Rev. bras. psicoter. 2019; 21(3):13-24
Branco PCC. Do acolhimento da queixa à compreensão da demanda na terapia centrada no cliente. Rev. bras. psicoter. 2019;21(3):13-24
Artigo Original
Do acolhimento da queixa à compreensão da demanda na terapia centrada no cliente
From the complaint reception to the demand understanding in client-centered therapy
Desde la recepción de la queja hasta la comprensión de la demanda en la terapia centrada en el cliente
Paulo Coelho Castelo Branco
Resumo
Abstract
Resumen
INTRODUÇÃO
Os fenômenos da queixa e da demanda são comuns na prática clínica, sobretudo em seus momentos iniciais. Conquanto haja, por vezes, uma indistinção entre esses termos1,2,3, em linhas gerais podemos entender a queixa como um primeiro momento de contato com o profissional clínico em que o usuário do serviço manifesta conteúdos verbais e subverbais relacionados a um problema, situação ou outro indivíduo que lhe incomoda e gera sofrimento. A despeito desses conteúdos serem da ordem consciente ou inconsciente, é pelo intermédio da queixa que a pessoa procura um profissional para acolhê-lo, escutá-lo, entender o que se passa e tratá-lo. Assim, aquilo que é objeto da queixa ocasiona o ingresso da pessoa na clínica4.
Durante o processo terapêutico, contudo, ocorre um movimento de conversão da queixa para a demanda5. Isso acontece conforme o sujeito vai deixando de perceber o objeto de sua reclamação como algo que lhe é externo e independente, passando a vivenciá-lo e comunicá-lo como algo que perpassa e/ou advém de sua experiência, implicando em uma maior compreensão sobre os elementos pessoais que estão relacionados ao sofrimento. Logo, o termo demanda acena para a experiência de sofrimento tal como ela é percebida e vivenciada pela pessoa a partir de sua carga afetiva6.
A conversão da queixa em demanda, todavia, não é algo fácil de ser identificado na experiência clínica, dado que ela depende de um esforço conjunto entre terapeuta e cliente para ir além da queixa manifesta5. Nesse sentido, a queixa deve ser recebida e escutada para além de sua literalidade. Esse aporte foi pioneiramente pensado por Sigmund Freud7, embora de forma indireta no que concerne ao uso desses termos clínicos.
Para o psicanalista5, o paciente já encontra o analista com uma atitude transferencial que deverá ser desvendada pouco a pouco. Para isso, é preciso deixar o paciente falar de modo livre, sem maiores perturbações e entender que há algo além do que ele expressa inicialmente e diz respeito ao seu sintoma. Isso acontece em razão das resistências. Nessa lógica psicanalítica, a queixa representa uma angústia frente a um desejo e a demanda remete a um pedido ou exigência por algo que não se tem e não se pode encontrar sozinho8.
No âmbito da fenomenologia, pela vertente daseinanalítica, tal conversão depende da passagem de um modelo inferencial do quadro diagnóstico do paciente para um modelo perceptivo sobre a vivência global do sujeito acerca da sua doença e do seu sofrimento9. Isso ocorre em função de que o fenômeno (neste caso o clínico e o psicopatológico), na maioria das vezes, não se dá em sua totalidade, mas por partes. Logo, há no fenômeno coisas que estão encobertas e requerem uma postura analítica para desvelar o que está escondido e não está se mostrando em um dado momento. Por isso, a descrição do vivido ocupa uma posição central no olhar clínico-fenomenológico sobre o paciente, dado que isso suscita variadas manifestações de algo que está presente no outro e é da ordem do sentido9.
A ótica fenomenológica, portanto, indica que a manifestação clínica é dada pelo o que se expressa no presente e não pelo o que está detrás ou além disso (como uma entidade inconsciente, ambiental ou biológica, por exemplo). Aquilo que não é percebido em um dado momento, quando tornado consciente e descrito é tomado como verdadeiro e dado10. Ainda assim, é necessário um esforço do terapeuta para reconhecer a experiência do paciente (sua demanda), distinguindo-a do que ele se queixa e toma como algo que lhe é externo, em uma atitude natural que encara as coisas do mundo como apartadas e independentes da experiência vivida9.
