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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2019; 21(2):21-33



Artigo Original

El seguimiento terapéutico en la escena urbana: transicionalidad e interjuego en la arena sociocultural

The therapeutic follow-up care in the urban scene: transitionality and interplay in the sociocultural arena

O acompanhamento terapêutico na cena urbana: transicionalidade e interjogo na arena sociocultural

Danilo Marques da Silva Godinhoa; Carlos Augusto Peixoto Juniorb

Resumo

O presente artigo visa refletir sobre o acompanhamento terapêutico, no intuito de articular as análises de Donald Winnicott acerca da importância das provisões ambientais primárias, à qualidade da relação que se estabelece entre o acompanhante terapêutico e o sujeito acompanhado. O acompanhamento terapêutico se inscreve no processo de Reforma Psiquiátrica brasileira, sendo uma de suas características mais marcantes a proposta de uma clínica ampliada, que acontece nos territórios de vida daqueles que são assistidos. A partir desta perspectiva, buscaremos esquadrinhar as questões clínicas decorrentes dessa abertura para o "fora" que caracteriza este tipo de acompanhamento. Constata-se com isso que, no acompanhamento terapêutico, as relações clínicas são estabelecidas no "aqui e agora" do cotidiano coletivo, domínio no qual a realidade só pode ser compartilhada, fazendo com que o vínculo seja distinto daquele que permeia os consultórios e clínicas de atendimento, promovendo outra qualidade de relação a qual precisa ser mais bem explorada pela literatura acerca do tema, exigindo a criação de conceitos que escapem às categorias clínicas tradicionais.

Descritores: Saúde mental; Acompanhamento terapêutico; Clínica ampliada; Intersubjetividade

Abstract

This article aims to reflect on the therapeutic follow-up care, with the intention to articulate Donald Winnicott analysis about the importance of the primary environmental provisions, and to the quality of the relation established between the therapeutic accompanist and the subject who is followed-up. The therapeutic follow-up care is part of the Brazilian Psychiatric Reform process, being one of the most striking features the proposal of san expanded clinic, which takes place in the living territories of those who are assisted. From this perspective, we will seek to analyze the clinical issues arising from this openness to the "outside" that characterizes this kind of followup. It can be observed that, in the therapeutic follow-up care, clinical relations are established in the "here and now" of collective everyday life, a domain in which reality can only be shared, making that the bond established be different from the one that permeates the clinics and consulting services, promoting another kind of relations quality, which needs to be more explored by literature regardin this theme, demanding the creation of concepts which get away from traditional clinical categories.

Keywords: Mental health; Therapeutic follow-up care; Expanded clinic; Intersubjectivity

Resumen

El presente artículo tiene por objeto reflexionar sobre el seguimiento terapéutico, con el fin de articular los análisis de Donald Winnicott sobre la importancia de las provisiones ambientales primarias, la calidad de la relación que se establece entre el acompañante terapéutico y el sujeto acompañado. El seguimiento terapéutico se inscribe en el proceso de Reforma Psiquiátrica brasileña, siendo una de sus características más marcantes la propuesta de una clínica ampliada, que ocurre en los territorios de vida de aquellos que son asistidos. A partir de esta perspectiva, buscaremos escudriñar las cuestiones clínicas derivadas de esa apertura hacia el "fuera" que caracteriza este tipo de acompañamiento. Se constata con ello que, en el acompañamiento terapéutico, las relaciones clínicas se establecen en el "aquí y ahora" del cotidiano colectivo, dominio en el cual la realidad sólo puede ser compartida, haciendo que el vínculo sea distinto del que permea los consultorios y clínicas de atención, promoviendo otra calidad de relación a la cual necesita ser mejor explotada por la literatura acerca del tema, exigiendo la creación de conceptos que escapen a las categorías clínicas tradicionales.

Descriptores: Salud mental; Acompañamiento terapéutico; Clínica ampliada; Intersubjetividad

 

 

INTRODUÇÃO

Das naus errantes aos Hospitais-dia, passando pelos asilos, variados lugares foram atribuídos à loucura. Atualmente estamos diante de uma abordagem clínica em saúde mental que pretende evitar ao máximo o confinamento do louco, permitindo-o localizar-se em qualquer geografia, sem destinar-lhe a fixação em um lugar específico. Surgem, com isso, uma série de recursos clínicos substitutivos às práticas de asilamento, segregação e exclusão, tais como: os Centros de Atenção Psicossocial, as Residências Terapêuticas, o Acompanhamento Terapêutico, dentre outros.

