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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2019; 21(1):111-119



Artigo Especial

A infância despida: uma reflexão sobre modos e vestimentas

The naked childhood: a reflection on manners and dress

A infância despida: uma reflexão sobre modos e vestimentas

Catia Schuh Weizenmann

Resumo

Este ensaio propõe refletir algumas questões contemporâneas que cercam o imaginário da vestimenta infantil, partindo do entendimento da noção de infância de diferentes épocas e buscando elementos da história do vestir infantil. Paralelamente traz fenômenos e características da sociedade atual, com sua ambiguidade, velocidade e variedade na busca de relativizar conceitos e compreender melhor a relação entre as latências dos adultos e o vestir das crianças, talvez como um desejo de volta ao passado e de sua própria infância.

Descritores: História; Infância; Vestimenta; Contemporâneo.

Abstract

This essay proposes to reflect some contemporary issues that surround the imagery of childrens clothing, starting from the understanding of the notion of childhood from different times and looking for elements of the history of childrens vestment. At the same time, it brings phenomena and characteristics of present-day society with its ambiguity, speed and variety in the quest to relativise concepts and to better understand the relationship between adults latencies and childrens dressing, perhaps as a desire back to the past and of their own childhood.

Keywords: History; Childhood; Clothing; Contemporary.

Resumen

Este ensayo propone reflejar algunas cuestiones contemporáneas que rodean el imaginario de la vestimenta infantil, partiendo del entendimiento de la noción de infancia de diferentes épocas y buscando elementos de la historia del vestir infantil. Paralelamente trae fenómenos y características de la sociedad actual, con su ambigüedad, velocidad y variedad en la búsqueda de relativizar conceptos y comprender la relación entre las latencias de los adultos y el vestir de los niños, quizás como un deseo de vuelta al pasado y de su propia infancia.

Descriptores: Historia; Infancia; Vestimenta; Contemporáneo.

 

 

INTRODUÇÃO

Na academia lemos, pensamos e discutimos sobre teorias e teóricos, problemas complexos e hipóteses bem fundamentadas. Fora dela, a vida nos exige soluções mais rápidas, e nós pais/pesquisadores, abandonamos Rousseau e Piaget em troca das soluções nada científicas e dicas de um blog qualquer sobre maternidade. É paradoxal, é complexo, mas é real.

Nada a se estranhar se considerarmos que vivemos em uma cultura líquida e efêmera. Dita também frenética, cambiante e conhecida pela permissividade com questões de gosto, gênero, sexualidade. Ao mesmo tempo e dividindo os mesmos espaços, estudos contemporâneos apontam para um comportamento extremista - algo que hoje pode ser visto, por exemplo, nas eleições norte-americanas ou nos grupos políticos brasileiros, mas que de fato já era apontado em comportamentos de grupos menores por Lipovetsky em suas Metamorfoses da cultura liberal1. Ou seja, é uma cultura onde se pode tudo cercada por uma série de pequenos grupos de pode mais ou menos.

A ambiguidade do pensamento de nossa sociedade, ora pede livre acesso às informações, ora reivindica censura. No ponto de vista da autora, a pluralidade - mesmo quando paradoxal - é saudável. Especialmente quando promove reflexões e quando permite relativizações. Afinal, conhecer, pensar e mudar são importantes ferramentas, não apenas das ciências, mas de crescimento pessoal. Pensar e repensar pode trazer inquietações, mas também alívio.

A questão insight desta reflexão nasce de uma destas inquietações sobre os aspectos que levariam a uma "adultização" infantil prematura, envolvendo a mídia, a facilitação da comunicação virtual, até mesmo questões de sexo e gênero. Esses fatos condensadas sobre a pele, na roupa, suscitam questões como: a atual vestimenta infantil é causa/reflexo de um amadurecimento precoce de nossas crianças? Quais as reflexões que crianças vestidas como adultos podem suscitar? Porque nos incomoda o traje delas em dias de gosto tão diverso?

Bem vindo ao nosso tempo

Mesmo em uma sociedade plural, inclusiva das diferentes concepções de mundo, de cultura, de saberes, cada indivíduo faz suas inferências e reflexões a partir de um ponto - ou seriam de muitos pontos - de seu aprendizado cognitivo. Assim, este artigo nasce das percepções e vivências da autora como pesquisadora em comunicação, como publicitária próxima às campanhas de marketing, como mãe de crianças pequenas, como consumidora, como ser inquieto.