Nesse breve transcurso sobre o tema, em síntese, é possível notar que existe uma diferença entre a queixa e a demanda, no que concerne a percepção e a vivência do problema que impulsiona o indivíduo a procurar ajuda. Enquanto a queixa pode ser concebida como uma reclamação inicial que impulsiona uma busca por escuta, a demanda pode ser entendida como o real pedido (motivo) de ajuda - e não a reclamação pela qual o indivíduo foi à clínica. Com efeito, faz parte da habilidade do terapeuta: 1) acolher as queixas do outro, mas não ficar restrito a elas somente escutando reclamações sobre algo ou alguém; 2) compreender o que está para além ou aquém dessas reclamações e objetos (aparentemente) externos ao sujeito, de modo a implicá-lo em seus afetos, a partir do que ele sente, pensa e faz com o que acontece consigo.
Destarte, este artigo objetiva tecer uma reflexão teórica sobre a questão do acolhimento da queixa e da compreensão da demanda no processo clínico da terapia centrada no cliente, elaborada por Carl Rogers. Argumenta-se que os fenômenos da queixa e da demanda não foram pensados diretamente por Rogers11, o qual não empregou esses termos em sua teoria. Em uma ótica pós-rogeriana, o tema ainda não foi desenvolvido em nenhuma produção nacional19. A despeito disso, é possível avançar em um entendimento teórico sobre esses fenômenos segundo o referencial rogeriano. Para tanto, inicialmente, apresentam-se algumas noções teóricas úteis ao entendimento do que seria a queixa e a demanda na terapia centrada no cliente. Em seguida, ponderam-se algumas implicações de como é possível fazer a conversão da queixa em demanda no processo clínico.
Algumas noções teóricas da terapia centrada no cliente para entender a queixa e a demanda
A terapia centrada no cliente considera que o seu objeto de estudo e intervenção é a personalidade, entendia como self. Esta instância psíquica se relaciona com a experiência, a consciência, a percepção, o campo fenomenológico e o comportamento11,12.
Por experiência, Rogers11 entende tudo aquilo que perpassa o organismo e potencialmente está disponível para se tornar consciente. A experiência engloba vivencias de fenômenos conscientes (perceptíveis em um dado momento) e inconscientes (ora não percebidos). O organismo é um sistema que sedia todos os processos fisiológicos e psicológicos básicos e funciona de modo a se autorregular em um ambiente. Nesse sentido, a consciência é uma função epistêmica do organismo que opera no reconhecimento do que está acontecendo nele e no ambiente, de maneira a contatar o que se sente (vivencia) e elaborar um conteúdo simbólico que atribui significado (conteúdo) ao sentido (vivido)17. Para Rogers11, a consciência opera mediante a percepção de excitantes (objetos) externos no ambiente e do que se percebe como fenômenos internos (emoção, sentimentos, memória entre outros).
O conjunto das simbolizações, oriundas da consciência de algo, fica retido na experiência em termos de impressões sobre si, sobre o outro e sobre o ambiente (mundo). Essas impressões constituem o campo fenomenológico e indicam um modo próprio de se relacionar consigo, com o outro e com o ambiente (mundo)12. A partir disso, incorre um senso de centralidade de si diante do mundo, constituindo-se uma realidade particular que é tomada como significativa e singular, conquanto haja, também, uma realidade que é compartilhada em termos de simbolizações sobre um mesmo objeto que pode ser acessado por mais de uma pessoa12.
O campo fenomenológico constitui uma lente sobre o mundo. A reação a essa realidade vivida é entendida como comportamento, que é uma expressão da experiência no ambiente (mundo) envolvida pelo movimento de busca por satisfação de uma necessidade. Esse movimento é expresso como uma tendência à realização que, basicamente, concerne à busca por concretizar algo relacionado à experiência da pessoa sobre o ambiente12.
Logo, as relações (autorregulações) entre organismo (pessoa) e ambiente (mundo), sugerem buscas por17: equilíbrio; auto modificação do organismo para se adaptar ao ambiente; modificar o ambiente para adequá-lo à experiência; saída do ambiente. Esses movimentos envolvem uma busca por tensão e pela redução dela. Todo comportamento, portanto, é dirigido por uma meta autorrealizadora e é acompanhado de uma emoção que refere ao estado mais atual daquilo que o organismo sente sobre o que se passa nele12.
