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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2019; 21(3):93-98



Resenha

A arte de fingir dor: o que diz o poema Autopsicografia sobre quem somos como humanos

The art of feigning pain: what the poem Autopsycography tells us about who we are as humans

El arte de fingir dolor: lo que dice el poema Autopsicografía sobre quiénes somos como humanos

Isadora Vilela de Arruda

Resumo

Trata-se de uma resenha sobre o poema Autopsicografia de Fernando Pessoa. Traz discussões a respeito da dimensão psicológica do texto, com enfoque na epistemologia de Maturana, no pensamento complexo de Edgar Morin e em estudos sobre as emoções. O eu lírico do texto pode ser comparado a todos os seres humanos, constantemente lidando com uma dor real sempre fingida, uma dificuldade de comunicação inerente à própria habilidade comunicativa e à relação infinitamente paradoxal e intrinsecamente complementar de seu coração e sua razão.

Descritores: Terapia Focada em Emoções; Poesia; Cognição

Abstract

This is a review of Fernando Pessoa's Autopsychography poem. It brings discussions about the psychological dimension of the text, focusing on Maturana's epistemology, Edgar Morin's complex though and studies on emotions. The lyrical self of the text can be compared to all human beings, constantly dealing with an everfeigned real pain, a difficulty of communication inherent in their own communicative ability, and the infinitely paradoxical and intrinsically complementary relationship of their heart and reason.

Keywords: Emotion-Focused Therapy; Poetry; Cognition

Resumen

Esta es una revisión del poema Autopsicografía de Fernando Pessoa. Trae discusiones sobre la dimensión psicológica del texto, centrándose en la epistemología de Maturana, el complejo pensamiento de Edgar Morin y estudios sobre las emociones. El yo lírico del texto puede compararse con todos los seres humanos, lidiando constantemente con un dolor real siempre fingido, una dificultad de comunicación inherente a su propia capacidad comunicativa y la relación infinitamente paradójica e intrínsecamente complementaria de su corazón y razón.

Descriptores: Terapia Centrada en la Emoción; Poesía; Cognición

 

 

INTRODUÇÃO

O poema 'Autopsicografia' é uma das obras mais conhecidas e constantemente relembradas de Fernando Pessoa. Em três curtas estrofes de quatro versos, o poeta se posiciona quanto ao fazer poético, delicadamente abordando o contato com a realidade, com o outro e com quem se é. Ou, ao menos, a tentativa de contato, pois segundo o autor tudo não passa de um fingimento alimentado pela interação entre razão e emoção.

O enfoque usualmente utilizado para compreender a obra prioriza a função catártica apresentada por ela como objetivo da poesia. A possibilidade de reestabelecer o equilíbrio interno pela purgação das emoções e paixões na interação com o imaginário, o não-real, o fingimento. Tal prisma interpretativo estabelece a estética como uma das principais dimensões do texto e não deixa de ser verdadeira. Todavia, o poema possibilita um aprofundamento psicológico que não deve ser negligenciado, seu próprio título o anunciando como uma autoavaliação psicológica feita através de palavras escritas.

Segundo essa análise feita pelo eu lírico, o poeta é um fingidor incapaz de discernir entre o inventado e o real, entre o que se sente e o que se relata sentir, embora esteja extremamente consciente da diferença entre essas duas dimensões de si. Percebe também que seus leitores lidam com o mesmo dilema, interpretando as suas palavras de forma distinta das realidades internas de ambos e criando uma quarta dor, uma outra dimensão para a experiência emocional e racional, ao processarem a interação com o texto, com o eu lírico e a própria realidade. Ainda, o eu lírico percebe por trás dessa rede o trabalho ao mesmo tempo sincronizado e incongruente do coração, a mover-se em círculos, e da razão, expressando-se retilineamente como trilhos.


DISCUSSÃO

É interessante observar, inicialmente, a primeira estrofe do poema:



O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.



A palavra fingir é derivada do latim fingere, que significava modelar na argila, dar forma a qualquer substância plástica, esculpir, donde dar feição a, afeiçoar e, por conseguinte, ganhou também as acepções de reproduzir traços, representar, imaginar, fingir, inventar, segundo o dicionário etimológico. Embora, atualmente, haja uma vinculação pejorativa do termo à ideia de falsidade, fingir nada mais é que representar, ou seja, recriar-se a si mesmo e o mundo em volta.

Essa é uma ação distinta da de reapresentar, repetir ou reproduzir, pois em contato com a singularidade do poeta e as suas possibilidades de expressá-la, a realidade se irrealiza, torna-se símbolo, linguagem e acaba por transgredir a sua essência. Assim interpretado, o poema aproxima-se de ideias desenvolvidas por Maturana2 e Varela2 sobre a vivência do sujeito. Segundo esses autores, responsáveis pelo desenvolvimento do conceito de autopoiese, o sujeito é um organismo vivo em constante mudança, porém dotado de identidade e da capacidade de mantê-la através de suas inevitáveis transformações no contato com o que é externo, o que é real.

Os seres são, consequentemente, máquinas autopoiéticas autônomas, singulares e fechadas em si mesmas. Portanto, os efeitos da perturbação externa dependem da estrutura, que reage de forma singular para conservar a organização, o que caracteriza o determinismo estrutural. Maturana2 considera indistinguíveis ilusão e percepção, pois a verdade é inacessível ao observador, que vive uma experiência como válida, mas utiliza sua própria estrutura para definir o que é ou não válido. Seu referencial é interno. Por conseguinte, a vivência do poeta como entendida pelo eu lírico do texto é, segundo Maturana2, a condição a que estão sujeitos todos os organismos vivos.

