Rev. bras. psicoter. 2019; 21(3):77-91
Silva ACM, Oliveira ACP, Almeida GSL, Maireno DP. Incidência da escuta psicanalítica no processo de triagem no âmbito do serviço-escola de psicologia: um relato de experiência. Rev. bras. psicoter. 2019;21(3):77-91
Relato de Caso
Incidência da escuta psicanalítica no processo de triagem no âmbito do serviço-escola de psicologia: um relato de experiência
Incidence of psychoanalytic listening in the screening process within the serviceschool of psychology: an account of experience
Incidencia de la escucha psicoanalítica en el proceso de clasificación en el ámbito del servicio-escuela de psicología: un relato de experiencia
Ana Carolina de Moraes Silva; Amanda Carolina Pagan de Oliveira; Guilherme Severo Lins de Almeida; Daniel Polimeni Maireno
Resumo
Abstract
Resumen
INTRODUÇÃO
A "porta de entrada" para os serviços prestados nas clínicas-escola de psicologia, geralmente, é a triagem1. Entende-se que este instrumento se configura como um procedimento para conhecer o sujeito e entrar em contato com seu sofrimento2, a fim de encaminhar o indivíduo para um atendimento adequado a sua necessidade. Portanto, é um dispositivo caracterizado como ateórico por ser de natureza geral e descritiva, sendo utilizado como início de um possível caminho de tratamento, independente da perspectiva teórica de quem o manuseia. Com base neste cenário, questiona-se acerca das possibilidades presentes no momento da triagem, quando orientada pelo viés psicanalítico, e a possibilidade de ir além das limitações institucionais de exclusivamente levantar informações.
Este trabalho busca discorrer acerca das potencialidades presentes no momento da triagem na perspectiva psicanalítica, como também da importância da escuta analítica para a realização dos encaminhamentos. Por meio da metodologia clínico-qualitativa, apresenta-se inicialmente uma breve contextualização do procedimento de triagem e da teoria freudiana, a fim de aproximar a perspectiva psicanalítica e o instrumento, pontuando conceitos importantes para melhor compreensão dos casos que serão posteriormente relatados e discutidos. Foram analisados dois casos de triagens infanto-juvenis e os direcionamentos provenientes destes. Essas triagens foram realizadas no estágio supervisionado em clínica, com alunos do 3º ano de psicologia de uma universidade pública.
Estudos acerca do instrumento de triagem a partir deste referencial vêm sendo realizados, demonstrando a relevância desta discussão2-5. Entende-se que a partir de relatos de experiências é possível suscitar reflexões sobre a prática nos serviços-escola de psicologia, como também ilustrar uma forma específica de direção a ser tomada em situações análogas. Leva-se em consideração a importância da compreensão deste instrumento a fim de propiciar melhores formas de acolhimento, atendimento e encaminhamento das demandas que chegam aos serviços, pontuando o importante papel social desempenhado pelos serviços-escola no atendimento à comunidade6.
No que se refere ao tema a ser abordado, o principal objetivo da triagem é a identificação da queixa, o preenchimento de uma ficha de dados pessoais e núcleo familiar, além de verificar a urgência do caso e prestar os devidos encaminhamentos para os dispositivos mais apropriados - dentre os quais, a psicoterapia individual, as grupoterapias, terapias de casal e família, entre outros. A triagem em serviço-escola pode ser entendida como um momento de escuta da demanda e da expectativa do paciente em relação ao atendimento psicológico, ou seja, na concepção psicanalítica, uma escuta parcial do desejo3. Para Perfeito e Melo4, o momento da triagem também produz acolhimento, proporcionado através de uma escuta atenta e da disposição afetiva do terapeuta, que recebe e valida o sofrimento, já propiciando, muitas vezes, uma sensação de alívio.
Dessa forma, entende-se que o processo de triagem pode ir além de meramente levantar informações acerca do sujeito. No entanto, neste processo não há o interesse em realizar interpretações, como indicado por Freud7 nesse período inicial, pois a comunicação prematura da solução do sintoma ou tradução do desejo pode aumentar as resistências e produzir o fim do tratamento - ou sequer permitir que este se inicie.