Do ponto de vista acadêmico, parte de uma visão particular do contemporâneo como sendo um mundo pós-moderno. Esta nomenclatura tão debatida dá conta de um conjunto de condições de nosso tempo que o classifica justamente como plural, um tempo de democratização do gosto, de polimorfia, de indeterminação, de combinação, contra-interpretação, da anti-narrativa, do acaso, da anti-forma2.Há ainda uma linha de pensadores que propõe o pós-moderno não mais como uma linha de tempo reta e contínua, mas como uma estrutura espiral, na qual o pensamento (as opiniões, as referências) andam em círculos que ora podem se encontrar, ora avançam, ora retrocedem, e assim se explicariam alguns fenômenos como a valorização do artesanal, o gosto pelo retrô, a ânsia no novo ainda que baseada no antigo.

Autores como Teixeira Coelho3 e Jean Baudrillard4 complementam a visão de uma sociedade onde a compreensão de espaço sofreu rápidas transformações, uma vez que a tecnologia dos transportes e da comunicação/informação encurtou distâncias e praticamente aboliu o tempo, de modo que atravessar continentes é tarefa de algumas horas e, comprar produtos produzidos do outro lado do mundo é questão de poucos minutos e alguns cliques. A mesma velocidade que facilitou o intercâmbio de culturas - seja pelos avanços da logística ou pela amplitude da internet - o fez com tal velocidade que deixou lacunas no entendimento de espaço e tempo dos indivíduos, facilitando a implantação desta cultura não linear, fragmentada, dita pósmoderna. Por isso, em meio à busca hedonista de liberdades individuais, observa-se também "o retorno do interesse por instituições básicas (como a família e a comunidade) e a busca de raízes históricas são o indícios da procura de hábitos mais seguros e valores mais duradouros num mundo cambiante."2 (p. 263)

O fenômeno dos Kidults pode representar este livre trânsito no tempo a que se permitem os sujeitos contemporâneos. Frank Furedi5 usa esta denominação para explicar o comportamento de viés infantil (kids) em adultos (adults), uma prática crescente e recorrente em várias culturas: o hábito de colecionar brinquedos, o gosto pelos filmes de animação, as roupas com estampas de personagens infantis são os aspectos mais comuns e abrangentes deste fenômeno. É importante observar que algo tão comum ao nosso tempo, aos nossos conhecidos e quem sabe até a nós mesmos, era impensável há poucas décadas atrás. Colecionar brinquedos ou vestir-se de forma semelhante às crianças eram excentricidades raras.

Se por um lado somos sujeitos livres para experimentar a não linearidade da cultura pós-moderna, por outro, a vida biológica continua repetindo seu ciclo de nascimento, crescimento, envelhecimento e morte e, ainda que mediada pelos avanços científicos, reclama o tempo de cada uma destas etapas. Assim, mesmo que kidults permitam-se divertir em parques antes feitos para crianças e a medicina estética garanta peles sem rugas, em algum ponto a biologia e a cultura disputam terreno.

As crianças de outros tempos

Numa linha cronológica da biologia, a vida humana tem começo, meio e fim em etapas que se iniciam com o nascimento, seguido do crescimento (infância), vida adulta e posteriormente a velhice/morte. Nesta visão linear, as etapas são consecutivas, e é justamente o início que nos instiga nesta reflexão: aquilo que (hoje) chamamos de infância. Nem sempre foi assim...

Por muitos anos, o historiador Philippe Ariès6 foi uma referência da área, buscando a história social da infância e da família, que daria título à sua obra. Posteriormente Neil Postman propôs o Desaparecimento da Infância, relendo Ariès, mas avançando no tempo das mídias de massa e sua influência sobre o comportamento infantil.

Numa recuperação histórica, os autores refletem sobre a raridade de obras antigas que retratem a criança, tanto nos registros formais, quanto na literatura ou artes plásticas como sendo um dos reflexos da pouca relevância que a infância tinha até certo momento da história. Por isso, não era importante retratá-la, biografá-la ou mesmo criar manuais para seus cuidados. Basta pensarmos que a própria Bíblia cristã narra o nascimento de Jesus Cristo e após sua aparição no templo aos 13 anos, como se toda a infância do Messias não tivesse qualquer importância.

Pela sua fragilidade e pelo alto índice de mortalidade infantil, pode-se supor que a construção do apego aos pequeninos era entendida de forma diferente. Não faltava aos antigos o amor aos pequenos, apenas não se conhecia ainda a necessidade de cuidar-lhes de forma especial. E havia pouca esperança em sua sobrevivência prolongada. Dito de outra forma, as crianças não valiam maiores investimentos, pois eram grandes as chances de fracasso biológico.