A loucura, ou aquilo que escapa aos padrões de normalidade mais clássicos, desacomoda, nos faz duvidar e questionar um punhado de obviedades. Essa experiência não pode ser romantizada, pois, sem dúvida, gera uma série de desafios cujas respostas precisam ser constantemente (re) inventadas.

Seguindo uma aposta de trabalho sustentada na liberdade e na autonomia, o presente artigo objetiva desenvolver uma reflexão acerca do tipo de vínculo estabelecido entre acompanhante terapêutico e sujeito acompanhado no âmbito do Acompanhamento Terapêutico. Em consonância com a prática por parte de diversos autores, adotaremos a abreviação AT para designar o "Acompanhamento Terapêutico" e At para se referir ao "acompanhante terapêutico".

E o que vem a ser o AT? Trata-se de um recurso clínico que visa à reabilitação psicossocial de sujeitos considerados loucos, insanos ou desarrazoados, em geral tratados como casos crônicos de doença mental. No entanto, nas últimas décadas o cenário foi alterado, tendo sido ampliada a demanda, incluindo quadros demenciais, espectros autistas, usuários de álcool e outras drogas, portadores de deficiência físicas e mentais, idosos, dentre outros1.

O AT consiste em uma prática clínica que se inscreve no processo de Reforma Psiquiátrica brasileira, intensificado a partir da década de 80 em função da "abertura política" que pôs fim ao período obscuro da ditadura militar. Mas, afinal, o que constitui o processo de Reforma Psiquiátrica brasileira? Paulo Amarante2 nos orienta na compreensão do que podemos entender acerca deste movimento, dando ênfase à trajetória da desinstitucionalização, período iniciado no final da década de 80. De acordo com o autor, esse momento é marcado por uma participação política mais significativa de importantes atores da sociedade civil, dentre os quais os próprios usuários dos serviços e seus familiares. Neste contexto de luta antimanicomial foi lançado o lema "Por uma Sociedade sem Manicômios", intensificando a crítica aos saberes e fazeres psiquiatrizantes e implementando um conjunto de medidas que visa à desconstrução, na prática, da lógica manicomial, atuando por meio da criação de uma rede de cuidados e de assistência substitutiva aos asilos psiquiátricos.

Foi precisamente no bojo deste cenário que o AT ganhou impulso, configurando-se como um dispositivo clínico potente frente aos imperativos impostos pelo processo de Reforma Psiquiátrica. Uma das características mais marcantes do AT reside no fato de investir na proposta de uma clínica ampliada, clínica esta que acontece nos territórios de vida daqueles que são assistidos, ou seja, trata-se de um cuidado que aposta nos vínculos sociais e afetivos menos circunscritos aos laços familiares estritos - trocas intersubjetivas mais amplas - que acontecem nos espaços de sociabilidade em geral.

Deste modo, o AT abdica do modelo clínico clássico, circunscrito às quatro paredes dos consultórios psicológicos ou mesmo psiquiátricos, colocando a ênfase nos intercâmbios socioculturais. O fato de o AT se constituir como uma modalidade clínica que acontece em estreito diálogo com o que existe "fora" dos espaços de sociabilidade terapêutica mais comuns, impõe pensarmos a sua dimensão clínica no mundo da cultura, como um efeito da crítica à exclusão social daqueles que fogem aos parâmetros de "normalidade" estabelecidos socialmente.

O presente artigo visa articular as análises de Winnicott acerca da importância das provisões ambientais primárias à qualidade da relação que se estabelece entre o At e o sujeito acompanhado. Dentre as questões clínicas decorrentes dessa abertura para o "fora" que caracteriza o AT, podemos destacar pelo menos uma: ao tomarmos a cidade como ambiência, qual é o tipo de relação desenvolvida entre acompanhante e sujeito acompanhado? Inequivocamente, trata-se de uma atmosfera diversa, em muitos aspectos, daquela que acontece no âmbito dos consultórios e clínicas de atendimento, performando outra qualidade de relação, a qual cumpre investigarmos.