Considerando o referencial psicanalítico, a triagem pode ser aproximada, em parte, às entrevistas preliminares que Freud7 discutiu em O início do tratamento, de 1913. Nele, Freud7 recomenda que antes do tratamento o analista passe um tempo com o paciente para então decidir se o caso é indicado ou não para a psicanálise. Denomina ainda este processo como ensaio preliminar, sendo este já o início da análise, devendo seguir as recomendações propostas nesse contexto.
Apesar das semelhanças com o que Freud7 propusera nesse texto, a triagem de crianças e adolescentes realizada na Universidade em que este trabalho foi produzido - como em muitos outros serviços-escola - difere em diversos aspectos, pois são feitas por estudantes da graduação que não necessariamente darão continuidade ao caso, geralmente em poucos encontros, e com os responsáveis, uma terceira pessoa falando sobre o paciente. Apenas em alguns casos o menor é chamado para conversar. Após o momento da triagem, caso o paciente seja encaminhado para o atendimento individual no serviço-escola, ele retorna a uma lista de espera para atendimento.
Mais além, entende-se que o processo de triagem pode se configurar como um espaço de reflexão dentro do serviço-escola em questão, a fim de pensar acerca das demandas que trouxeram os sujeitos até ali. Neste caso, coloca-se como papel do terapeuta acolher e transformar as informações trazidas pelo paciente, a fim de não só delimitar o melhor encaminhamento, mas também exercer um papel interventivo. Especialmente se considerarmos a possibilidade de, nesse processo, a própria demanda inicial vir a ser retificada. Para Salinas e Santos5, a triagem "deve ser mais do que a mera coleta de dados sistematizados para subsidiar a construção de um encaminhamento", sendo entendida como um processo que permite avaliar junto ao sujeito as possibilidades e alternativas de acolhimento. Esse caráter interventivo também é explorado por Perfeito e Melo4, que buscam através da triagem ir além dos sintomas e queixas.
Salinas e Santos5 discorrem acerca da psicanálise e o serviço de triagem, expondo que quando se exercita a escuta psicanalítica dentro da instituição de serviço-escola de psicologia, trata-se de "adequar a técnica e não a ética", tendo, portanto, condições de contribuir para um melhor acolhimento dos pacientes. Quando se fala nessa escuta psicanalítica deve-se ter claro que ela decorre de um método. Quanto ao método psicanalítico, sabe-se que ele foi o resultado de extensa atividade clínica frente a diversas formas de sofrimento psíquico, por meio da qual Freud8 desenvolveu um estilo particular de escutar o outro.
Na comunicação entre paciente e analista, Freud8 utiliza da palavra para entender o desejo daquele que pretende ser compreendido em seu sofrimento. Para tanto, se atenta à multiplicidade de sentidos da palavra proferida, a fim de reconhecer a existência de conteúdos reprimidos distantes da consciência. Diante disso, Freud8 desenvolve a arte da interpretação, capaz de identificar e destacar tais conteúdos reprimidos presentes na fala manifesta do paciente.
Tal perspectiva está essencialmente ancorada numa das obras mais reconhecidas de Freud9, A Interpretação dos Sonhos de 1900, que além de explicar de onde vêm os sonhos e a razão da ocorrência destes, assim como seu funcionamento, pôde abordar e explicar a relação dos sonhos com processos inconscientes. O método psicanalítico aplicado à escuta das diversas manifestações do sofrimento psíquico tem relação íntima, portanto, com esta pesquisa sobre os processos inconscientes pelos quais o sonho se transforma até chegar ao conteúdo manifesto.
Em Sobre os Sonhos, Freud9 apresenta resumidamente os principais elementos do livro de 1900, com conceitos que usaremos para a compreensão dos casos relatados neste trabalho. Ele discute, entre outras, as noções de "conteúdo latente" e "conteúdo manifesto" do sonho, sendo o conteúdo manifesto aquele material "retido na memória" e o conteúdo latente o ''material pertinente descoberto por sua análise''9. Freud propõe que os conteúdos presentes no sonho, mesmo naqueles que se apresentam das formas mais desconexas e estranhas à consciência, possuem uma ligação com a vida do sonhador. O relato do sonho pelo paciente, quando submetido à investigação psicanalítica, permite que o terapeuta vislumbre uma ampla variedade de associações - o conteúdo latente do sonho -, constatando assim uma semelhança entre as vivências, anseios e pensamentos diurnos do sonhador, de um lado, e elementos que compõem o sonho, de outro.