A partir das relações entre organismo e ambiente, uma parte do campo fenomenológico emerge como o self e afeta o comportamento. O self é um padrão organizado de conceitos (simbolizações) e percepções de si mesmo12. É resultante de uma intersecção entre as demandas internas ao organismo (incluindo os valores oriundos de suas simbolizações) e externas a ele (englobando valores provenientes de outras experiências, da sociedade e da cultura)12,17.
Deste modo, a personalidade é organizada constituindo uma experiência de si que irá influenciar os movimentos de autorrealização e o comportamento. Quando as regulações são realizadas em função da experiência direta do que se passa no organismo e do que se elabora a partir do que ele contata, ocorre um self real17. Caso isso ocorra a partir de introjeções de fontes externas, sem maiores apropriações e elaborações (pela consciência), ocorre um self ideal. Com efeito, o self pode ser entendido como uma Gestalt que organiza e articula todos os elementos da experiência, da consciência, do campo fenomenológico, do comportamento e dos movimentos de busca por autorrealização12.
Existem, entretanto, alguns elementos que desorganizam a personalidade e afetam a experiência, propiciando o que seria uma queixa. Em um nível subceptível, nem sempre a pessoa consegue discriminar os excitantes ou os fenômenos que lhe afetam e provocam uma tensão. Ou seja, ela é capaz de reconhecer que existe uma tensão básica, mas não consegue atribuir um significado que decorra de sua experiência direta. Essa vivência pode ser entendida como um estado de vulnerabilidade que denota um desacordo entre a experiência e o self. Por isso, ocorre uma angústia, um estado de mal-estar cuja causa a pessoa não conhece e tende a condicioná-la a um objeto que lhe é exterior. Essa manifestação acontece como uma reação de defesa a algo que é vivido como uma ameaça a estrutura/organização de self 11.
Logo, pelo referencial rogeriano11, a queixa consiste em um estado de vulnerabilidade, pois o cliente não consegue articular conscientemente e com riqueza de simbolizações o que lhe é vivido como uma situação problema que o afeta. A queixa, ainda, é uma vivência de angústia que emerge como um senso de indefesa e impossibilidade de resolubilidade ante o objeto, que lhe é externo e provoca mal-estar.
Há, pois, uma consciência latente de que algo (vinculado a um objeto externo) transcende o cliente.
Ocorre, então, uma intercepção, dado que o cliente afasta de sua experiência o objeto que lhe é ameaçador, de modo a tornar-lhe uma entidade externa - independente e existente por si só, que pouco ou nada tem relação com a sua experiência. Esse afastamento é uma reação de defesa a algo que ameaça a organização do self 11, e faz com que o cliente evite entrar em contato com a sua vivência do problema e/ou do objeto da queixa.
Por conseguinte, decorre uma rigidez perceptual do campo fenomenológico em que o cliente tende a simbolizar o problema que gera a queixa em termos absolutos e incondicionais à sua experiência11. Eis uma explicação para a sensação de impossibilidade de enfrentamento do objeto da queixa e da falta de implicação (evitação de contato) sobre os elementos da experiência envolvidos na vivência do problema.
A conversão da queixa em demanda acontece, portanto, quando o cliente deixa de se relacionar com o problema como uma entidade externa e passa a vivenciá-lo como uma experiência de si11. Esta concerne em uma maior apropriação dos elementos que perpassam a experiência consciente, a partir do contato da vivência do objeto da queixa e dos sentidos que emergem e são conscientemente significados de acordo com o self real12.
O cliente adentra a esfera da demanda quando sua consciência se volta para os elementos afetivos e cognitivos que perpassam a sua tensão, simbolizando-os tal como são vividos em seu contexto imediato. Os conteúdos que expressam a demanda não necessariamente correspondem à realidade, mas se vinculam ao campo fenomenológico do cliente e suas reações, mediante comportamentos e buscas por autorrealizações12.
Além disso, ao entrar em contato com a demanda, o cliente apresenta mais receptividade e abertura à experiência e se torna mais consciente dos aspectos que ameaçam a sua estrutura de self e afetam seu o campo fenomenológico e comportamento11. Na vivência da demanda, pondera-se que o cliente não intercepta sua experiência e entende que as causas e condições de seu problema, quer se tratem de objetos externos ou não, provocam-lhe reações afetivas (sensações, emoções e percepções) que lhe são próprias (em suas vivências) e lhe requerem um posicionamento (movimento) singular.