Desta forma, optamos por transitar em um domínio teórico-conceitual que privilegia a ideia de que a constituição de si e do outro só pode ser pensada à luz de uma perspectiva compreensiva que contemple a dimensão intersubjetiva, em detrimento das concepções de subjetividade tradicionais, pautadas, em larga medida, por modelos conceituais que privilegiam fatores intrapsíquicos. Para tanto, centraremos as discussões prioritariamente em torno do pensamento teórico-clínico do pediatra e psicanalista Donald Winnicott, um dos principais expoentes da psicanálise relacional na escola britânica. Neste contexto, dialogaremos com importantes reflexões que nos auxiliam a pensar a importância das provisões ambientais - primárias e atuais - no processo de constituição subjetiva.

Partimos do pressuposto de que a constituição de si se dá na interface com as experiências vividas ao longo da vida, constituindo, com isso, um processo ininterrupto e inacabado. Portanto, não faz sentido operar uma cisão entre interno e externo - psique e mundo - uma vez que somos permanentemente atravessados pelo contexto - ambiente - no qual vivemos. Daí articularmos as análises de Winnicott acerca da importância das provisões ambientais primárias à qualidade da relação que se estabelece entre o At e o sujeito acompanhado.

Tendo em vista este panorama, na primeira seção do artigo, julgamos ser interessante percorrer algumas noções centrais desenvolvidas por Winnicott. Com base na sua teoria sobre o amadurecimento emocional primitivo, privilegiaremos a noção de intersubjetividade como um elemento central para pensarmos a clínica do AT. Cumpre assinalar que, embora Winnicott não tenha teorizado sobre este campo de atuação específico, suas contribuições são preciosas, auxiliando na reflexão acerca deste recurso terapêutico. Exploraremos, em especial, os seguintes conceitos desenvolvidos pelo autor: espaço potencial, experiência de ilusão, holding e regressão à dependência. Chamaremos a atenção para o processo de interação com o ambiente que acompanha o indivíduo desde o momento em que desperta para a vida, estendendo-se ao longo de todo o seu desenvolvimento. Na segunda seção, os conceitos e noções discutidas com base na teoria winnicottiana serão articuladas à uma reflexão acerca da prática clínica do AT.


A TEORIA DO DESENVOLVIMENTO EMOCIONAL PRIMITIVO EM DONALD WINNICOTT

Ao longo de toda a sua obra, Winnicott se dedicou a pensar os processos de maturação associandoos às provisões ambientais primárias, as quais são encaradas como determinantes para a constituição da subjetividade. O foco principal do autor recai nos estágios mais primitivos do desenvolvimento emocional do bebê, os quais remontam ao domínio pré-verbal e às primeiras relações objetais. Assim, parte-se do pressuposto de que os ambientes primários participam ativamente no processo de amadurecimento emocional, interferindo de forma decisiva na capacidade relacional posterior do indivíduo.

As observações de Winnicott, desenvolvidas a partir de sua experiência clínica como pediatra e psicanalista, fizeram com que o autor atentasse para o estado de dependência absoluta dos bebês, no período que se estende da gestação até os primeiros cinco ou seis meses de vida, aproximadamente. Tais observações o levaram a postular a necessidade da existência do que designou como mãe devotada comum, ou, mãe suficientemente boa, a fim de sublinhar a exigência de uma adaptação ativa às demandas do recém-nascido nos estágios primários do desenvolvimento maturacional.

Winnicott3 defende a hipótese da existência de tendências naturais inerentes ao amadurecimento emocional individual. No entanto, estas tendências não são alheias às intervenções do ambiente. Dentro da perspectiva teórica apresentada pelo autor, caso o meio-ambiente atenda às necessidades primárias do bebê, o desenvolvimento emocional seguirá o seu curso natural. Assim, o contexto no qual o recém-nascido desponta para a vida - isto é, as contingências externas que compõem o seu entorno - é tão importante quanto as tendências naturais ao desenvolvimento.

Segundo Winnicott3, no estágio inicial o bebê é completamente dependente de um "outro" que lhe assegure a sobrevivência e a contínua "sensação de continuidade do seu ser". O autor assinala que a tendência do processo maturativo está relacionada ao significado da palavra integração4. Deste modo, o desenvolvimento emocional depende inteiramente do processo de integração do ego, o qual só poderá se dar a partir da capacidade de adaptação emocional da mãe.