"Acompanhando as associações nascidas de qualquer sonho, posso chegar a uma cadeia de pensamentos semelhante, entre cujos elementos os componentes do sonho reaparecem e que estão interligados de maneira racional e inteligível."9 [grifo do autor]
Nota-se então que o sonho, enquanto uma manifestação do inconsciente, insere-se em uma rede associativa na qual os conteúdos latentes e manifestos se vinculam. O mesmo se faz possível mediante a escuta analítica do sofrimento psíquico que se manifesta, por exemplo, numa demanda por psicoterapia - igualmente rica de aspectos inconscientes - pela qual o terapeuta pode, da mesma forma, identificar os conteúdos latentes a ela relacionadas.
"Enquanto o conteúdo do sonho trata de um material de representações insignificante e desinteressante, a análise desvenda as numerosas vias associativas que ligam essas trivialidades com coisas da mais alta importância psíquica na estimativa do sonhador."9
Assim como no sonho, também um relato corriqueiro de um paciente em uma sessão de análise, ou mesmo em uma entrevista inicial, por vezes tomado como irrelevante pelo próprio falante, pode ser o ponto de partida para associações das mais significativas para a vida do paciente. Também, tal como no caso dos sonhos, não raro lida-se com demandas de psicoterapia que inicialmente soam estranhas à consciência, parecendo desconexas ou sem sentido.
Tendo isso em consideração, é importante ressaltar que, para que o processo analítico ocorra, é fundamental que o analista ofereça uma escuta qualificada, não só para acolher o sofrimento do paciente, mas também extrair conteúdos latentes que dizem respeito a materiais que foram reprimidos8 e que atuam fortemente no sofrimento do paciente. É preciso entender que a fala do paciente, segundo a perspectiva psicanalítica, comunica uma emergência a ser escutada - um desejo cujos fundamentos são inconscientes.
Neste âmbito, o terapeuta em formação, quando embasado psicanaliticamente, logo na triagem deve estar inclinado a escutar os elementos latentes presentes no discurso manifesto do paciente, pois neste primeiro momento a atenção flutuante12, que consiste em não fixar em nenhum ponto específico do discurso do paciente, ouvindo livremente,já deve estar em funcionamento, juntamente com a associação livre7,12 do paciente, que deve ser incentivado a dizer tudo o que lhe vier a cabeça, evitando qualquer meio de seleção do conteúdo a ser manifestado, sendo esta a regra fundamental da psicanálise7,12.
Sobre a atenção flutuante, encontramos uma elucidação clara em Recomendações ao médico que pratica a psicanálise10, onde Freud afirma tratar-se de uma simples técnica, contrária a atenção proposital que traz sempre o risco de comportar expectativas e inclinações do terapeuta, passando então a favorecer certos elementos do discurso do paciente em detrimento de outros. Esse direcionamento apresenta riscos na medida em que não é possível ir além do que já se espera encontrar nos discursos, como exposto por Freud: "seguindo nossas inclinações, com certeza falsearemos o que é possível perceber"10. Desse modo, essa técnica apresenta-se como essencial também no momento de triagem, pois garante que o terapeuta considere importante qualquer detalhe, mesmo que a princípio pareça insignificante. Compreende-se que o significado, em geral, só poderá ser conhecido posteriormente no decorrer do atendimento.
A psicanálise se desenvolve com a preocupação de uma escuta singular que propõe o aparecimento do inconsciente ao falar, onde o sujeito comunica muito mais do que o material inicialmente intencionado e verbalizado. A escuta psicanalítica se faz efetiva quando o analista assume uma posição de não saber a respeito daquele que pede ajuda, ouvindo livremente. É por meio da escuta atenta, ainda que flutuante, que se faz necessário e possível identificar quais conteúdos se apresentam em meio à demanda e a quais sujeitos eles, de fato e mais intimamente, dizem respeito.
Considerando a importância da escuta analítica e o diferencial presente na condução dos atendimentos por essa abordagem desenvolvida inicialmente por Freud8, apresentam-se os relatos de duas triagens realizadas a partir do referencial psicanalítico, seguidas de uma discussão das mesmas. Foram utilizados nomes fictícios para identificação dos sujeitos e preservação de suas identidades.