No mundo medieval Ariès6 e Postman7 relatam ainda que, em classes menos privilegiadas, em casas de poucos cômodos, as crianças não eram preservadas das questões de violência, problemas, corpo e sexo, uma vez que dividiam com os adultos os mesmos espaços, e não raramente, o mesmo quarto. A presença delas era simplesmente desconsiderada e a vida acontecia sem reservas ou censuras, com execuções em praças públicas para uma plateia de idades mistas. Nesta época, os poucos registros pictóricos de crianças mostram elas vestidas como adultos.

A grande descoberta da infância começa acontecer no século XVIII, com a revolução burguesa na França, quando os burgueses, sem ter antepassados para mostrar o valor de sua linhagem, projetam na próxima geração suas expectativas:


Dali em diante, não era mais o sangue azul ou a tradição nobliárquica que contava. Era a experiência real de vida. Sem nada para valorizar em seu passado, a nova classe - a burguesia -tratou de valorizar o presente e investir no futuro. A criança passou a ser reconhecida em sua autonomia8 (p. 88-89).

E foi assim que, para corroborar com os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade da Revolução Francesa, nascia a preocupação em criar filhos letrados através da escolarização, que trouxessem legitimidade ao dinheiro burguês através da educação e protegessem o legado da família através de cuidados especiais, que culminariam hoje com os aquecedores de lenços umedecidos.

A ironia é a ponte do texto para acelerar os anos de significativas melhorias no desenvolvimento, pesquisa e investimento infantil e chegar aos nossos dias de câmeras ao vivo nas escolas maternais, para que os pais acompanhem em tempo integral os cuidados com seus herdeiros. É lógico que esta é uma condição de uma parte pequena de crianças, enquanto uma fatia maior ainda vive em condições precárias, sem atendimento médico, saneamento básico ou mesmo comida adequada, tal qual os pequeninos de algum período medieval. A infância nos subúrbios das grandes cidades ao redor do planeta ainda divide quartos, é exposta a violência de todos tipos, toca em armas, trabalha de forma análoga àquelas retratas pela literatura do período da Revolução Industrial.

Paradoxos contemporâneos, desigualdades culturais, o fato é que nos questionamos se nossas crianças são tão ou mais frágeis, tão ou mais fortes, tão ou mais crianças do que as de outros tempos. Pois hoje há um acesso imenso a informações, cuidados de higiene e saúde, educação facilitada. Neste cenário, parece que uma parte da sociedade tenta cercar seus filhos de cuidados em 360 graus, enquanto a outra vive a barbárie - com a única diferença de que hoje consideramos bárbaro o que um dia já foi normal.

Para a privilegiada parte da infância que faz três refeições ao dia, as preocupações se proliferam em todas as direções rumo até mesmo a um possível exagero. Preocupa-nos escolher a melhor escola, a melhor alimentação, os espaços seguros, os programas de televisão adequados, os brinquedos que possam trazer alegria e benefícios. Invariavelmente nos preocupamos com a vestimenta de nossas crianças.

Para além do fator térmico, anti-alérgico ou simplesmente limpo, a mensagem que as roupas passam é um fator de inquietação para pais e educadores que, já há algum tempo, reparam em uma suposta "adultização" da infância. Falamos aqui em mensagem, pois segundo Garcia e Miranda9 a moda não é fruto de acaso ou capricho, mas de uma conjunção de fatores sociais e culturais. Assim sendo, é capaz de comunicar os valores e o imaginário de cada tempo/local, usada como uma linguagem não verbal pelos indivíduos na transmissão de códigos culturais.

Contudo, esses códigos parecem pertencer mais ao mundo adulto: o vestido da noiva, o traje do padre, o uniforme do soldado. Às crianças nem sempre foi relegado o luxo de se vestirem segundo um código de conduta: Arriés6 (p. 62) conta que até o século XIV, assim que nasciam os bebês eram enrolados em cueiros (em mantas que lhes serviam de vestes) e assim que saiam delas a criança "era vestida como os outros homens e mulheres de sua condição", entenda-se, como outros adultos de sua classe. Ou seja, a roupa da criança refletia a forma como a sociedade a enxergava, como um adulto que ainda não havia crescido, pois não havia a concepção ou entendimento de infância, então, tudo girava em torno do mundo adulto.