No início da vida, o recém-nascido encontra-se em um estágio de não-integração, isto é, não constitui ainda uma unidade enquanto indivíduo, sendo uno em relação à mãe-ambiente, com a qual se encontra numa situação paradoxal de unidade-dual. Isso implica no fato de que, neste primeiro estágio, há um estado de indistinção originária entre o psiquismo do bebê e o de sua mãe, sem que exista, com isso, uma delimitação mais precisa das fronteiras eu e não-eu. De acordo com Winnicott5, a integração do ego é um processo gradual que só é alcançado caso a mãe atenda às necessidades primárias do recém-nascido, num contexto de total dependência, permitindo que o amadurecimento emocional primitivo transcorra em segurança.

Em síntese, no estágio inicial caracterizado por um estado de dependência absoluta, é preciso haver, por parte da mãe, uma adaptação ativa suficientemente boa, pois esta é a condição de possibilidade para que o desenvolvimento emocional do bebê ocorra de forma satisfatória. Deste modo, os primeiros cuidados oferecidos ao bebê garantem o estabelecimento de um ritmo constante na doação materna, permitindo o sentimento de continuidade do ser, base para o desenvolvimento do self.

Winnicott6 pontua que é em função da possibilidade de o bebê encontrar o seio no momento em que dele sente necessidade - vivendo a ilusão de que cria aquilo que lhe provêm desde "fora" -, que ele pode desenvolver-se no sentido da continuidade do ser sem ser interrompido. Deste modo, a experiência de ilusão é o que garante ao bebê ser resguardado de perturbações demasiado constantes, às quais teria que reagir, e que poderiam interromper o processo tranquilo de desenvolvimento do ego.

O encontro exitoso entre a ilusão do bebê e a preocupação materna primária dá ensejo a uma área intermediária da existência, região paradoxal que não se situa "dentro" e nem tampouco "fora" do bebê, mas que conjuga estas duas dimensões na medida em que permite a ele mesclá-las em seu viver. Winnicott6 defende a tese de que entre o mundo subjetivo e o que é objetivamente percebido existe um espaço potencial onde ocorre uma experimentação ou experiência de ilusão, a qual é de suma importância para o desenvolvimento do potencial criativo do bebê.

Dentro desta perspectiva teórica, a realidade externa só poderá se colocar para o bebê de forma não intrusiva, ou seja, no caso de antes a mãe ter-lhe permitido a experiência de ilusão. Assim, é fundamental que seja assegurada ao recém-nascido a crença de que aquilo que lhe é ofertado é uma criação sua.

É somente a partir da ilusão que as tendências ao amadurecimento podem desdobrar-se de modo saudável, permitindo que o bebê comece a se apropriar das sensações correspondentes às experiências mais primitivas do período de dependência absoluta. Vale ressaltar ainda que a experiência de ilusão depende do estabelecimento de um ritmo no cuidado ofertado pela mãe, sua presença e sua ausência sendo administradas de modo a não interromper o sentido de continuidade do ser.

Portanto, Winnicott6 assinala que é preciso garantir ao bebê a possibilidade de iludir-se, a fim de que tenha condições de suportar uma desilusão gradual em momentos posteriores de sua vida emocional. Dito em outras palavras, é preciso que a experiência de ilusão seja assegurada, de modo que, à posteriori, o bebê suporte as frustrações inerentes ao encontro com a realidade externa. E, neste sentido, a dimensão da transicionalidade é um elemento fundamental.

Segundo Winnicott7, os fenômenos transicionais emergem no espaço potencial existente entre a psique e o mundo. O brincar habita este espaço potencial, área intermediária da experimentação que, conforme dito anteriormente, caracteriza-se por ser uma zona paradoxal, uma vez que reúne o mundo interno do bebê à realidade externa. Neste sentido, o autor assinala que é no âmbito deste domínio que se constitui a experiência criativa, marcada pela continuidade do ser no espaço-tempo, representando uma forma básica de viver.