APRESENTAÇÃO DOS CASOS
Caso 1 - Tatiana
Tatiana é uma adolescente de 12 anos. Sua mãe chegou à clínica-escola apresentando a queixa de que a filha necessitava de psicoterapia por ter um pai ausente e por recentemente ter presenciado a "crise de ansiedade" (sic) da própria mãe. Destaca-se o fato da mãe apenas mencionar sua própria crise de ansiedade, não fazendo disso questão alguma. Percebe-se que em sua fala essa queixa está deslocada para outra coisa, concernente não a ela, mas à filha.
Tatiana teve um único encontro com o pai, aos quatro anos de idade, numa viagem ao país em que ele reside até os dias de hoje. Os dois mantêm um contato precário via Whatsapp, pois Tatiana manda várias mensagens, faz ligações e o pai some por dias, às vezes meses. A adolescente se entristece, por vezes chora muito, mas por fim acaba se acostumando com a ausência do pai e relata não se importar com ele.
No âmbito escolar, a menina sempre teve bom comportamento e boas notas. Apresenta também bons relacionamentos interpessoais, faz programas como sair para brincar na casa de amigas, porém o que mais gosta de fazer é ficar em casa assistindo desenhos e jogando jogos. Tatiana e a mãe possuem um bom relacionamento e conversam bastante sobre diversos assuntos.
Curiosamente, durante a triagem, a mãe colocou-se como fonte de vários comportamentos realizados pela filha, despertando certo interesse na estagiária a forma como a informante se culpabilizava por ações da filha, a aproximação que ela fazia dos tipos de relacionamento que ela tem com os que a filha constrói, além de muitas vezes inserir em seu discurso temas que diziam mais sobre ela do que sobre a adolescente.
Outro elemento relevante no discurso da responsável, e que só no decorrer da triagem apareceu, foi a mesma estar passando por um tratamento psiquiátrico para as referidas crises de ansiedade. Estas tiveram início há pouco tempo no trabalho, desencadeada por uma "brincadeira boba" (sic) feita por colegas e que a deixou muito irritada. No dia seguinte desse ocorrido, a mãe de Tatiana não conseguiu entrar na empresa, as pernas travaram, sentiu muito medo e teve crises intensas de choro, tendo que ir embora para casa. Desde então toma medicamentos e está afastada do serviço por seis meses. Distanciou-se de todos, inclusive da filha, o que a faz sentir-se uma "péssima mãe" (sic).
Nesta triagem foram realizadas duas sessões com a mãe. Percebeu-se que a adolescente não precisava no momento de psicoterapia, e que seria mais benéfico para o cenário familiar que a mãe fizesse uso do dispositivo terapêutico. A mãe aceitou o convite de prontidão, não demonstrando perplexidade a partir da nova proposta. Ao contrário, espontaneamente comentou que já estava pensando na hipótese de ela ser a paciente e não a filha.
Salienta-se que não foi necessário nenhum esforço de convencimento por parte da estagiária para alcançar esse desfecho e que a paciente também trouxe novos dados após o convite, que confirmaram a necessidade de ela estar na terapia e não Tatiana. Por exemplo, a mãe mencionou que desde o início de sua crise de ansiedade já passara por vários terapeutas, não perseverando com nenhum por ter dificuldades de falar sobre seus problemas e sobre suas questões.
Caso 2 - Lucas
Lucas tem 10 anos. Sua tia procurou atendimento apresentando a queixa de que o garoto em certos momentos era muito estressado, pontuando o receio dele ficar "revoltado" (sic) devido à ausência dos pais. A história de Lucas perpassa a morte do pai aos quatro anos, bem como a ausência da mãe no cuidado. Em diversos momentos, a criança foi negligenciada pela mãe, que chegou a ser reportada ao conselho tutelar. Atualmente a guarda do menino é compartilhada entre mãe e avó, sendo que Lucas mora com a tia e a avó, por opção da mãe.
