Rev. bras. psicoter. 2019; 21(1):111-119
Weizenmann CS. A infância despida: uma reflexão sobre modos e vestimentas. Rev. bras. psicoter. 2019;21(1):111-119
Artigo Especial
A infância despida: uma reflexão sobre modos e vestimentas
The naked childhood: a reflection on manners and dress
A infância despida: uma reflexão sobre modos e vestimentas
Catia Schuh Weizenmann
Resumo
Abstract
Resumen
INTRODUÇÃO
Na academia lemos, pensamos e discutimos sobre teorias e teóricos, problemas complexos e hipóteses bem fundamentadas. Fora dela, a vida nos exige soluções mais rápidas, e nós pais/pesquisadores, abandonamos Rousseau e Piaget em troca das soluções nada científicas e dicas de um blog qualquer sobre maternidade. É paradoxal, é complexo, mas é real.
Nada a se estranhar se considerarmos que vivemos em uma cultura líquida e efêmera. Dita também frenética, cambiante e conhecida pela permissividade com questões de gosto, gênero, sexualidade. Ao mesmo tempo e dividindo os mesmos espaços, estudos contemporâneos apontam para um comportamento extremista - algo que hoje pode ser visto, por exemplo, nas eleições norte-americanas ou nos grupos políticos brasileiros, mas que de fato já era apontado em comportamentos de grupos menores por Lipovetsky em suas Metamorfoses da cultura liberal1. Ou seja, é uma cultura onde se pode tudo cercada por uma série de pequenos grupos de pode mais ou menos.
A ambiguidade do pensamento de nossa sociedade, ora pede livre acesso às informações, ora reivindica censura. No ponto de vista da autora, a pluralidade - mesmo quando paradoxal - é saudável. Especialmente quando promove reflexões e quando permite relativizações. Afinal, conhecer, pensar e mudar são importantes ferramentas, não apenas das ciências, mas de crescimento pessoal. Pensar e repensar pode trazer inquietações, mas também alívio.
A questão insight desta reflexão nasce de uma destas inquietações sobre os aspectos que levariam a uma "adultização" infantil prematura, envolvendo a mídia, a facilitação da comunicação virtual, até mesmo questões de sexo e gênero. Esses fatos condensadas sobre a pele, na roupa, suscitam questões como: a atual vestimenta infantil é causa/reflexo de um amadurecimento precoce de nossas crianças? Quais as reflexões que crianças vestidas como adultos podem suscitar? Porque nos incomoda o traje delas em dias de gosto tão diverso?
Bem vindo ao nosso tempo
Mesmo em uma sociedade plural, inclusiva das diferentes concepções de mundo, de cultura, de saberes, cada indivíduo faz suas inferências e reflexões a partir de um ponto - ou seriam de muitos pontos - de seu aprendizado cognitivo. Assim, este artigo nasce das percepções e vivências da autora como pesquisadora em comunicação, como publicitária próxima às campanhas de marketing, como mãe de crianças pequenas, como consumidora, como ser inquieto.
Do ponto de vista acadêmico, parte de uma visão particular do contemporâneo como sendo um mundo pós-moderno. Esta nomenclatura tão debatida dá conta de um conjunto de condições de nosso tempo que o classifica justamente como plural, um tempo de democratização do gosto, de polimorfia, de indeterminação, de combinação, contra-interpretação, da anti-narrativa, do acaso, da anti-forma2.Há ainda uma linha de pensadores que propõe o pós-moderno não mais como uma linha de tempo reta e contínua, mas como uma estrutura espiral, na qual o pensamento (as opiniões, as referências) andam em círculos que ora podem se encontrar, ora avançam, ora retrocedem, e assim se explicariam alguns fenômenos como a valorização do artesanal, o gosto pelo retrô, a ânsia no novo ainda que baseada no antigo.