Winnicott8 postula a existência de uma terceira área da experiência - a área da criação -, representada nos estágios iniciais pelos objetos e fenômenos transicionais, os quais se situam entre o subjetivo e o que é objetivamente percebido. Esta área intermediária, criada por meio do uso destes objetos e da experiência com aqueles fenômenos, permite ao bebê desenvolver-se criativamente no âmbito de uma zona entre a realidade interna e a percepção objetiva da realidade externa (compartilhada), perfazendo um domínio no qual o elo é dado pela possibilidade de conciliar dois mundos aparentemente incompatíveis.

Vemos, assim, que aquilo que Winnicott8 chama de objetos e fenômenos transicionais, diz respeito à possibilidade da criança transitar da subjetividade à objetividade, valendo-se do uso desta mescla criativa que conjuga o interno com o externo em uma mesma experiência. Aqui, uma vez mais, vale ressaltar o caráter paradoxal desta terceira área, pois ela não constitui uma simples soma - reunião aditiva entre as partes interna e externa -, ou mesmo uma fronteira definida, em que se poderia discernir o limite que separa sujeito e objeto. Trata-se na verdade de um espaço que "existe, mas não pode existir", entre a mãe e o bebê.

Winnicott6 sublinha que o desenvolvimento do potencial criativo depende de que a realidade externa seja paulatinamente apresentada ao bebê, em doses que possam ser por ele experimentadas homeopaticamente. Ou seja, é primordial modular a apresentação do mundo externo ao recém-nascido, de acordo com a sua capacidade de assimilação. Assim, conforme o desenvolvimento emocional avança, o "teste da realidade" pode ser introduzido de modo gradativo.

De acordo com Winnicott9, a ausência do sentimento de realidade pode ser verificada nos casos de pessoas consideradas "doentes mentais". Nestes, o curso do desenvolvimento emocional foi interrompido ainda no estágio primário, em função da recorrência das falhas ambientais. Como uma resposta a estas falhas, um falso self impede que o verdadeiro self possa manifestar-se, ocultando-o.

Cumpre assinalar que o falso self não é um aspecto estranho à personalidade, isto é, em condições normais a sua existência é importante no sentido de proteger o verdadeiro self do sujeito. Winnicott9 destaca que o problema diz respeito aos casos em que é verificada uma cisão entre o falso e o verdadeiro self, situações onde há a necessidade de intervir clinicamente no sentido de oferecer ao paciente o suporte necessário para que uma provisão ambiental adequada ocorra.

Desta forma, em casos deste tipo, a aposta clínica reside na criação de uma nova oportunidade, na qual a(s) falha(s) primária(s) poderá vir a ser trabalhada por meio de uma regressão ao estágio inicial do desenvolvimento emocional, denominada por Winnicott9 como regressão à dependência. Para tanto, é preciso que haja a oferta de um novo ambiente que se adapte plenamente às necessidades do paciente, permitindo que ele possa retomar o desenvolvimento emocional. Portanto, no que se refere à dimensão clínica, o valor da regressão consiste em oferecer ao sujeito uma nova oportunidade para experimentar o processo de desenvolvimento maturacional, agora em um novo contexto.

Winnicott10 acentua o quão difícil é, para o analista, o manejo destes casos. O retorno a um estado de dependência absoluta em análise - o que o autor concebe como regressão à dependência - exige permitir que o passado se torne presente, com todas as implicações que advém desta proposta. Esta questão da dependência imposta ao analista no caso de pacientes graves no que se refere ao comprometimento da saúde mental, remete à necessidade de que o terapeuta esteja capacitado a perceber a vulnerabilidade do ego do sujeito. Quanto mais consciente o analista for acerca da existência das falhas primordiais, melhor poderá corresponder às necessidades primárias do paciente.

Em síntese, o trabalho clínico junto a pacientes graves da saúde mental deve voltar-se ao estágio mais precoce do desenvolvimento emocional. Neste sentido, faz-se necessário um manejo sensível por parte do analista, já que está lidando com sujeitos que não possuem um ego solidamente integrado, e, por consequência, tampouco uma personalidade suficientemente madura em termos emocionais.

A esta altura, já temos uma ideia de base acerca do desenvolvimento emocional primitivo, bem como dos processos que concorrem para a constituição psicossomática do bebê, tal como Winnicott os concebe. Podemos então indagar: de que modo o dispositivo clínico do AT pode ser entrelaçado às questões levantadas pelo autor? Ou, quais de suas noções e conceitos podem contribuir à clínica do AT, no que diz respeito à relação entre acompanhante e sujeito acompanhado, promovida em meio aos espaços públicos?