A história familiar foi apresentada pela tia com nítido incômodo e de forma conturbada. A relação dela com a irmã, mãe do menino, foi percebida como um ponto delicado, devido a afirmações como "não quero falar sobre essa situação" (sic), referente a não querer relatar o conflito que ocorreu entre elas e que resultou na saída da mãe de Lucas da casa da avó materna. "Minha irmã é uma pessoa muito difícil..." (sic) foi uma frase repetida diversas vezes ao longo dos encontros realizados.
Percebeu-se uma distinção no seu modo de falar ao se referir à irmã: usualmente a fala da tia era fluida, cheia de detalhes e informações; no entanto, quando falava da irmã, tomava muito cuidado com as palavras. Era evidente a presença de diversos conteúdos latentes de caráter hostil atuando nas margens do seu discurso consciente, motivando, então, maiores cuidados a fim de manter a conversa dentro dos padrões convencionais.
Incentivada, porém, a discorrer de forma mais espontânea possível - convidada, enfim, a associar livremente -, a interlocutora externalizou críticas sobre a maneira como sua irmã participava da vida do garoto. Ao mesmo tempo, pontuou diversas vezes sua angústia em cuidar bem do sobrinho e o carinho que sente por ele, o denominando como "filho" (sic).
No âmbito escolar, Lucas vem sendo reconhecido com méritos na escola, apresenta boas notas, foi escolhido monitor da turma e ganhou uma viagem como prêmio por seu bom desempenho. O menino cultiva bons relacionamentos interpessoais, ajuda em casa e é sempre descrito como "bonzinho" e "uma benção" (sic) pela tia e avó. Logo se percebeu que muitos dos problemas atribuídos à criança derivavam, de fato, da família.
Foram realizadas quatro sessões na triagem desse caso, sendo as duas primeiras com a tia, a terceira com a avó e a última novamente com a tia. Nos dois encontros com a tia as queixas apareceram contraditórias e algumas informações foram alteradas no discurso, como a idade com que a criança foi morar com elas, a cronologia dos fatos e o que aconteceu com o pai, por exemplo. Diante disto, optou-se por convocar outro interlocutor próximo da criança, a avó. Esta confirmou muito do que já havia sido exposto pela tia, inclusive as lacunas por ela deixadas: "minha filha me falou que ela não te contou algumas coisas..." (sic). A avó, a partir daí, perpassou o histórico conturbado da criança, explicitando, porém, os pontos desconfortáveis omitidos pela tia e esclarecendo as informações contraditórias, como o fato do abuso do pai de Lucas com a mãe do menino, o desentendimento entre as duas irmãs e o envolvimento do pai com a criminalidade, incluindo aí um período de prisão que antecedeu sua morte.
A comunicação da morte foi um tópico que gerou bastante desconforto e um mal-estar geral, devido à ligação com a criminalidade e não com uma enfermidade biológica, como primeiro exposto pela tia. Quando o pai morreu foi relatado não saber como proceder frente a levar ou não a criança ao enterro, a avó chegou a questionar a estagiária no momento da triagem se fez certo ao decidir levá-lo, a fim de poupar traumas futuros, devido a uma ausência de despedida ao pai.
Lucas tem conhecimento da história de vida do pai. A família do menino acredita que esse histórico e a ausência dessas figuras parentais podem prejudicar o desenvolvimento da criança, o que, no entanto, não se confirma atualmente. Dessa forma, foi colocado para a tia no quarto encontro, que a criança não precisava atualmente de atendimento psicológico, mas que talvez a família poderia usufruir de maneira benéfica de tal espaço. As angústias, os rancores, as rivalidades fraternas, o sofrimento e a preocupação vinham da responsável, que foi convidada a realizar o atendimento, caso desejasse. E assim como no caso anterior, a responsável aceitou o convite.