Autores como Teixeira Coelho3 e Jean Baudrillard4 complementam a visão de uma sociedade onde a compreensão de espaço sofreu rápidas transformações, uma vez que a tecnologia dos transportes e da comunicação/informação encurtou distâncias e praticamente aboliu o tempo, de modo que atravessar continentes é tarefa de algumas horas e, comprar produtos produzidos do outro lado do mundo é questão de poucos minutos e alguns cliques. A mesma velocidade que facilitou o intercâmbio de culturas - seja pelos avanços da logística ou pela amplitude da internet - o fez com tal velocidade que deixou lacunas no entendimento de espaço e tempo dos indivíduos, facilitando a implantação desta cultura não linear, fragmentada, dita pósmoderna. Por isso, em meio à busca hedonista de liberdades individuais, observa-se também "o retorno do interesse por instituições básicas (como a família e a comunidade) e a busca de raízes históricas são o indícios da procura de hábitos mais seguros e valores mais duradouros num mundo cambiante."2 (p. 263)
O fenômeno dos Kidults pode representar este livre trânsito no tempo a que se permitem os sujeitos contemporâneos. Frank Furedi5 usa esta denominação para explicar o comportamento de viés infantil (kids) em adultos (adults), uma prática crescente e recorrente em várias culturas: o hábito de colecionar brinquedos, o gosto pelos filmes de animação, as roupas com estampas de personagens infantis são os aspectos mais comuns e abrangentes deste fenômeno. É importante observar que algo tão comum ao nosso tempo, aos nossos conhecidos e quem sabe até a nós mesmos, era impensável há poucas décadas atrás. Colecionar brinquedos ou vestir-se de forma semelhante às crianças eram excentricidades raras.
Se por um lado somos sujeitos livres para experimentar a não linearidade da cultura pós-moderna, por outro, a vida biológica continua repetindo seu ciclo de nascimento, crescimento, envelhecimento e morte e, ainda que mediada pelos avanços científicos, reclama o tempo de cada uma destas etapas. Assim, mesmo que kidults permitam-se divertir em parques antes feitos para crianças e a medicina estética garanta peles sem rugas, em algum ponto a biologia e a cultura disputam terreno.
As crianças de outros tempos
Numa linha cronológica da biologia, a vida humana tem começo, meio e fim em etapas que se iniciam com o nascimento, seguido do crescimento (infância), vida adulta e posteriormente a velhice/morte. Nesta visão linear, as etapas são consecutivas, e é justamente o início que nos instiga nesta reflexão: aquilo que (hoje) chamamos de infância. Nem sempre foi assim...
Por muitos anos, o historiador Philippe Ariès6 foi uma referência da área, buscando a história social da infância e da família, que daria título à sua obra. Posteriormente Neil Postman propôs o Desaparecimento da Infância, relendo Ariès, mas avançando no tempo das mídias de massa e sua influência sobre o comportamento infantil.
Numa recuperação histórica, os autores refletem sobre a raridade de obras antigas que retratem a criança, tanto nos registros formais, quanto na literatura ou artes plásticas como sendo um dos reflexos da pouca relevância que a infância tinha até certo momento da história. Por isso, não era importante retratá-la, biografá-la ou mesmo criar manuais para seus cuidados. Basta pensarmos que a própria Bíblia cristã narra o nascimento de Jesus Cristo e após sua aparição no templo aos 13 anos, como se toda a infância do Messias não tivesse qualquer importância.
Pela sua fragilidade e pelo alto índice de mortalidade infantil, pode-se supor que a construção do apego aos pequeninos era entendida de forma diferente. Não faltava aos antigos o amor aos pequenos, apenas não se conhecia ainda a necessidade de cuidar-lhes de forma especial. E havia pouca esperança em sua sobrevivência prolongada. Dito de outra forma, as crianças não valiam maiores investimentos, pois eram grandes as chances de fracasso biológico.
No mundo medieval Ariès6 e Postman7 relatam ainda que, em classes menos privilegiadas, em casas de poucos cômodos, as crianças não eram preservadas das questões de violência, problemas, corpo e sexo, uma vez que dividiam com os adultos os mesmos espaços, e não raramente, o mesmo quarto. A presença delas era simplesmente desconsiderada e a vida acontecia sem reservas ou censuras, com execuções em praças públicas para uma plateia de idades mistas. Nesta época, os poucos registros pictóricos de crianças mostram elas vestidas como adultos.
A grande descoberta da infância começa acontecer no século XVIII, com a revolução burguesa na França, quando os burgueses, sem ter antepassados para mostrar o valor de sua linhagem, projetam na próxima geração suas expectativas:
Dali em diante, não era mais o sangue azul ou a tradição nobliárquica que contava. Era a experiência real de vida. Sem nada para valorizar em seu passado, a nova classe - a burguesia -tratou de valorizar o presente e investir no futuro. A criança passou a ser reconhecida em sua autonomia8 (p. 88-89).
O que é certo é que isso aconteceu apenas nas famílias burguesas ou nobres. As crianças do povo, os filhos dos camponeses e dos artesãos, as crianças que brincavam nas praças das aldeias, nas ruas das cidades ou nas cozinhas das casas continuaram a usar o mesmo traje dos adultos: jamais são representadas usando vestido comprido ou mangas falsas. Elas conservaram o antigo modo de vida que não separava as crianças dos adultos, nem através do traje, nem através do trabalho, nem através dos jogos e brincadeiras6 (p. 67).
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