INTERFACES DA TEORIA WINNICOTTIANA COM O AT

No livro Ética e técnica no acompanhamento terapêutico: andanças com Dom Quixote e Sancho Pança, Kleber Barreto11 sinaliza que a proposta central do seu trabalho é articular o campo do AT ao referencial psicanalítico winnicottiano, com ênfase na tentativa de explicitar o que se passa na relação acompanhanteacompanhado. Assim, o autor se baseia em Winnicott para refletir acerca das funções ambientais responsáveis pelo desenvolvimento emocional humano satisfatório.

Barreto11 aproxima o contexto primário de unidade entre a mãe e o bebê, existente nos primeiros tempos de vida do recém-nascido, do tipo de identificação empática que se faz necessária à clínica do AT. Neste sentido, o autor chama atenção para a demanda dirigida ao At no sentido de habitar uma zona de indiferenciação na relação com o sujeito acompanhado, ressaltando que tal indiferenciação é fundamental no sentido de auxiliar o paciente no seu desenvolvimento.

Vê-se que no AT deparamos com alguns casos - notadamente aqueles considerados mais graves - em que há a exigência do estabelecimento de uma dinâmica de não diferenciação na relação com o outro, ainda que seja necessário não perder de todo a capacidade de discriminação. Assim, o acompanhante terapêutico é convocado a assumir uma postura análoga à preocupação materna primária, pois, tal como a mãe, é instado a descentrar-se em direção ao paciente, sem perder a ancoragem em si mesmo. Com base na teoria winnicottiana, a hipótese é a de que em casos deste tipo houve, ainda nos estágios primários do desenvolvimento, uma interrupção no sentido de continuidade do ser. Tal interrupção se insere no contexto das falhas ambientais iniciais, as quais constituem um dos fatores responsáveis por fazer com que o sujeito se sinta despojado da capacidade de viver criativamente. Em função disso, persiste na vida adulta a demanda de que seja encontrado um objeto que dê continência às necessidades primárias.

Analice Palombini12 também destaca esta demanda dirigida ao At, na qual há o apelo por um tipo de identificação fusional. Somente através do estabelecimento de uma relação deste tipo, o sujeito acompanhado poderá usufruir de uma vivência psíquica compartilhada, indispensável para que se sinta real, dando contorno ao seu eu através da mescla entre fantasia e realidade.

A identificação descrita pelos autores aponta para a importância da função de holding no AT. Tal função depende de uma capacidade do acompanhante terapêutico em oferecer-se como suporte ao paciente através de uma atitude empática, permitindo que ele possa relacionar-se com o mundo dos objetos objetivamente percebidos de forma criativa e não apenas reativa. Deste modo, a função de sustentação e continência é imprescindível ao campo de atuação do AT, no sentido de propiciar ao sujeito uma experiência de continuidade de ser, sem a qual ele não poderá vir a dar vazão ao seu potencial criativo.

De acordo com Barreto11, é indispensável proporcionar ao sujeito acompanhado uma experiência de ilusão através dessa continência física e psíquica, marcada por um período de indiferenciação. Esta é a condição para que, posteriormente, o indivíduo seja capaz de suportar a separação e/ou discriminação com relação ao At. Dito de outro modo, se o período de indiferenciação for bem-sucedido, então será possível permitir, em seguida, a emergência de um domínio em que já pode haver a separação eu - não-eu. Neste sentido, a relação estabelecida entre o At e o sujeito acompanhado se dá no âmbito dos fenômenos transicionais, já que o acompanhante presta-se a ser uma posse não-eu do paciente, atuando como objeto transicional. Somente deste modo o At poderá introduzir, gradativamente, as frustrações e desilusões que permeiam o encontro com a realidade externa. Em suma, o acompanhante trabalha a favor de que o sujeito possa experimentar a continuidade de ser em meio ao viver coletivo, sem que este último se sinta ameaçado pela realidade externa.