DISCUSSÃO
A partir dos relatos dos casos, percebe-se a importância de escutar tanto as expectativas conscientes quanto o desejo inconsciente, o que permite uma melhor aproximação do terapeuta ao sofrimento daquele que busca ajuda por meio de uma demanda11. No entanto, entende-se que há momentos em que é necessário contrariar tal demanda:
"Escutar as expectativas não significa necessariamente satisfazê-las, mas compreendê-las, legitimá-las e auxiliar o paciente a se apropriar delas [...] A triagem, por ser a porta de entrada para qualquer proposta de intervenção, é um dos momentos profícuos para dar voz às expectativas, compreendê-las e devolvê-las de forma mais clara e refletida ao entrevistado."11
Nos casos apresentados, havia a expectativa de um atendimento individual para as crianças. Porém, a partir das entrevistas iniciais, verificou-se que para lidar com o sofrimento e os desejos inconscientes essa expectativa não deveria ser contemplada, mas sim retificada, possibilitando uma alternativa mais profícua. A perspectiva psicanalítica não prevê que se caminhe sempre de acordo com o que o paciente inicialmente quer. Ao contrário, trata-se de possibilitar que o inconsciente se manifeste, trazendo então algo da ordem de um desejo de saber de si até então ausente. Uma alternativa comumente mais custosa, pois implica convocar o sujeito a encarar justamente aquilo que ele não consegue verbalizar, entender e simbolizar. Daí a importância de uma escuta diferenciada e atenta ao discurso latente, que atravessa o discurso manifesto, dando assistência aos anseios que são de ordem do inconsciente.
Para Salinas e Santos5, a necessidade da escuta atenta do analista tem "relação com a desarmonia do sujeito com a realidade", como é possível visualizar nos casos apresentados. No caso 2, a tia verbalizou inúmeras vezes o quanto a criança era boa, que não lhe causava problema algum, no entanto, paradoxalmente, insistia em um tratamento psicológico para ela, demonstrando uma clara reação defensiva às suas próprias angústias. Também no caso 1, a mãe verbalizava o bom comportamento da filha nos âmbitos escolar, familiar, mas via como necessária a psicoterapia para auxiliar a adolescente a lidar com a ausência do pai e as crises da mãe, quando na verdade tais demandas pareciam mais cabíveis à responsável, que resistiu fortemente, na triagem, sempre que convidada a falar sobre suas crises de ansiedade.
Para a terapia psicanalítica, as representações inconscientes estão estritamente ligadas a resistências, a obstáculos que se opõem ao fluxo associativo do paciente e ao andamento do tratamento, que insistentemente tentam impedir seu desvendamento, sendo este fonte de desprazer. Portanto, o movimento de tornar conscientes os conteúdos inconscientes gera um conflito na vida psíquica do paciente. A psicanálise se faz pronta para auxiliar o paciente a superar essas resistências internas, a fim de conseguir compreender o conteúdo até então rejeitado7,8.
Entende-se que os casos infantis não possuíam demandas para atendimento psicológico. No caso 1, percebe-se que se forma um contexto de uma adolescente que sofre pelo precário contato com o pai, no entanto, tal sofrimento parece estar sendo suficientemente bem administrado por ela: a adolescente não apresenta nenhuma inibição, angústia, sintomas psíquicos ou somáticos, nada que comprometa seu dia a dia, sua "capacidade de fruição e realização"8,12. Não há, até aqui, menção a nada que a paralise, que a impeça de seguir com sua vida e seus planos. Há, sim, episódios de tristeza, o que, ao menos segundo a perspectiva psicopatológica psicanalítica, não configura nenhuma anormalidade ou doença.
Nota-se sim uma ruptura na vida de sua mãe, a partir de uma situação adjetivada como "boba", ou seja, insignificante, sem importância. Tal ruptura veio acompanhada de fenômenos corporais, autorrecriminações e ansiedade, resultando numa paralisia frente aos compromissos e às relações interpessoais, incluindo a filha, caracterizando, então, incapacidade de fruição e realização, diferentemente de Tatiana. É relevante ainda apontar a reação de perplexidade da mãe quando questionada pela estagiária sobre outros relacionamentos amorosos após o divórcio com o marido, sendo relatado pela informante como algo completamente fora de seu interesse.
Como também ocorre no caso 2, onde os comportamentos irritados do menino foram logo caracterizados como uma birra cotidiana, frente a não querer dormir cedo ou tomar banho. Concluindo, tal como no caso anterior, como algo presente na vida cotidiana de uma criança absolutamente normal. Por outro lado, a responsável apresentava anseios e dificuldades em relatar os acontecimentos de sua vida, optando por omitir e distorcer informações.
