de ser verdadeira. Todavia, o poema possibilita um aprofundamento psicológico que não deve ser negligenciado, seu próprio título o anunciando como uma autoavaliação psicológica feita através de palavras escritas.
Segundo essa análise feita pelo eu lírico, o poeta é um fingidor incapaz de discernir entre o inventado e o real, entre o que se sente e o que se relata sentir, embora esteja extremamente consciente da diferença entre essas duas dimensões de si. Percebe também que seus leitores lidam com o mesmo dilema, interpretando as suas palavras de forma distinta das realidades internas de ambos e criando uma quarta dor, uma outra dimensão para a experiência emocional e racional, ao processarem a interação com o texto, com o eu lírico e a própria realidade. Ainda, o eu lírico percebe por trás dessa rede o trabalho ao mesmo tempo sincronizado e incongruente do coração, a mover-se em círculos, e da razão, expressando-se retilineamente como trilhos.
DISCUSSÃO
É interessante observar, inicialmente, a primeira estrofe do poema:
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
A palavra fingir é derivada do latim fingere, que significava modelar na argila, dar forma a qualquer substância plástica, esculpir, donde dar feição a, afeiçoar e, por conseguinte, ganhou também as acepções de reproduzir traços, representar, imaginar, fingir, inventar, segundo o dicionário etimológico. Embora, atualmente, haja uma vinculação pejorativa do termo à ideia de falsidade, fingir nada mais é que representar, ou seja, recriar-se a si mesmo e o mundo em volta.
Essa é uma ação distinta da de reapresentar, repetir ou reproduzir, pois em contato com a singularidade do poeta e as suas possibilidades de expressá-la, a realidade se irrealiza, torna-se símbolo, linguagem e acaba por transgredir a sua essência. Assim interpretado, o poema aproxima-se de ideias desenvolvidas por Maturana2 e Varela2 sobre a vivência do sujeito. Segundo esses autores, responsáveis pelo desenvolvimento do conceito de autopoiese, o sujeito é um organismo vivo em constante mudança, porém dotado de identidade e da capacidade de mantê-la através de suas inevitáveis transformações no contato com o que é externo, o que é real.
Os seres são, consequentemente, máquinas autopoiéticas autônomas, singulares e fechadas em si mesmas. Portanto, os efeitos da perturbação externa dependem da estrutura, que reage de forma singular para conservar a organização, o que caracteriza o determinismo estrutural. Maturana2 considera indistinguíveis ilusão e percepção, pois a verdade é inacessível ao observador, que vive uma experiência como válida, mas utiliza sua própria estrutura para definir o que é ou não válido. Seu referencial é interno. Por conseguinte, a vivência do poeta como entendida pelo eu lírico do texto é, segundo Maturana2, a condição a que estão sujeitos todos os organismos vivos.
A segunda estrofe do texto corrobora essa percepção:
E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
O leitor, em uma interpretação que extrapole a da metalinguagem, pode ser compreendido como "o outro". O que ele sente não é a dor, emoção, que o poeta sentiu, porém também não é a dor fingida, representada, mas a emoção derivada da interpretação da leitura do poema. Essa dor, portanto, utilizando como referência o pensamento complexo de Edgar Morin1, é uma emergência. Para entendê-la é preciso compreender o princípio sistêmico6, segundo o qual um sistema constitui-se de partes interdependentes entre si, a interagir e transformar-se reciprocamente, resultando não na soma de suas partes, mas em uma propriedade que vai além dela, pois emerge desse seu funcionamento. A dor lida é, portanto, um produto do contato entre a dor do leitor e a expressa pelo poeta, porém diferente de ambas.
Conforme Maturana2, a expressão das experiências sempre se dá por explicações e essas são reformulações da experiência. Sua verdade é definida pela aceitação ou não de um observador. A explicação dá-se no âmbito da linguagem e depende de quem aceita a explicação. Portanto, a verdade externa não é vivenciada nem compartilhada entre os seres vivos como é realmente, ela é validada por referenciais individuais potencialmente geradores de ilusões e é reformulada quando explicada e quando entendida. Consequentemente, há tantos explicares diferentes quanto modos de aceitar explicações. Em outras palavras, o eu e o outro têm sua interação sempre limitada pelo fingir.