Esse processo de assunção da realidade externa conduz ao campo do interjogo, aberto pelo espaço potencial de criação. Destarte, o sujeito acompanhado pode fazer uso dos objetos, representando a possibilidade de abertura à imaginação e ao desenvolvimento do seu repertório imaginativo. A aposta, neste caso, recai no desenvolvimento da capacidade de valer-se do mundo como campo de jogo.

Tem-se aqui a dimensão terapêutica de intervenção que atravessa o campo do AT, dispositivo que atua na vida do sujeito acompanhado apostando nos fenômenos transicionais, ou seja, ampliando a possibilidade de criação tanto da sua subjetividade, quanto do modo como participa da criação da realidade externa.

O AT situa-se, portanto, no espaço potencial - necessariamente paradoxal - que existe no interjogo do mundo interno com a realidade externa. Ao apostar na ocupação deste espaço, o AT dá ensejo aos processos de criação, investindo na participação do sujeito acompanhado nos intercâmbios socioculturais, levando-o com isso, a despojar-se do sentimento de inutilidade, de falta de sentido e de solidão.

Deste modo, o dispositivo do AT investe no potencial criativo do(s) indivíduo(s), dando-lhe a oportunidade de desenvolver uma interação mais adaptada com o ambiente que o circunda. No entanto, isto está longe de ser uma tarefa fácil, pois é alto o custo psíquico de ocupar o lugar de objeto transicional junto ao sujeito acompanhado.

Conforme vimos anteriormente, à luz da teoria de Winnicott, determinados casos são caracterizados, justamente, por dificuldades e/ou falhas no que concerne ao encontro com a realidade externa, em que pese o cuidado redobrado que se deve ter no sentido de mediar o uso dos espaços de sociabilidade, a fim de evitar que se tornem um fator que agrava ainda mais o sofrimento.

Adam Phillips13 chama a atenção para o fato de que há, dentro da perspectiva clínica defendida por Winnicott, a proposta de recriação do mundo interno - primordial - do sujeito, a partir da oferta de um setting capaz de propiciar a possibilidade de uso do ambiente a favor do processo de amadurecimento. Neste caso, o novo ambiente, criado a partir do tratamento, só favorecerá o desenvolvimento do processo de amadurecimento emocional se for sustentado com base numa atmosfera de confiança.

Assim, a função de holding, desempenhada pelo At, diz respeito a ajudar o indivíduo a desenvolver um sentido de continuidade do ser, tanto física quanto psiquicamente. E para que o indivíduo se sinta contínuo, às vezes é preciso tão somente testemunhar e compartilhar as experiências vividas. Neste caso, mesmo que aparentemente o acompanhante terapêutico não esteja fazendo nada, se a sua presença for dotada de qualidade afetiva, este já é o ponto de partida para que haja a oferta da possibilidade de alguma integração, a partir do desenvolvimento do potencial criativo.

Estar junto significa compreender que exercer este lugar "ao lado" implica no fato de que "algo se faz", mesmo quando aparentemente nada é feito. Assim, a disponibilidade para estar efetivamente presente ganha contornos clínicos outros, os quais são de grande relevância terapêutica, em especial quando se trata de casos considerados graves no campo da saúde mental.

A presença do At está relacionada ainda a possibilidade de desenvolvimento daquilo que Winnicott14 considera como um dos sinais mais importantes do amadurecimento do desenvolvimento emocional, relacionado à capacidade de estar só acompanhado. O desenvolvimento desta capacidade depende da oferta de uma atmosfera permeada pela confiança, o que aponta para um aspecto de suma relevância no âmbito da teoria de Winnicott, qual seja, a oferta de um espaço potencial de criação para o tratamento.

Com isso, constata-se que o vínculo no AT é desenvolvido no âmbito da realidade compartilhada, no qual a intersubjetividade desponta como uma categoria conceitual fundamental, apontando para o resgate da função terapêutica presente nas experiências do cotidiano coletivo, dimensão sociocultural em sua acepção mais ampla. Assim, em meio às andanças pela cidade, o acompanhante costura a experiência de ser e estar nos ambientes públicos, cerzindo junto ao outro as incontáveis tramas subjetivas que podem ser vivenciadas. Em última instância, trata-se de ser para o outro alguém que o ajuda a encarnar no mundo.