A segunda estrofe do texto corrobora essa percepção:



E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.



O leitor, em uma interpretação que extrapole a da metalinguagem, pode ser compreendido como "o outro". O que ele sente não é a dor, emoção, que o poeta sentiu, porém também não é a dor fingida, representada, mas a emoção derivada da interpretação da leitura do poema. Essa dor, portanto, utilizando como referência o pensamento complexo de Edgar Morin1, é uma emergência. Para entendê-la é preciso compreender o princípio sistêmico6, segundo o qual um sistema constitui-se de partes interdependentes entre si, a interagir e transformar-se reciprocamente, resultando não na soma de suas partes, mas em uma propriedade que vai além dela, pois emerge desse seu funcionamento. A dor lida é, portanto, um produto do contato entre a dor do leitor e a expressa pelo poeta, porém diferente de ambas.

Conforme Maturana2, a expressão das experiências sempre se dá por explicações e essas são reformulações da experiência. Sua verdade é definida pela aceitação ou não de um observador. A explicação dá-se no âmbito da linguagem e depende de quem aceita a explicação. Portanto, a verdade externa não é vivenciada nem compartilhada entre os seres vivos como é realmente, ela é validada por referenciais individuais potencialmente geradores de ilusões e é reformulada quando explicada e quando entendida. Consequentemente, há tantos explicares diferentes quanto modos de aceitar explicações. Em outras palavras, o eu e o outro têm sua interação sempre limitada pelo fingir.

Pesquisas recentes3 na área cognitiva reforçam esse entendimento, como o desenvolvimento da metáfora do darwinismo neural, que hierarquiza o processamento através da consciência primária, atrelada a um sistema de valor límbico-troncular, e da consciência elaborada, que categoriza os acontecimentos, ordenandoos sucessivamente em atos de fala. Portanto, segundo essa perspectiva3, geram-se conceitos e atribuem-se valores inicialmente em áreas subcorticais vinculados à emoção. Consequentemente, a experiência é vivenciada e entendida de forma particular, em sua dimensão narrativa, sendo afetada por processos inconscientes individuais.

Essa complexidade singelamente se revela na última estrofe do poema:



E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama o coração.



A emoção, marcantemente presente no texto expressada e compartilhada como dor, seja ela original, expressada ou interpretada, interage constantemente com a razão. Seja pelo fato de ser escrita e posteriormente lida, seja por ser modificada por mecanismos interpretativos que por si mesmos não são inteiramente racionais. O próprio fingimento é um mecanismo ao mesmo tempo emocional e cognitivo. Coração, mente e a mentira resultante deles estão entremeados de maneira indistinguível.

A uma conclusão semelhante chegou António Damásio4, que percebeu como as emoções são indispensáveis na gênese e na expressão do comportamento. Segundo ele, essa união ilustrada no poema foi evolutivamente vantajosa para os seres vivos. Enquanto a emoção era a criadora de hábitos adaptativos, moldando a interação do ser com a natureza de forma a conservar sua sobrevivência, a razão possibilitou a seleção posterior dos melhores comportamentos para cada situação. Ele concluiu que nenhum ser pode seguir pelas calhas de roda da razão e tomar decisões adequadas sem a ação conjunta do comboio de corda para dar significado a esses processos.

Buscando entender esse conjunto de descobertas e a obra poética de um ponto de vista construtivista, não há necessariamente uma hierarquia processual, mas uma interação complexa entre emoção, razão e estrutura interna individual, possibilitando uma visão de um sujeito não somente construtor de si mesmo, mas artista de si. Um sujeito que não somente utiliza a razão e a consciência para juntar as peças de si mesmo com as do mundo em um mosaico coerente, mas que se imagina, se recria, se sente e se significa nesse sentir. Que nunca se comunica completamente, mas que mesmo assim constantemente compartilha sua dor. E que finge sua emoção ao vivê-la. Que finge a si mesmo e assim se faz e refaz.


REFERÊNCIAS

1. S. NEUBERN, Maurício. As Emoções Como Caminho Para Uma Epistemologia Complexa da Psicologia. Psicologia: Teoria e Pesquisa, Brasília, v. 16, n. 2, p. 153-164, Maio-Ago 2000.

2. MOREIRA, Marco Antônio. A Epistemologia de Maturana. Ciência & Educação, [S. l.], v. 10, n. 3, p. 597-606, 2004.

3. VASCONCELLOS, Silvio José Lemos; MACHADO, Simone da Silva. Construtivismo, Psicologia Experimental e Neurociência. Psic. Clin., Rio de Janeiro, v. 18, n. 1, p. 83-94, 2006.

4. TOMAZ, Carlos; GIUGLIANO, Lilian G. A razão das emoções: um ensaio sobre" O erro de Descartes". Estudos de Psicologia (Natal), v. 2, n. 2, p. 407-411, 1997.

5. CAMÕES, Luís de; ANTOLOGIA, Lírica de Luís de Camões. GOULART, Audemaro Taranto. Fingimento, metapoeticidade e estética no.

6. MORIN, Edgar. Da necessidade de um pensamento complexo. Para navegar no século XXI, v. 2, p. 19-42, 2003.










UFJF, Faculdade de Medicina - Juiz de Fora - MG - Brasil

Correspondência

Isadora Vilela de Arruda
e-mail: isa.vilelaa@gmail.com / e-mail alternativo: vilela.arruda@gmail.com

Submetido em: 02/09/2019
Aceito em: 06/10/2019

Contribuição do autor: Redação - Preparação do original, Redação - Revisão e Edição.

Instituição: Universidade Federal de Juiz de Fora

 

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