Pesquisas recentes3 na área cognitiva reforçam esse entendimento, como o desenvolvimento da metáfora do darwinismo neural, que hierarquiza o processamento através da consciência primária, atrelada a um sistema de valor límbico-troncular, e da consciência elaborada, que categoriza os acontecimentos, ordenandoos sucessivamente em atos de fala. Portanto, segundo essa perspectiva3, geram-se conceitos e atribuem-se valores inicialmente em áreas subcorticais vinculados à emoção. Consequentemente, a experiência é vivenciada e entendida de forma particular, em sua dimensão narrativa, sendo afetada por processos inconscientes individuais.
Essa complexidade singelamente se revela na última estrofe do poema:
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama o coração.
A emoção, marcantemente presente no texto expressada e compartilhada como dor, seja ela original, expressada ou interpretada, interage constantemente com a razão. Seja pelo fato de ser escrita e posteriormente lida, seja por ser modificada por mecanismos interpretativos que por si mesmos não são inteiramente racionais. O próprio fingimento é um mecanismo ao mesmo tempo emocional e cognitivo. Coração, mente e a mentira resultante deles estão entremeados de maneira indistinguível.
A uma conclusão semelhante chegou António Damásio4, que percebeu como as emoções são indispensáveis na gênese e na expressão do comportamento. Segundo ele, essa união ilustrada no poema foi evolutivamente vantajosa para os seres vivos. Enquanto a emoção era a criadora de hábitos adaptativos, moldando a interação do ser com a natureza de forma a conservar sua sobrevivência, a razão possibilitou a seleção posterior dos melhores comportamentos para cada situação. Ele concluiu que nenhum ser pode seguir pelas calhas de roda da razão e tomar decisões adequadas sem a ação conjunta do comboio de corda para dar significado a esses processos.
Buscando entender esse conjunto de descobertas e a obra poética de um ponto de vista construtivista, não há necessariamente uma hierarquia processual, mas uma interação complexa entre emoção, razão e estrutura interna individual, possibilitando uma visão de um sujeito não somente construtor de si mesmo, mas artista de si. Um sujeito que não somente utiliza a razão e a consciência para juntar as peças de si mesmo com as do mundo em um mosaico coerente, mas que se imagina, se recria, se sente e se significa nesse sentir. Que nunca se comunica completamente, mas que mesmo assim constantemente compartilha sua dor. E que finge sua emoção ao vivê-la. Que finge a si mesmo e assim se faz e refaz.
REFERÊNCIAS
1. S. NEUBERN, Maurício. As Emoções Como Caminho Para Uma Epistemologia Complexa da Psicologia. Psicologia: Teoria e Pesquisa, Brasília, v. 16, n. 2, p. 153-164, Maio-Ago 2000.
2. MOREIRA, Marco Antônio. A Epistemologia de Maturana. Ciência & Educação, [S. l.], v. 10, n. 3, p. 597-606, 2004.
3. VASCONCELLOS, Silvio José Lemos; MACHADO, Simone da Silva. Construtivismo, Psicologia Experimental e Neurociência. Psic. Clin., Rio de Janeiro, v. 18, n. 1, p. 83-94, 2006.
4. TOMAZ, Carlos; GIUGLIANO, Lilian G. A razão das emoções: um ensaio sobre" O erro de Descartes". Estudos de Psicologia (Natal), v. 2, n. 2, p. 407-411, 1997.
5. CAMÕES, Luís de; ANTOLOGIA, Lírica de Luís de Camões. GOULART, Audemaro Taranto. Fingimento, metapoeticidade e estética no.
6. MORIN, Edgar. Da necessidade de um pensamento complexo. Para navegar no século XXI, v. 2, p. 19-42, 2003.
UFJF, Faculdade de Medicina - Juiz de Fora - MG - Brasil
Correspondência
Isadora Vilela de Arruda
e-mail: isa.vilelaa@gmail.com / e-mail alternativo: vilela.arruda@gmail.com
Submetido em: 02/09/2019
Aceito em: 06/10/2019
Contribuição do autor: Redação - Preparação do original, Redação - Revisão e Edição.
Instituição: Universidade Federal de Juiz de Fora
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