O At desponta aqui como guia às avessas, dispondo-se a ser conduzido de acordo com os interesses do acompanhado: uma referência que chancela aquilo que a experiência (com)partilhada descortina; o acompanhante transpira e faz ressoar esta experiência, oferecendo ao sujeito a oportunidade de desenvolver a capacidade de criar, a um só tempo, a si mesmo e ao mundo.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

O artigo articulou as análises de Donald Winnicott acerca da importância das provisões ambientais primárias à qualidade da relação que se estabelece entre o acompanhante terapêutico e o sujeito acompanhado. Ao nos dedicarmos à investigação acerca da atmosfera relacional que se estabelece entre o par acompanhante e acompanhado, constatamos que se trata de um vínculo, em grande medida, distinto daquele que permeia os consultórios e clínicas de atendimento, promovendo outra qualidade de relação.

Vimos que a abertura para o "fora" que caracteriza esta modalidade terapêutica faz com que as relações clínicas sejam estabelecidas no domínio público, no "aqui e agora" do cotidiano coletivo, investindo nos intercâmbios socioculturais. Há aqui o pressuposto teórico-clínico de que a realidade, em seu sentido mais pleno, só pode ser compartilhada. Neste sentido, as questões levantadas por Winnicott se tornam extremamente relevantes para pensarmos este campo.

Os fenômenos transicionais nos permitem considerar um manejo clínico que aposta em uma relação que venha a se estabelecer num espaço potencial de criação conjunta. Para tanto, há que se estar aberto a desenvolver, a cada nova situação, a capacidade de entrar em contato com as angústias do sujeito acompanhado, sabendo ao mesmo tempo jogar com o que o meio-ambiente oferece. Deste modo, o acompanhante precisa entrar no jogo dialógico, valendo-se dos lugares por onde circula.

É preciso, portanto, estar empaticamente vinculado às demandas e necessidades do paciente e, ainda, saber aproveitar os fatores externos - socioculturais -, então apropriados como matéria da clínica. O acento, neste caso, recai na instauração de uma dinâmica de interjogo, no espaço potencial, do acompanhante com

o sujeito acompanhado. Como vimos, tal dinâmica é marcada pela experiência de ilusão, possível apenas a partir do holding e da oferta da possibilidade de uma regressão à dependência, experiência instituída entre o eu e o outro, isto é, no domínio da realidade compartilhada.

Compreendemos, assim, uma vez mais, a importância da abertura ao socius, chamando a atenção para o fato de que é necessário - e mais, urgente! - estendermos o cuidado para além dos domínios teórico-práticos institucionalizados e institucionalizantes, próprios ao enquadre psicoterapêutico presente nos consultórios e clínicas de atendimento. Neste sentido, faz-se necessária a ampliação da produção de investigações que possam cartografar as práticas cotidianas de acompanhantes terapêuticos, pois embora seja constatado um progressivo aumento, há ainda muito a ser explorado, exigindo a criação de conceitos que escapem às categorias clínicas tradicionais. Em outras palavras, práticas que ensejam outros modos de estar com a loucura e com o que é tido como anormal, nos impelem à incursão por novos domínios do conhecimento.


REFERÊNCIAS

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12. Palombini A. Vertigens de uma psicanálise a céu aberto: a cidade. Contribuições do acompanhamento terapêutico à clínica na reforma psiquiátrica. Rio de Janeiro. Tese [Doutorado em Saúde Coletiva] - Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 2007.

13. Phillips A. Winnicott. São Paulo: Ideias & Letras; 2006.

14. Winnicott DW. O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. Porto Alegre: Artmed; 1983b. p. 31-37.










a Centro Universitário de Mineiros, Departamento de Psicologia - Mineiros - GO - Brasil
b Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Psicologia - Rio de Janeiro - RJ - Brasil

Correspondência
Danilo Marques da Silva Godinho
e-mail: danilomgodinho@gmail.com
Carlos Augusto Peixoto Junior
e-mail: cpeixotojr@terra.com.br

Submetido em: 10/02/2019
Aceito em: 17/06/2019

Contribuições: Danilo Marques da Silva Godinho - Investigação, Redação - Preparação do original; Carlos Augusto Peixoto Junior - : Redação - Revisão e Edição, Supervisão.

Instituição: UNIFIMES - Centro Universitário de Mineiros. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

 

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