Existe uma percepção discriminativa e diferenciada do que se sente, percebe, pensa e faz frente ao sofrimento vivido. O cliente avalia e responde ao problema e a vivência deste, com base no que experimenta, assumindo uma responsabilidade para lidar de forma mais integrada com o que lhe aflige. É capaz, ainda, de rever o seu campo fenomenológico e comportamento atual, a partir de novos dados que lhe aparecem na experiência, e responder à demanda segundo aquilo que lhe corresponde em sua busca por autorrealização12.
Pensando a partir dos aportes teóricos rogerianos11,12, em suma, a conversão da queixa em demanda acena: para uma menor objetificação (externalização) da experiência do cliente sobre um determinado objeto problema que lhe gera tensão; e para um maior contato, apropriação e posicionamento ativo sobre o problema, a partir da experiência e sua relação com o self. Por vezes, diversas queixas podem remeter a uma única demanda que expressa o movimento do cliente naquilo que ele busca como autorrealização.
Implicações para a conversão da queixa em demanda no processo clínico centrado no cliente
Segundo Rogers11, o self,
"Essencialmente, é uma Gestalt cuja significação vivida é suscetível de mudar sensivelmente e até mesmo sofrer uma reviravolta, em consequência da mudança de qualquer um destes elementos. [...] Alguma coisa deste gênero pode produzir-se na imagem que o cliente faz de si mesmo. Por ocasião de algum acontecimento [...] sua atitude em face de si mesmo se modifica dando origem a uma mudança considerável na ideia que faz de si mesmo" (p. 167).
É nesse sentido que o acontecimento clínico pode proporcionar uma conversão da queixa em demanda. No momento inicial do processo terapêutico13, é possível identificar que a busca de ajuda, por parte do cliente, é impulsionada pela procura por alguém que o escute em relação ao que lhe é problemático. Existe a necessidade de reclamar sobre algo e/ou alguém, ao passo que isso é catártico, no sentido de expressar e extravasar as emoções que estão contidas na experiência. No entanto, o cliente pode ter dificuldades em reconhecer o que se passa em sua experiência e comunicá-la ao terapeuta, dado os elementos que ameaçam sua estrutura de self 14.
Destarte, o acolhimento da queixa nas fases iniciais do processo terapêutico está circunscrito à criação de uma atmosfera em que: o cliente, frequentemente, solicita que o terapeuta lhe indique o que pensar, decidir e fazer - para resolver o problema e reduzir ou eliminar a tensão. O terapeuta não assume esse lugar resolutivo, mas demonstra uma disponibilidade para ajudar o cliente a encontrar o seu próprio caminho para lidar com a situação, através do contato com a experiência e o que emerge dela14.
Assim, deixa-se de tratar o problema como uma entidade externa para abordá-lo com base no que se vivencia dele. Conforme o cliente adentra essa lógica de implicação ele começa a se apropriar de sua experiência a partir do que vivencia, em termos de conteúdos positivos e negativos em seu referencial. O terapeuta possibilita que o cliente expresse livremente as suas impressões e emoções em relação ao problema ou ao objeto da queixa. Ao reconhecer isso, o terapeuta responde não ao conteúdo da queixa, mas as vivências (emoções e sentimentos) que estão subjacentes a ela e se manifestam na relação presente13,14.
Cabe ao cliente reconhecer o valor do que sente e significa sobre a sua situação problema e os seus objetos. Ao se voltar para isso, ele amplia a sua experiência de modo a examinar o que se passa nela, atentando para quais percepções e valores (juízos) decorrem, ou não, dela14. Nesse momento podem ocorrer insights, ou seja, mudanças de percepções e entendimentos sobre o problema. Ressalta-se que um insight não necessariamente envolve uma mudança na situação problema, mas se trata de uma mudança na experiência do cliente que pode ocasionar novas percepções sobre o que lhe acontece13.
À luz desse novo referencial, o cliente tem uma nova apreensão de si e do problema segundo ele apropria (sente) do que se passa em sua experiência, elabora (significa) e reage sobre ela13. O cliente estabelece, pois, outra percepção sobre si e a situação que lhe gera tensão, sendo capaz de estabelecer e lançar metas (direcionamentos) para lidar com o problema de forma mais satisfatória aos seus movimentos de autorrealização12.