Posteriormente isso iria mudar. A noção de infância exigiu um vestir diferenciado, começando por uma espécie de camisola longa, destinada a meninos e meninas, e passando para a idade das calças curtas e no século XIX, junto com um gosto popular pelos uniformes, calças compridas. Barbosa e Quedes10 reafirmam que a adequação de trajes destinados a infância, suas necessidades e movimentos, nasce com as ideias de Rousseau e a preocupação com os pequeninos, servindo também como uma sinalização ou afirmação de cada fase da vida infantil, contudo, é importante ressaltar que essa particularização se restringiu aos meninos, não havendo uma bibliografia indicativa do que se passa com o guarda-roupa das meninas daquela época. Apesar da diferenciação da roupa infantil persistir até nossa época, Ariés6 acrescenta o importante comentário:

O que é certo é que isso aconteceu apenas nas famílias burguesas ou nobres. As crianças do povo, os filhos dos camponeses e dos artesãos, as crianças que brincavam nas praças das aldeias, nas ruas das cidades ou nas cozinhas das casas continuaram a usar o mesmo traje dos adultos: jamais são representadas usando vestido comprido ou mangas falsas. Elas conservaram o antigo modo de vida que não separava as crianças dos adultos, nem através do traje, nem através do trabalho, nem através dos jogos e brincadeiras6 (p. 67).

Dito de outra forma, a questão da vestimenta infantil como comunicação de uma situação individual e de necessidades especiais (de proteção ou de conforto) parece ser, desde outros dias aos atuais, uma preocupação de classes mais privilegiadas. Ironicamente ao anotado pelos autores, porém, hoje é a roupa feminina que parece causar mais incomodo do que a masculina, nas questões de exposição do corpo e sexualidade.

Ligando as afirmações anteriores e chegando à imagem feminina, lembramos da proposta de Lipovetsky11 de que ainda hoje as mulheres são alvo de uma visão romântica, que fala em proteção, preservação, resguardo, enfim, a visão teórica do que ficou popular como bela, recatada e do lar. Essa é, para o filósofo, uma das faces do feminino contemporâneo, que coexiste com a ideia antagônica, de que a mulher é a encarnação do mal, a Eva e serpente. Retomando o início deste texto, numa sociedade plural e caótica, estas visões podem muito bem se alternar, e, uma vez existindo, justificaria o anseio com a vestimenta das meninas já que caberia a nós pais/educadores prepararmos as garotas para se tornarem um ou outro tipo de mulher.

O romantismo na maneira de enxergar o feminino, o infantil e também o passado, por sua vez nos liga com o gosto contemporâneo pelo retrô. Em cada um de nós há uma visão idealizada de sua própria infância - uma lembrança de algo seguro em tempos incertos. Nessa visão, é mais provável que nos recordemos de vestidos de cintura solta do que das minúsculas fantasias de carnaval. De uma camisa de domingo ao invés do peito nu num campo de futebol. Nos álbuns de família, nossos retratos em trajes feios ou bonitos nos recordam de um tempo que quase sempre classificamos como bom, uma vez que não trazia os pesos e atribulações da vida adulta.

Em nossas memórias, essa é a roupa boa, a roupa adequada e a roupa descente para uma criança. Perdoamos as fotografias de crianças nuas como retratos de um tempo de pureza, sem nos darmos conta que a pureza era nossa enquanto crianças ingênuas. E queremos este visual de passado para nossos filhos, sobrinhos, netos. Isso porque:

O impulso de preservar o passado é parte do impulso de preservar o eu (...) A continuidade entre o passado e o presente cria um sentido de sequência para o caos aleatório, como a mudança é inevitável, um sistema estável de sentidos organizados nos permite lidar com a inovação e decadência. O impulso nostálgico é um importante agente de ajuste à crise2 (p. 85).

O mercado, atento a tudo isso, oferece uma variedade de modelos para contentar todos os gostos e assim, basta um cartão de crédito para salvar nossos pequenos da indecência da moda. Sobretudo para salvar a nós mesmos, traçando regras do vestir para situarmo-nos num contemporâneo sem regras do agir. Abotoando nossas próprias inseguranças nas referências estéticas de um passado seguro.

Há diferenças, é claro: hoje a moda infantil não tem mais a rigidez de outros tempos, onde era usada para definir as idades, do impúbere ao adolescente, limitando-se apenas a refletir diferentes gostos e estilos. Na opinião de Ariés6 (p. 56) "Hoje em dia, a adolescência se expandiu para trás e para a frente, e o traje esporte, adotado tanto pelos adolescentes como pelas crianças, tende a substituir as roupas típicas da infância do século XIX e início do século XX." Por outro lado, a roupa infantil serve como um forte demarcador de gênero, fato bastante questionado nos dias atuais, mas ao qual não nos ateremos, para não desviar o foco.