Um aspecto interessante no primeiro caso é que quando a mãe comentou com a filha sobre fazer psicoterapia, a menina indagou o porquê disso, se realmente precisava. Também chamou atenção a forma como a mãe sentia-se mal por achar que a crise de ansiedade tinha feito ela se afastar de Tatiana, fazendo com que ela não cumprisse bem seu papel materno. Entretanto, segundo a responsável, a menina nunca verbalizou ou demonstrou nenhum tipo de descontentamento nesse sentido, auxiliando inclusive a mãe em relação aos problemas de ansiedade. No caso 2, ocorreu algo similar: ao ser apontado pelas responsáveis a psicoterapia para a criança, o menino também as questionou, perguntando por quais motivos precisava ir, já que estava se comportando bem. Contudo, acabou por afirmar que iria, se necessário, conversar com a psicóloga.
Cabe observar que ambas as reações revelam maturidade e um saudável descolamento em relação às figuras cuidadoras. O mesmo não acontece com inúmeras outras crianças e adolescentes que acabam, entre outras maneiras, ou se alienando passivamente à fantasia parental, ou se rebelando de formas turbulentas e explosivas.
Tendo em vista esse cenário, notou-se que as responsáveis procuravam um "atendimento preventivo" para as crianças, visando evitar o desencadeamento futuro de problemas e "traumas". Conforme exposto por Cerioni e Herzberg3, a clínica psicanalítica realiza uma escuta do sofrimento, "uma escuta das dimensões inconscientes das experiências do sofrimento". Observou-se, nestes casos, que o sofrimento não estava na criança, mas sim alocado em outro lugar. Conscientizar isso ajuda o sujeito a esclarecer algo dele que ainda não lhe era assimilável, o que acaba sendo interventivo.
No histórico da psicanálise infantil, perpassando o trabalho inicial de Freud com o Pequeno Hans, e posteriormente os trabalhos de Anna Freud, Melanie Klein, Françoise Dolto e Maud Mannoni, que ampliaram substancialmente tal área de atuação, percebe-se especialmente nas duas últimas uma convocação da posição parental no tratamento da criança, indicando a necessidade de escutar os pais com o intuito de auxiliá-los a se situarem em relação aos seus próprios problemas e a redimensionar os problemas da criança13. Tais ideias são as que mais se aproximam do que foi realizado nos atendimentos aqui apresentados. Desse modo, entende-se que quando estamos diante de pais que buscam ajuda para os filhos, estamos também diante das problemáticas próprias de cada um deles13. Levando isso em consideração, Cunha e Benetti14 apontam as especificidades no atendimento psicológico com crianças, considerando a importância de incluir os responsáveis, essencial para a adesão ao tratamento.
Silva e Reis15 realizaram um levantamento acerca do lugar dos pais na terapia psicanalítica, verificando a necessidade de acolher os sofrimentos e angústias desses responsáveis para a evolução e continuação do tratamento infantil. Percebe-se a influência dos responsáveis no tratamento, apontando-se para a relevância de proporcionar um espaço para esses pais refletirem e ressignificarem as queixas em relação a seus filhos.
Acerca dessa influência de terceiros no tratamento de crianças, Prebianchi16 destaca que as dificuldades das crianças são, na maior parte dos casos, identificadas por adultos:
"geralmente são os adultos (pais/cuidadores, professores) que identificam as crianças como inadequadas ou desajustadas e então buscam o tratamento psicológico, o que determina que o foco seja, em parte, o estresse de outra pessoa além da criança."16
Nesse âmbito, a autora16 pontua que a queixa muitas vezes não é exclusivamente da criança, como visualizado nos relatos, perpassando pelo discurso do adulto, que pode ser enviesado. Melo e Perfeito17 fizeram um levantamento das características da população atendida em triagens infantis no contexto de serviços-escola de psicologia, constatando que a demanda clínica de atendimento em sua maioria é de crianças que possuem sintomas decorrentes da dinâmica familiar. Dessa forma, os autores caracterizam o sintoma como reativo e que ocorre advindo da relação responsável-criança.
Esses autores17 também relatam que 18% dos casos puderam ser resolvidos durante o próprio processo de triagem, possibilitando a alta e não ocorrendo encaminhamentos. A partir desse dado, os autores percebem que os problemas identificados pela família na criança foram resolvidos a partir do estabelecimento de um lugar onde esses indivíduos pudessem refletir e repensar sobre a demanda que os levaram até ali, sobre a criança e a constituição familiar, sendo que através disso se deu como resolvida a demanda por psicoterapia infantil.