A despeito disso, pode haver certo desespero e receio diante das possíveis mudanças ou tomadas de decisões, dado que se trata de um novo movimento. Com o avanço dessas visadas na relação clínica, o cliente continua a ampliar sua experiência de forma a lidar com a demanda segundo um maior entendimento de si, do que sente e significa em sua organização de self. O cliente, então, torna-se mais confiante para experimentar isso fora da relação clínica, em outros contextos relacionais que o afetam. É possível que alguns comportamentos anteriores permaneçam, porém vividos e reexaminados segundo essa nova disposição13,14.
Com efeito, conforme a queixa é acolhida e vivida segundo o que emerge da experiência do cliente, advém uma conversão para a demanda. Esse reposicionamento frente ao objeto da queixa ocorre à medida que o cliente consegue adentrar esse tipo de vivência e a se movimentar na relação terapêutica reagindo ao problema com base em seu novo referencial (campo fenomenológico)12.
Assim, suas respostas são mais habilidosas e responsáveis no sentido de haver um novo comportamento diante do sofrimento provocado por uma vivência de realidade, a partir do que se apropria (sente diretamente pela experiência) e elabora (simboliza pela consciência) dela. Para gerar tal implicação e ampliação experiencial, que convertem a queixa em demanda, argumenta-se que as condições de consideração positiva incondicional e compreensão empática são as atitudes-chave11,15.
No âmbito da consideração positiva incondicional, entende-se que esta atitude deve ser sustentada pelo terapeuta de modo a perceber como as expressões da experiência do cliente o afetam15. Com efeito, refletindo para além da exposição rogeriana sobre essa condição, se tais expressões afetam de modo a corresponder a sua experiência e self, ocorre uma simpatia (um afeto que gera aproximações). Se não corresponder, incorre um estado de antipatia (outro afeto que gera distanciamento). Se não afeta, no sentido de intensificar uma simpatia ou antipatia, decorre uma apatia (uma espécie de indiferença ante o que está sendo manifesto pelo outro).
Ao identificar esses movimentos de reação sobre a expressão do cliente, o terapeuta deve: 1) reconhecer que esses afetos emergem e dizem respeito à sua experiência e não a do cliente; 2) entender que os juízos (valores) que emergem desses afetos são seus e não, necessariamente, condizem com o que o cliente sente e significa da queixa e demanda em tela; 3) considerar que, no momento da relação terapêutica, o que está em voga são a experiência e o self do cliente, por isso precisa se concentrar em apreender os sentidos e significados que procedem do outro. Logo, considerar positiva e incondicionalmente implica em não julgar, mas apreciar (ação de não colocar preço/valor) a experiência do cliente11, partindo dela como fonte de informação verdadeira e válida para compreender sua tensão e problema11.
A atitude da compressão empática, nessa lógica, relaciona-se intensamente com a consideração positiva incondicional, dado que o terapeuta se torna consciente das suas vivências, distinguindo-as daquelas do cliente e tomando o cuidado para não misturá-las em seus conteúdos. Ou seja, o terapeuta cuida para não atestar, contestar e ser indiferente às expressões do cliente segundo a sua experiência e os seus juízos. Quando isso acontece, cabe ao terapeuta retirar isso de ação, no momento clínico, em prol de focar os elementos que partem do cliente. Posteriormente, em uma supervisão, aquilo que foi suspendido pode retornar para que se examinem os limites da experiência que foram provocados pelo cliente16.
A questão da compreensão empática, segundo Rogers12, perpassa uma dimensão comunicacional (ação de tornar algo comum) em que duas pessoas constantemente checam se estão apreendendo o mesmo sentido e significado de uma vivência específica. Trata-se, em suma, de uma tentativa do terapeuta se aproximar do campo fenomenológico do cliente, como se fosse o seu (sem perder a qualidade do "como se fosse"), para entender como ele estrutura e organiza sua experiência e self 15.
Indo para além do pensamento rogeriano, pondera-se que compreensão remete, inicialmente, a uma apreensão do que o cliente expressa sobre o problema. Atenta-se para as emoções e sentimentos do cliente e para os conteúdos (significados) que emergem deles. Contudo, o que foi apreendido pelo terapeuta fica retido em sua experiência e lhe gera uma impressão que deve ser examinada à luz da consideração positiva incondicional.