Apontamentos para concluir (ou não)

Nem sempre conseguimos concluir nosso pensamento, ou ao menos, não de forma satisfatória. Mas reler a história e cruzar teorias nos permite fazer circular as ideias e a fluidez é algo desejável em tempos de questões pesadaspesado, por exemplo, o fato de que nossas crianças pareçam estar sempre sendo puxadas, com uma aparente antecipação, ao mundo adulto. Enxergamos a erotização através de suas performances, do que acessam em termos de comunicação e da exposição de seu corpo. E aqui podemos relembrar os ritmos que dançam, as coreografias que reproduzem, os roteiros da programação infantil infestada de violência, os jogos de vídeo game, as novelinhas com romance, programas de auditórios semelhantes ao The Voice Kids, as festas de aniversário com a presença de DJ's, reality shows (até mesmo a versão mirim do aclamado Master Chef), os youtubers e sua linguagem nada criteriosa, enfim, uma série de elementos do mundo real e do mundo virtual que parece corroborar para que as crianças sejam, cada vez mais, adultos em miniaturas.

Não faltam autores em nosso referencial bibliográfico (e nos blogs, mães aflitas) para questionar o desaparecimento da infância sob o caos contemporâneo da mídia, da moda e da internet. Mas quem sabe apenas não giramos na espiral do tempo? Para frente e para trás na anti-narrativa dos pós-modernos que dizem que as coisas mudam e de certa forma o jogo e o acaso nos levam há pontos semelhantes; Como se o presente pudesse escolher elementos e repetir o passado. Neste sentido, para a história da humanidade o fenômeno dos kidults seria muito mais inédito do que o fato das crianças se parecerem como mini-adultos. No entanto, os kidults não nos parecem tão bizarros quanto as crianças se comportando como cantores maduros num show de talentos.

Na primeira camada, acima de sua frágil pele, está a roupa. E é como se pudéssemos dar-lhes a proteção da pureza infantil quando optamos por roupas ditas bem comportadas. Protegemo-los dos olhares maliciosos, mas também de toda aquela exposição exagerada dos tempos de mídias sociais(algo do qual ainda não somos capazes de avaliar e mensurar com clareza). Encapamos-lhes com a parte afetiva, como se a roupa pudesse comunicar o carinho de pais. Sobretudo - sim, sobretudo como uma peça de roupa - vestimos nossos filhos de nossos próprios anseios e lembranças.

Para quando nos sentimos despidos de argumentos ou de voz de ativa diante de seus trajes, lembremos que durante a maior parte da história as crianças se vestiram como adultos e com esta armadura sobreviveram - e sobrevivem - à barbárie. Em meio à fragmentação de gostos, ao hibridismo e à polimorfia do contemporâneo, a nudez é nossa: nos faltam certezas, as teorias não cobrem todo o corpus. Enquanto proliferam os modismos e estilos, resta lembrar que são as escolhas do que nossos filhos trarão por dentro, e não sobre a pele, que mais dirão sobre quem são e serão.


REFERÊNCIAS

1. Lipovetsky G. Metamorfoses da cultura liberal: ética, mídia e empresa. Porto Alegre: Sulina; 2004.

2. Harvey D. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola; 2002.

3. Coelho JT. Moderno pós-moderno - modos & versões. São Paulo: Iluminuras; 2001.

4. Baudrilard J. Sociedade de consumo. Lisboa: Edições 70; 1981.

5. Furedi F. Não quero ser grande. Jornal Folha de S. Paulo, 2004 julho 25. Caderno Mais!. p. 4-7

6. Ariès P. A historia social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC- Livros Técnicos e Científicos Editora S.A; 1981.

7. Postman N. O desaparecimento da infância. Rio de Janeiro: Graphia; 1999.

8. Hohlfeldt A. As origens antigas: a comunicação e as civilizações. In:Teorias da comunicação. Petrópolis: Vozes; 2001.

9. Garcia C, Miranda AP. Moda e comunicação :experiências, memórias, vínculos. São Paulo: Editor Anhembi Morumbi; 2005.

10. Barbosa RCA, Quedes W. Vestuário e infância: entre a adequação e as determinações sociais. In: Encuentro Latinoamericano de Diseño 2007; Buenos Aires: Anais; 2007.

11. Lipovetsky G. A terceira mulher: permanência e revolução do feminino. São Paulo: Companhia das Letras;2000.










ESPM, Comunicação Social - Porto Alegre - Rio Grande do Sul - Brasil

Correspondência
Catia Schuh Weizenmann
e-mail: catiaschuhw@gmail.com / e-mail alternativo: cschuh@espm.br

Submetido em: 17/07/2018
Aceito em: 28/08/2019

Contribuição do autor: Conceitualização, Redação - Preparação do original.

Instituição: Escola Superior de Propaganda e Marketing

 

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