Sei, Souza e Arruda18 também discorrem acerca de um atendimento infantil onde se notou relação entre os sintomas da filha e os da mãe, ocorrendo o posterior encaminhando da responsável para o atendimento individual. Os responsáveis, certas vezes, direcionam ao psicoterapeuta angústias e sentimentos que se dirigem a outras questões, não relacionadas à criança, que necessitam de outro espaço de acolhimento. Os autores reconhecem essa atitude de encaminhamento como um acolhimento, importante tanto para a mãe quanto para a filha. Verifica-se, portanto, a importância de um olhar para o funcionamento familiar, pois esse modo de investigação pode gerar uma repercussão positiva no processo psicoterapêutico, tal como ocorrera nos dois casos aqui discutidos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Percebe-se que na clínica nem sempre quem busca o atendimento o faz para si próprio. Não raro o pedido de ajuda tem por alvo terceiros, como é muitas vezes o caso de pais, mães e familiares que buscam atendimento psicológico para seus filhos, netos, sobrinhos etc. Esses casos apresentam uma complexidade maior na triagem, por demandarem uma atenção de escuta específica para compreender o que concerne ao demandante e o que é do outro.
O atendimento infanto-juvenil tem especificidades. A família nesses atendimentos se faz mais presente que o usual em qualquer outra modalidade terapêutica, sendo necessário, em determinadas circunstâncias, como nas exemplificadas neste trabalho, ofertar o serviço a outro membro e não àquele que veio designado no primeiro momento. No entanto, esse movimento interventivo deve ser analisado com base em uma orientação teórica e feito a partir de uma escuta atenta, agindo em prol dos implicados.
No desfecho dos atendimentos, as responsáveis aceitaram realizar o atendimento clínico no lugar dos filhos, permanecendo na fila de espera para atendimento no serviço-escola de Psicologia da referida Universidade. Percebe-se que houve uma postura receptiva à ideia, a despeito do fato dela contrariar a procura inicial dos responsáveis. Na ética da psicanálise, muito diferente daquela que regula o comércio, bem como inúmeras psicoterapias, o cliente nem sempre tem razão. Por isso, não é recomendado que se corra para atender seus pedidos, independentemente do quanto ele se disponha a pagar por isso.
Na psicanálise, não atender ao pedido que vem do Ego é apenas uma parte do processo. Outra parte, verdadeira contrapartida a tal recusa, consiste em mobilizar e acolher o movimento desejante do inconsciente. Desta forma, nem sempre os encaminhamentos decorrentes da triagem corresponderão às expectativas iniciais que os sujeitos trazem ao serviço-escola de psicologia. O que não quer dizer que não lhe será ofertado nada em troca. Oferece-se uma escuta - não do Ego, mas do inconsciente - e a partir dela, procura-se criar uma nova demanda, uma demanda retificada. Uma meta possível de ser alcançada, como mostram os casos aqui apresentados, mesmo no contexto de triagens realizadas no âmbito de um serviço-escola.
REFERÊNCIAS
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Universidade Estadual de Londrina, Fundamentos de Psicologia e Psicanálise - Londrina - PR - Brasil
Correspondência
Ana Carolina de Moraes Silva
e-mail: anacarolianams@gmail.com
Amanda Carolina Pagan de Oliveira
e-mail: amandapagan1997@gmail.com
Guilherme Severo Lins de Almeida
e-mail: gl_guilhermelins@hotmail.com
Daniel Polimeni Maireno
e-mail: dpmaireno@gmail.com / e-mail alternativo: d_maireno@hotmail.com
Submetido em: 19/06/2019
Aceito em: 15/01/2020
Contribuições: Ana Carolina de Moraes Silva - Coleta de Dados, Conceitualização, Redação - Preparação do original; Amanda Carolina Pagan de Oliveira - Coleta de Dados, Conceitualização, Redação - Preparação do original; Guilherme Severo Lins de Almeida - Coleta de Dados, Conceitualização, Redação - Preparação do original; Daniel Polimeni Maireno - Redação - Revisão e Edição, Supervisão.
Instituição: Universidade Estadual de Londrina
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