Com a intenção de responder aos afetos do cliente, o terapeuta devolve os sentidos e significados que ele apreendeu, colocando suas impressões na relação, com o cuidado de verificar se elas fazem sentido, ou não, para o cliente. Se sim, ocorre uma apreensão conjunta dos sentidos e significados do que a vivência em foco condiz ao cliente, no momento presente da relação. Eis o advento da compreensão empática, uma apreensão conjunta sobre os sentidos e significados do que se passa na experiência cliente. Se isso não ocorrer, o terapeuta tenta refazer o percurso de modo a tentar se aproximar do que o cliente vive em relação ao problema que o afeta.
Salienta-se que se o terapeuta responder somente ao conteúdo da queixa, deixa de provocar o contato, a apropriação e a elaboração do que o problema gera no cliente em termos de afetos. Isso dificulta a conversão para uma vivência de demanda, pois o olhar sobre o problema fica em um nível superficial em que terapeuta e cliente desatentam para as sensações, emoções, sentimentos e percepções que permeiam a vivência do objeto da tensão provocada pelo problema. Embora seja terapeuticamente catártico, somente ficar no nível da queixa não possibilita os avanços processuais anteriormente descritos. Destaca-se, finalmente, que toda compreensão empática é limitada, dado que somente o sujeito da experiência pode acessá-la integralmente no presente momento12.
Considerações finais
Embora os fenômenos da queixa e da demanda sejam recorrentes na prática clínica, não existem ponderações sobre eles segundo o referencial teórico de Carl Rogers. Com efeito, a falta de referências internas e externas a Rogers constituiu um limite para este artigo. Nesse sentido, buscou-se oferecer um entendimento teórico sobre tais fenômenos a partir dos aportes da terapia centrada no cliente e de como ocorre à conversão da queixa em demanda no processo terapêutico.
Conclui-se que a terapia centrada no cliente possui implicações conceituais que possibilitam um olhar clínico sobre tais fenômenos em relação aos seus aspectos constituintes, distintivos e conversivos no processo terapêutico, sobretudo, via articulação entre consideração positiva incondicional e compreensão empática. No âmbito da consideração positiva incondicional, o terapeuta deve lidar com os afetos (simpáticos, antipáticos e apáticos) que o cliente lhe provoca. No desenvolvimento da compreensão empática, existe um percurso de apreensões, retenções, impressões e expressões sobre tais afetos que envolvem terapeuta e cliente. O manejo dos afetos e compreensões são os elementos que possibilitam a conversão da queixa em demanda no processo terapêutico centrado no cliente.
Embora essas reflexões tenham sido elencadas seguindo uma lógica clínica tradicional, tais conceitos, movimentos processuais e atitudes podem ser implicados e repensados na prática da clínica ampliada e das intervenções terapêuticas grupais, em diversos dispositivos de saúde, dado que os fenômenos da queixa e da demanda comparecem nesses âmbitos.
Para ampliar futuras reflexões sobre a conversão da queixa em demanda, sugerem-se estudos teóricos com base em outros referenciais, como a análise do comportamento. Indica-se, ainda, a importância de estudos empíricos sobre tal conversão, como análise de conteúdo de prontuários clínicos e estudos fenomenológicos empíricos sobre experiências de estagiários e profissionais que lidam com isso.
REFERÊNCIAS
1. More C, Crepaldi M, Gonçalves J, Menezes M. Contribuições do pensamento sistêmico à prática do psicólogo no contexto hospitalar. Psicologia em Estudo. 2009; 14(3): 465-473. Avaliable from: http://www.scielo.br/ pdf/pe/v14n3/v14n3a07.pdf
2. Silva C, Serralha C, Laranjo A. Análise da demanda e implicação dos pais no tratamento infantil. Psicologia em Estudo. 2013; 18(2): 281-291. Avaliable from: http://www.scielo.br/pdf/pe/v18n2/a09v18n2.pdf
3. Breschigliari J, Jafelice G. Plantão Psicológico: ficções e reflexões. Psicologia: Ciência e Profissão. 2015; 35(1): 225-237. Avaliable from: http://www.scielo.br/pdf/pcp/v35n1/1414-9893-pcp-35-01-00225.pdf
4. Ieto V, Cunha M. Queixa, demanda e desejo na clínica fonoaudiológica: um estudo de caso clínico. Revista da Sociedade Brasileira de Fonoaudiologia. 2007; 12(4): 329-334. Avaliable from: http://www.scielo.br/ pdf/rsbf/v12n4/v12n4a13.pdf
5. Féres-Carneiro T, Meloo R, Machado R, Magalhães A. Falhas na comunicação: queixas secundárias para demandas primárias em psicoterapia de família. Temas em Psicologia. 2017; 25(4): 1773-1783. Avaliable from: http://www.scielo.br/pdf/tpsy/v25n4/2358-1883-tpsy-25-04-1773.pdf
6. Machado R, Mello R, Dantas C, Moraes J. Psicoterapia de casal: ambiguidade na demanda de tratamento e manejo clínico. Vínculo. 2018; 15(1): 08-21. Avaliable from: http://www.redalyc.org/articulo. oa?id=139456047003
7. Freud S. Sobre o início do tratamento - Novas recomendações sobre a técnica da psicanálise I. In: Freud S. O caso Schreber, artigos sobre técnica e outros trabalhos: 1911-1913 (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, Vol. XXII). Rio de Janeiro: Imago; 1996. p. 139-158. (Trabalho original publicado em 1913).
8. Pisetta M. Angústia e demanda de análise: reflexões sobre a psicanálise no hospital. Boletim de Psicologia. 2008; 58(129): 171-183. Avaliable from: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/bolpsi/v58n129/v58n129a05.pdf
9. Tatossian A, Bloc L, Moreira V. Psicopatologia fenomenológica revisitada. São Paulo: Escuta; 2016.
10. Feijoo A. A fenomenologia antropológica de Binswanger. Revista Aoristo. 2017; 1: 124-141. Avaliable from: http://e-revista.unioeste.br/index.php/aoristo/article/view/16523
11. Rogers C. Teoria e pesquisa. In: Rogers C, Kinget M. Psicoterapia e relações humanas: teoria e prática da terapia não-diretiva (Vol. 1). Belo Horizonte: Interlivros; 1977. p. 143-274. (Trabalho original publicado em 1959).
12. Rogers C. Terapia centrada no cliente. São Paulo: Martins Fontes; 1992. (Trabalho original publicado em 1951).
13. Rogers C. Psicoterapia e consulta psicológica. São Paulo: Martins Fontes; 2018. (Trabalho original publicado em 1942).
14. Rogers C. Tornar-se pessoa. São Paulo: Martins Fontes; 2009. (Trabalho original publicado em 1961).
15. Rogers C. As condições necessárias e suficientes para mudança terapêutica de personalidade. In: Wood F, ed. Abordagem centrada na pessoa. Vitória: EDUFES; 2008. p. 143-161. (Trabalho original publicado em 1957).
16. Vieira E, Bezerra E, Pinheiro F, Castelo Branco P. Versão de sentido na supervisão clínica centrada na pessoa: alteridade, presença e relação terapêutica. Revista Psicologia e Saúde. 2018; 10(1): 63-76. Avaliable from: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rpsaude/v10n1/v10n1a05.pdf
17. Castelo Branco P. Fundamentos epistemológicos da abordagem centrada na pessoa. Rio de Janeiro: Viaveritas; 2019.
18. Castelo Branco P, Cirino S. Circulação de artigos brasileiros sobre Carl Rogers: ascensão, renascimento ou declínio?. Revista Subjetividades. 2017; 17(2): 01-11. Avaliable from: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rs/ v17n2/01.pdf
Docente do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Ceará. Docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Saúde da Universidade Federal da Bahia, Instituto Multidisciplinar em Saúde - Vitória da Conquista - Bahia - Brasil
Correspondência
Paulo Coelho Castelo Branco
Departamento de Psicologia, Universidade Federal do Ceará
Centro de Humanidades II
Avenida da Universidade, 2762, Bairro Benfica
60.020-160 Fortaleza, Ceará, Brasil
e-mail: pauloccbranco@gmail.com
Submetido em: 24/04/2019
Aceito em: 08/07/2019
Contribuição do autor: Coleta de Dados, Conceitualização, Investigação, Redação - Preparação do original,
Redação - Revisão e Edição, Visualização.
Instituição: Universidade Federal do Ceará
artigo anterior | voltar ao topo | próximo artigo |
Rua Ramiro Barcelos, 2350 - Sala 2218 - Porto Alegre / RS | Telefones (51) 3330.5655 | (51) 3359.8416 | (51) 3388.8165-fone/fax